domingo, 19 de novembro de 2023

Taiwan, o contraponto da República Popular da China

 

De vez em quando, as Forças Armadas da República Popular da China (RPC) rondam a ilha de Taiwan, país que as autoridades chinesas não reconhecem e cujo território ameaçam anexar ao grande país do continente asiático. Contra essa cruzada da RPC posiciona-se a administração norte-americana, via diplomática e pelo envio de equipamento bélico, bem como pelo apoio à formação militar para lidar com novos materiais.  

António Caeiro publicou, na Revista do Expresso (edição de 17 de novembro), um texto intitulado “Taiwan, o grande problema de uma pequena ilha”, que aponta, entre os muitos pontos de divisão entre a RPC e os Estados Unidos da América (EUA), como principal ponto de discórdia “uma ilha onde os sismos e os tufões são frequentes”. E foi um sismo de 5,9 na escala de Richter ocorrido em Taipé, a capital, que marcou o início da faina que o jornalista iria reportar – susto atenuado, quando leu, no jornal “Taipei Times”, que “todos os anos, em média, Taiwan é sacudida por dois ou três sismos com magnitude acima dos 6 graus”. Estava, assim, perante “um fenómeno tão comum como os tufões que fustigam com frequência aquela ilha tropical”.

Em conversa com um arquiteto português, de 72 anos – que detém o Tuga, o único restaurante português de Taipé, desde 2015, em que pontifica um chefe ido de Lisboa – verificou a tranquilidade da atmosfera geral da ilha. Não há assaltos nem lixo. Há muitos avisos a indicar o caminho para os abrigos de defesa aérea, que não parecem recentes e estão misturados com anúncios publicitários e com outras indicações. Os mercados noturnos, onde se come fora de horas, na rua, em bancos e mesas de plástico, mantêm a animação habitual. Há lojas de conveniência abertas. Alguns templos fecham tarde. Em Taipé e nas outras cidades, dominam o trânsito as lambretas e as motorizadas, um total de 15 milhões para 24 milhões de habitantes, naquele território que é um terço de Portugal. Não obstante, na última semana de outubro, efetivos da Força Aérea, da Marinha e do Exército realizaram exercícios com fogo real, para testar a prontidão face a eventual ataque anfíbio. O teste incidiu numa das 20 praias vermelhas, das costas leste e oeste da ilha, onde tropas do continente poderão tentar desembarcar.

Em Kaohsiung, o Museu de Belas-Artes da cidade, um moderno edifício integrado num parque ecológico de 40 hectares, patenteava uma exposição intitulada “O Sul como Lugar de Mudanças”, com uma centena de obras das últimas décadas do século XX, que testemunham a “construção de um pluralismo histórico”. Em vez do conceito pós-colonial “Sul Global”, os organizadores da exposição, falando em “Sul+”, promovem “as narrativas e atitudes negligenciadas” pela cultura dominante, associada ao Norte. Porém, é de vincar que o pluralismo é recente. Cerca de 40 anos, até 1987, vigorava a lei marcial e governava Partido Nacionalista, o velho Kuomintang (KMT), do general Chiang Kai-shek. Só em 1996, pela primeira vez, o presidente de Taiwan foi eleito por sufrágio direto, num escrutínio com vários candidatos.

No forte holandês de Tainan, antiga capital, ergue-se a estátua de Koxinga, o comandante que recuperou a soberania da ilha, em 1662. É um herói nacional, venerado dos dois lados do Estreito de Taiwan. Como Sun Yat-sen, o fundador da República chinesa, dois séculos e meio mais tarde. Por iniciativa de Koxinga, a área onde foi construído o forte, denominada Zeelandia, passou a chamar-se AnPing (Tranquilidade e Paz). Tainan é famosa pelos templos, pelas ruas antigas, pelas casas tradicionais e pela variada gastronomia. Ao invés, em Xangai, Pequim, Cantão e outras cidades do continente, já não sobressai o passado: é quase tudo novo. Um cientista natural de Xangai que emigrou para os EUA, em 1989, diz que, “antes dos acontecimentos da Praça Tiananmen” (repressão militar do movimento pró-democracia, em junho), era uma coisa; agora, “uma pessoa volta a Xangai, passados alguns anos, e já não reconhece grande parte da cidade”.

A principal estação de metro de Kaohsiung é a Formosa Boulevard, em alusão ao nome que navegadores portugueses deram à ilha, no século XVI, quando, indo a caminho do Japão, a avistaram, verde e montanhosa. Nos finais do século XX, ativistas do Movimento Democrático lançaram a revista de nome “Formosa”, escrito no alfabeto latino e em chinês, “Mei Li Dao”.

