sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Por serviço de proximidade ou por esvaziamento progressivo do SNS?

 

Após a experiência da entrega às farmácias da vacinação contra a gripe e contra a covid-19, referente a maiores de 60 anos, reservando ao serviço público a vacinação dos portadores de comorbidades com idade inferior, a Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS), como anunciou o diretor executivo, quer alargar a vacinação contra o tétano e a difteria em adultos às farmácias comunitárias, para aumentar a cobertura da população.

Em razão do sucesso da vacinação contra a covid-19 e contra a gripe, em que foram já administradas mais de 3,3 milhões de vacinas, Fernando Araújo defendeu a importância de aproveitar esta “máquina instalada” nas farmácias para alargar a outras vacinas do Programa Nacional de Vacinação (PNV), nomeadamente à vacina do tétano e da difteria. “Há capacidade, há disponibilidade e acho que é uma via importante para aumentar essa adesão neste tipo de vacinas”, afirmou, a 20 de novembro, na Conferência “As Farmácias na Jornada da Saúde das Pessoas”, na Assembleia da República, em Lisboa, promovida pela Associação Nacional das Farmácias (ANF), que apresentou o Livro Branco das Farmácias Portuguesas.

Citando dados dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), disse que, em 2022, terão sido vacinados cerca de meio milhão de utentes com estas vacinas. E adiantou que vão trabalhar com a Direção-Geral da Saúde (DGS), em termos técnicos e das normas, com o Infarmed, para regulamentar, com a Ordem dos Farmacêuticos (OF) e com as farmácias, para analisar a forma de o fazer. “Mas temos todas as condições de também, no âmbito do PNV, no caso dos adultos, aumentar os locais de vacinação”, defendeu, garantindo que “os cuidados de saúde primários continuam a ser sempre um local aberto para esse fim”.

Contudo, disse, na vacinação “não se podem perder oportunidades”. Quando um utente se desloca à consulta do médico de família ou vai ao enfermeiro de família, temos sempre que avaliar se o plano de vacinação está ou não a ser cumprido, se não estiver, oferecer essa resposta”, salientou, defendendo que o alargamento desta possibilidade às mais de três mil farmácias cria uma “capacidade única de chegar a quem, por vezes”, não se consegue chegar.

Além desta medida, a DGS tem estado debruçada sobre outras que pretende impulsionar em termos de agenda, em 2024, e que se cruzam com algumas do Livro Branco como a “intervenção terapêutica em situações clínicas ligeiras” pelas farmácias.

A DE-SNS está a fazer um trabalho de base com a Comissão Nacional de Proteção de Dados, (CNPD) “imprescindível para esse fim”, esperando que, no início de 2024, consigam estabelecer os parâmetros e as bases necessários.

Fernando Araújo destacou como medida “mais emblemática, na área do VIH [vírus da imunodeficiência], a possibilidade de as farmácias terem acesso à PREP [profilaxia pré-exposição]. Este trabalho é no sentido de os farmacêuticos, mas também de os psicólogos e de os nutricionistas terem acesso “a partes do registo de saúde eletrónico” do utente, a “informação clínica valiosa para a sua atividade” de, simultaneamente, poderem fazer registo da sua atividade clínica no processo do utente. O que está a ser trabalhado com a CNPD é a limitação das áreas críticas em termos de segurança para os utentes.

Revelou ainda o objetivo de desenhar um projeto-piloto numa área geográfica delimitada com uma patologia, por exemplo, as infeções do trato urinário baixo não complicadas em mulheres. Este trabalho terá que ser feito com a DGS e com protocolos de diagnóstico e de tratamento previamente validados. “Queremos, de uma forma controlada, reduzir a pressão dos médicos de família e a procura que é desnecessária na urgência, quando há outro tipo de soluções que estão previstas ou disponíveis também no sistema de saúde”, defendeu.

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Por seu turno, a ANF propõe a integração das farmácias comunitárias nos rastreios nacionais, como é o caso do rastreio dermatológico ou do cancro colorretal, sempre “em colaboração com os restantes serviços de saúde”. Sugere a possibilidade de auxiliarem nas situações clínicas ligeiras, contribuindo para a redução da sobrecarga das urgências hospitalares, e a criação do farmacêutico de família. São medidas, entre outras, constantes no já referido Livro Branco.  

