segunda-feira, 13 de novembro de 2023

O terramoto judiciário na governação pôs instituições em roda livre

 

O artigo 113.º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelece: “No ato de dissolução de órgãos colegiais baseados no sufrágio direto tem de ser marcada a data das novas eleições, que se realizarão nos sessenta dias seguintes e pela lei eleitoral vigente ao tempo da dissolução, sob pena de inexistência jurídica daquele ato.”

Por sua vez, o artigo 19.º, n.º 1, da Lei Eleitoral para a Assembleia da República (AR) – Lei n.º 14/79, de 16 de maio, na atual redação – estabelece: “O Presidente da República marca a data das eleições dos deputados à Assembleia da República com a antecedência mínima de 60 dias ou, em caso de dissolução, com a antecedência mínima de 55 dias.”

Tais preceitos determinam os mínimos, pelo que, à partida, não se pode dizer que as eleições legislativas tenham de se realizar no prazo de 55 dias contados a partir da data do decreto de dissolução da AR. Todavia, é desaconselhável a protelação no tempo.

Ora, o conhecimento público, a 7 de novembro, através de comunicado do gabinete de imprensa da Procuradoria-Geral da República (PGR), de que estava a decorrer, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), um inquérito à atividade do primeiro-ministro (PM), levou a que este apresentasse ao Presidente da República (PR) o seu pedido de demissão, embora se disponibilizasse para continuar em funções até ao momento que o chefe de Estado julgasse conveniente. Isto quer dizer que não se tratava de passagem imediata ao regime de governo de gestão.

O PR, de forma precipitada (do meu ponto de vista), declarou aceitar o pedido de demissão do PM. Não obstante, em vez de manter em funções o demissionário, até conseguir nomear um PM e um governo no atual quadro de maioria parlamentar, optou por ouvir os partidos com assento parlamentar e o Conselho de Estado e decidiu a convocação de eleições para 10 de março, dando tempo para a AR aprovar o Orçamento do Estado para 2024 (OE2024), deixando claro que, após a aprovação do OE2024, dissolveria a AR.

Sem me deter na análise das razões do PR, o que já fiz em tempo, convém referir que uma AR no estado de capitis dimnutio, isto é, com o látego da dissolução sobre si, não tem condições políticas para aprovar um tal instrumento estruturante da governação. Por isso, a decisão imediata de aceitação do PM foi precipitada. Um tempo mais alongado de reflexão teria sido prudente. Não vale argumentar com precedente do passado, já que nem sempre o passado serve de bitola.

Se a suspeita que impende sobre o PM é grave, ele não deveria continuar em plenitude de funções e a solução deveria passar, necessariamente, pela formação de novo governo, o mais depressa possível. Porém, é referido que os partidos estiveram a favor da convocação de eleições. Até o partido do governo, que se mostrou disponível para outro cenário, se disponibilizou para acolher a esperada decisão do PR. É óbvio que um partido, sobretudo um partido dito do arco da governação, ainda que não lhe convenha, tem de estar sempre disponível para eleições e dizê-lo claramente. Já o Conselho de Estado se dividiu a meio entre a opção pelas eleições e pela dissolução da AR, o que é legítimo, desde que os apostadores em novas eleições se tenham baseado na leitura política da realidade e não se tenham constituído juízes da ação governativa e parlamentar.

Em todo o caso, a decisão cabia ao PR, que não a remeteu para as mãos de ninguém, embora todas as razões invocadas, exceto a baseada na prerrogativa constitucional, sejam discutíveis.                          

Os partidos devem estar disponíveis para eleições a todo o momento, para o que têm de se organizar internamente, não devendo condicionar as exigências da Constituição e da Lei Eleitoral aos seus prazos. Por isso, acho absurdo o PR sentir-se obrigado a protelar o decreto presidencial de dissolução parlamentar e de marcação de eleições, porque o partido A ou o partido B precisa de eleger os seus órgãos internos.

Também alguns partidos, apoiados nos seus estatutos, sofrem de pedras de tropeço que não os deixam responder às exigências do momento. Para quê umas eleições diretas personalizadas de um presidente de partido, no caso do Partido Social Democrata (PSD), ou de um secretário-geral, no caso do Partido Socialista (PS), a que se segue um congresso eletivo ancorado em moções estratégicas. Dois momentos partidários distanciados no tempo são perda de tempo e podem criar situações absurdas. Por exemplo, ser indivíduo eleito líder um e a sua moção estratégica não concitar a maioria dos congressistas. Nada teria contra as diretas, desde que ocorressem no tempo do congresso, cabendo aos congressistas verificar a regularidade das votações e apurar a moção vencedora e a representação proporcional das demais.

Cada partido tem o seu órgão estatutário máximo entre congressos. Foi desse órgão que resultou a apresentação de Francisco Pinto Balsemão a Ramalho Eanes para que o indigitasse como PM, bem como a de Santana Lopes a Jorge Sampaio. Pelo facto de Francisco Sá Carneiro ter corporizado a segunda vitória de maioria absoluta da Aliança Democrática (AD), em 1980, e ter falecido meses depois, ninguém exigiu eleições. Ao invés, todos os partidos da AD se julgavam herdeiros do legado do falecido líder. Nesse tipo de estabilidade é exemplo o Reino Unido.