A seguir aos Portugueses vieram, sucessivamente, os Espanhóis, os Holandeses e os Japoneses. Há, pois, “muitas influências” em Taiwan, mas cerca de 95% dos habitantes são etnicamente chineses. Falam a mesma língua e celebram com igual intensidade a passagem do ano lunar. Dos dois lados, as famílias festejam o meio do outono e outras efemérides tradicionais. É idêntica a gastronomia e o culto de Confúcio (um dos sábios chineses da Antiguidade, cinco séculos anterior a Jesus Cristo), do chá e da caligrafia. Todavia, o culto de Confúcio está mais enraizado do que no continente, pois, na década da Grande Revolução Cultural Proletária (1966-76), a mulher do Presidente Mao Zedong, Jiang Qing, promoveu a “campanha política de massas” de crítica a Confúcio”, considerado “um pensador decadente e reacionário”.

Na verdade, é a mesma a “ascendência” das populações de Taiwan e da RPC. Alguns habitantes da ilha dizem gostar do “povo do continente”, mas não do governo.

Muitos produtos à venda nas lojas são “Made in China”. Alguns são fabricados por empresas de Taiwan que deslocalizaram as suas indústrias para a RPC, que, apesar das divergências políticas, é o maior parceiro comercial de Taiwan, absorvendo mais de 40% das suas exportações. Nos últimos 30 anos, o investimento de Taiwan na RPC somou 198,28 mil milhões de dólares e, em 2020, o valor do comércio bilateral atingiu os 273 mil milhões de dólares – muito mais do que tudo o que a China compra e vende à Rússia, por exemplo.

Politicamente, Taiwan está fora da alçada de Pequim desde 1895, ano em que foi anexada pelo Japão. Em meio século, a ilha viveu à margem das convulsões da RPC e da guerra civil entre comunistas e nacionalistas. Sob a antiga administração colonial, registou desenvolvimento económico e social acentuado – 80% das pessoas sabiam ler e escrever – o oposto do que sucedia no continente. Porém, após a rendição do Japão, em setembro de 1945, o governo da RPC, com a capital em Nanjing, assumiu a soberania de Taiwan e instaurou a corrupção, o despotismo e a descontrolada inflação, que caraterizavam a política do Partido Nacionalista de Chiang Kai-shek (KMT) e engrossavam as fileiras dos rebeldes comunistas, liderados por Mao Zedong.

O descontentamento galopou. Greves, revoltas estudantis e manifestações aumentaram em número e variedade. Em fevereiro de 1947, manifestantes ocuparam uma estação de rádio, esquadras de polícia e repartições públicas. Na capital e noutras cidades surgiram apelos à construção de “uma nova República da China”, com “garantias democráticas” e “eleições para escolher o governador, presidentes de câmara e magistrados”. Seguiu-se brutal repressão. Ninguém sabe quantas pessoas morreram. Milhares de proeminentes intelectuais e líderes cívicos de Taiwan foram presos e executados. O KMT repôs a ordem, mas, no continente, a correlação de forças pendia para o lado dos comunistas. Dois anos mais tarde, com a vitória do Exército Vermelho e a proclamação da RPC, Chiang Kai-shek e o que restava da antiga república refugiaram-se em Taiwan. Em Pequim, cidade milenar que, em outubro de 1949, voltou a ser a capital, Mao Zedong anunciou o nascimento da Nova China. Na Constituição em vigor em Taiwan, a ilha é “área livre da República da China” (sem o adjetivo “popular”). A nacionalidade inscrita no passaporte dos cidadãos é: “Zhong Hua Ming Guo” (Republic of China).

Embora defenda a “reunificação pacífica”, Pequim admite “usar a força”, se a ilha declarar a independência ou em caso de “ingerência externa”. A ideia não é nova, mas sob a liderança de Xi Jinping a “reunificação da pátria” tornou-se “uma componente indispensável” do processo de “rejuvenescimento da nação chinesa”. Em agosto de 2022, em retaliação pela visita de Nancy Pelosi, então presidente do Congresso dos EUA, a RPC cercou a ilha durante alguns dias e, pela primeira vez, mísseis balísticos chineses sobrevoaram Taiwan. A tensão diminuiu, mas não terminaram as incursões dos caças chineses. Nos primeiros três dias de novembro foram detetados 52 aviões e 16 navios de guerra em torno de Taiwan. E, há cerca de um mês, numa conferência internacional sobre segurança, em Pequim, um general chinês defendeu que, “se a China for obrigada a resolver a questão de Taiwan, através do uso da força, será uma guerra justa e legítima”. Oficialmente, as Forças Armadas chinesas mantêm o nome adotado no início da guerra contra o Partido Nacionalista, em 1927: Exército Popular de Libertação (EPL).