Também não faz sentido alegar que a eleição de um órgão colegial, resultante de listas partidárias, se deve à vitória de uma personalidade em concreto, por exemplo o primeiro-ministro. O único órgão de soberania que é unipessoal é o Presidente da República. E, mesmo este, nos seus impedimentos, é substituído pelo presidente da AR, que se torna Presidente da República interino.

A lei eleitoral para as autarquias estabelece expressamente que o cabeça de lista do partido ou do grupo mais votado será o presidente da câmara, no caso do município, e o presidente da junta, no caso da freguesia. Não obstante, em caso de morte, de incapacidade, de renúncia ou de perda de mandato desse cabeça de lista, não se marcam eleições: a lista vencedora faz subir os demais, tal como as outras em relação aos seus eleitos impedidos. 

João Galamba foi ouvido na AR, onde questionado por alguns deputados, garantiu que não se demitia. Marques Mendes, no seu comentário dominical na SIC, colocou a hipótese de a atitude de Galamba mostrar que Galamba tem o PM nas mãos.

Marques Mendes sabe que um ministro não depende da AR, mas que o seu lugar depende do PM, ao qual incumbe propor a exoneração ao PR. Repito-me, ao dizer que João Galamba se deveria ter demitido na primavera. Todavia, o PR não deveria ter exigido ou sugerido a necessidade da sua exoneração. Cabe ao PM propor a nomeação ou a exoneração e ao PR decretá-las.

Aliás, o comentador propalou Urbi et Orbi a alegada intenção de o PM, na sua comunicação de 11 de novembro, pretender condicionar a Justiça, quando do seu teor se deduz uma tentativa, porventura insuficiente, da explicação do que se passava com a captação do investimento. Mais supôs, demagogicamente, que o PM pretendeu condicionar a Justiça, por saber que o MP iria pedir a prisão preventiva de dois arguidos, até há pouco seus amigos, mas que descartou depois de os usar.  

Acusam João Galamba de ter retirado para si as competências do ministro da Economia com a publicação da Portaria n.º 248/2022, de 28 de setembro. Essa portaria altera a Portaria n.º 96/2004, de 23 de janeiro, no sentido de algumas competências que estavam na área do Ministério da Economia passarem para o membro do Governo responsável pela área da Energia. Isto deve-se à alteração da orgânica do governo e não às supostas ambições do então secretário de Estado da Energia. Efetivamente, o despacho de indiciação do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) refere que João Galamba é suspeito de ter aprovado, em 2022, uma portaria com contributos dados por advogados ligados à Start Campus, em benefício desta. Porém, a portaria em causa não tem nada que ver com o projeto do centro de dados, mas com o uso de antigas centrais termoelétricas, o que revela uma inconsistência do despacho Ministério Público (MP).

Também o MP reconheceu, durante o interrogatório a um dos arguidos que se enganou na transcrição de uma escuta trocando o nome do ministro da economia com o do PM, cujos nomes são parecidos.   

Efetivamente, a Justiça não pode nem deve ser condicionada pelos políticos stricto sensu (esta expressão remete para o facto de toda a atividade da Justiça também ser atividade política, porque de órgãos constitucionais do poder político), mas também os operadores da Justiça não podem nem devem, de forma aligeirada, pronunciar-se sobre os detentores do poder político, de modo a perturbar inexoravelmente a governação. Confundir portarias, nomes de governantes, publicitar inquéritos a membros do governo (sem confirmação do fundamentos das suspeitas), a não ser em flagrante, omitir num comunicado a data do início de um inquérito ao PM, passar à comunicação social informação reservada ou sob segredo de justiça, são coisas que não dignificam a Justiça e podem causar danos colaterais irreparáveis ou, pelo menos, custos de oportunidade.     

Com efeito, a dissolução do Parlamento deita por terra a revisão constitucional em curso, aliás quase na reta final, ficando por resolver as questões dos metadados e das emergências sanitárias.       

Não vale o presidente do STJ, depois de vir a terreiro clamar que a corrupção atingiu a administração pública e criticar o governo por não ter reformado a Justiça, vir dizer que não havia motivo para a demissão do PM. Não o havia do ponto de vista jurídico, mas havia-o no quadro político da decência, também porque estamos perante mais um caso de Justiça-espetáculo.

Por fim, uma referência à seguinte nota da página de Presidência da República de 13 de novembro: “Na sequência das propostas do primeiro-ministro, agora recebidas, o Presidente da República exonerou, a pedido dos próprios e com efeito imediato, João Saldanha de Azevedo Galamba, das funções de Ministro das Infraestruturas, bem como Pedro Miguel Ferreira Jorge Cilínio, das funções de Secretário de Estado da Economia.”

Não são de contestar as exonerações em causa, nem outras que venham a seguir, mas o “com efeito imediato”. Com efeito, não se diz quem sucede aos governantes ora exonerados. Para a exoneração ter efeito imediato, deveria ter sido dito o que será feito das pastas em causa. Quem sucede aos exonerados: novos titulares, outros membros do governo, PM a acumular as pastas em causa, etc.? Serão elas extintas?

Se passar o primeiro-ministro a acumular com as suas funções as destas pastas, é caso para nos interrogarmos por que motivo vai ser exonerado. Talvez o tempo venha a dar razão a quem sugeria a não realização intempestiva de eleições antecipadas.

***

Estes apontamentos não abrangem, obviamente, tudo o que se passa nas instituições, mas dá conta de sintomas de baralhação generalizada. É pena que a regeneração endógena não funcione.   

2023.11.13 – Louro de Carvalho

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