Ao fim de mais de 70 anos, a guerra verbal entre Pequim e Taipé faz parte do quotidiano. As manobras da aviação chinesa em torno de Taiwan tornaram-se rotina. “Taiwan não precisa de declarar a independência, porque já é independente, argumenta o governo de Taipé, dirigido pelo Partido Democrático Progressista (DPP). O Partido Comunista Chinês considera que o DPP tem uma “agenda separatista” e acusa presidente, Tsai Ing-wen, de agir como marioneta dos EUA.

Até 1971, a República da China representou a China na ONU. Hoje, só 13 países reconhecem Taiwan como entidade política soberana. E, na Europa, o Vaticano é o único Estado que mantém embaixada em Taipé. Em 1979, os EUA cortaram as relações diplomáticas com a ilha, tendo o governo de Pequim como “o único legítimo representante do povo chinês”, mas, internamente, aprovaram uma lei em que se comprometem a apoiar a defesa de Taiwan.

Segundo um estudo divulgado, neste verão, só 6,1% dos taiwaneses defendem a reunificação ou a independência, “tão depressa quanto possível”. Quase 90% querem manter o status quo e, destes, cerca de um terço gostaria que se mantivesse indefinidamente. Quase dois terços da população (62,8%) definem-se como taiwaneses (aumento de 45,2 %, face a 1992) e 30,5% consideram-se simultaneamente chineses e taiwaneses (descida de 15,9%).

Taiwan “tem áreas muito modernas, de alto nível tecnológico”, e coisas do passado. O seu produto interno bruto (PIB) é superior ao da maio­ria dos países europeus. Maior produtor mundial de microchips, componente dos equipamentos eletrónicos dos telemóveis ou dos automóveis, foi o primeiro país da Ásia a legalizar o casamento de pessoas do mesmo sexo, em 2019.

O Estreito de Taiwan ou Estreito da Formosa, bastante largo, é um corredor marítimo com cerca de 160 quilómetros de largura e com o dobro da extensão. Passam por ali 88% dos maiores porta-contentores do Mundo e cada vez mais navios de guerra. A possibilidade de um incidente militar é real. O Estreito de Taiwan poderá ser mesmo “o sítio mais perigoso da Terra”.

Em Washington, muitos políticos encaram a RPC como a maior ameaça à hegemonia norte-americana. Em Pequim, parte da elite comunista acredita que os EUA querem “conter a China”. A expectativa concentra-se nas eleições presidenciais de Taiwan, a 13 de janeiro, quase um mês antes da entrada no Ano do Dragão. Nas autárquicas de 2022, o DPP conquistou apenas cinco dos municípios, contra 14 do KMT. O Partido Nacionalista obteve 50,14% dos votos, e um bisneto de Chiang Kai-shek, Chiang Wan-an, é o presidente da Câmara de Taipé. No final de outubro, o vice-presidente, Lai Ching-te, continuava à frente nas sondagens, mas aquém dos 30% e a maioria (53,5%) era contra a manutenção do DPP no governo. A oposição estava dividida: o candidato do Partido do Povo de Taiwan (PPT), o antigo mayor de Taipé Ko Wen-je, vinha a seguir, com 25,6%, à frente do candidato do KMT, Hou Yu-ih (21,1%), e do patrão da Foxconn, o industrial Terry Gou, que se apresenta como independente (6,2%).

Taiwan deve adotar grande flexibilidade nas relações com a China e os EUA e “permanecer equidistante” das duas superpotências, devem resolver as suas divergências por meios pacíficos, ficando a ilha em posição autónoma sobre o desenvolvimento económico, ecológico, académico e cultural. A opinião pública está muito polarizada, mas a romancista Lung Ying-tai, ex-ministra da Cultura, nascida há 72 anos em Kaohsiung, que já viveu na Europa, nos EUA e em Hong Kong, em recente artigo publicado no “New York Times”, manifestou-se “orgulhosa” da “vibrante democracia” e do “sucesso económico” de Taiwan: “Mostrámos que a democracia pode funcionar na cultura chinesa.” E, alertando que o Mundo ignora, às vezes, a “mistura de ansiedade, orgulho e perseverança” que são “a essência do caráter de Taiwan” e tende a encarar a ilha como “um peão” na rivalidade entre a RPC e os EUA, proclama: “Nós também somos carne e sangue.”

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É o grave contexto da cimeira entre Joe Biden e Xi Jinping, em Washington, a 15 de novembro, um a propor uma relação de forma responsável e o outro a dizer não é opção virarem as costas.   

2023.11.19 – Louro de Carvalho

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