O Livro Banco, de 154 páginas, lança um repto aos decisores políticos, reguladores e parceiros para alterações e propostas que melhorem a sustentabilidade do sistema de Saúde, através de modelos colaborativos com as farmácias.

Ema Paulino, presidente da ANF, considerou que este livro branco, que “não partiu de uma folha em branco”, reflete “a relação da farmácia e dos seus profissionais de saúde com as pessoas e materializa a sua intervenção na sociedade”. E frisou que o desenvolvimento farmacêutico ao longo de décadas, onde as farmácias se adaptaram às necessidades da população, na missão de “otimizar a efetividade das terapêuticas” e de contribuir para a sua melhor qualidade de vida.

Destacou as propostas presentes segundo as quais as farmácias podem apoiar o sistema de Saúde, como a prevenção e rastreio de hepatites virais, do VIH e de outras infeções, a integração nos rastreios nacionais, a referenciação para outros níveis de cuidados, a intervenção ativa na saúde mental e a prescrição social, sinalizando e encaminhando pessoas para as instituições adequadas, se necessário. E realçou o conceito de farmacêutico de família, que considera ter “um enorme potencial”, na perspetiva de haver esta figura com quem o médico de família e o enfermeiro de família podem interagir e, dessa forma, potenciar, enquanto equipa multidisciplinar de saúde, os cuidados que são prestados à população.

Presente na conferência, o diretor executivo do SNS afirmou que o Livro Branco está “muito bem estruturado e abre um conjunto de dimensões que podem e devem ser exploradas”. “Importa agora que este livro branco não fique numa prateleira qualquer de uma biblioteca ou numa ‘cloud’ algures no sistema”, comentou, admitindo que o documento contém “propostas inovadoras e medidas que são motivo de reflexão há alguns anos”, mas não implementadas. E disse que “é o tempo de fazer acontecer”: “Temos uma janela de oportunidade. Eu diria que politicamente a situação é mais complexa, mas não é isso que nos deve demover de tecnicamente atingirmos resultados, defendendo os cuidados de saúde aos Portugueses”.

Para isso, defendeu, “é necessário algo, como o que foi feito na construção deste Livro Branco, que é uma parceria e um envolvimento de todos os agentes do sistema de saúde”, para permitir acesso e equidade aos cuidados de saúde, “olhando sempre numa perspetiva de futuro”.

Fernando Araújo realçou o papel das mais de três mil farmácias e postos farmacêuticos em todo o país, com mais de 10 mil farmacêuticos “altamente qualificados, em quem os portugueses confiam e, por isso, é tempo de os integrar uma política ativa de saúde pública”.

Segundo a ANF, o Livro Branco das Farmácias Portuguesas é uma ferramenta orientadora do desenvolvimento das farmácias na próxima década, com o objetivo de ser uma peça essencial para projetar o futuro do setor e da sua ação no contexto da Saúde. Materializa a ambição das farmácias em continuar a transformar os cuidados de saúde e propõe áreas prioritárias de atuação numa jornada tridimensional para a farmácia: “transformação da jornada da saúde das pessoas”, “capacitação profissional e tecnológica catalisadora da mudança” e “conhecimento e regulação ao serviço da sociedade”.

É amplo o espectro de atividades do farmacêutico comunitário. Portugal é referido, nos meios políticos e científicos, como um dos países na Europa em que um maior leque de serviços é disponibilizado à população. Pela ampla cobertura geográfica que as farmácias têm no território e pela elevada competência técnico-científica dos seus recursos humanos, estas estruturas são aliados essenciais para a garantia dos pilares preconizados no SNS: a acessibilidade ao medicamento e a equidade na prestação de cuidados de saúde de qualidade a todos os cidadãos, independentemente da sua localização geográfica.

Em muitas zonas, as farmácias são a única estrutura de saúde disponível para cuidados de proximidade, sendo aí o farmacêutico o único profissional capaz de evitar deslocações a outros serviços de saúde perante transtornos de saúde menores, através da dispensa e aconselhamento sobre medicamentos não sujeitos a receita médica e de medicamentos de venda exclusiva em farmácia. Tem papel relevante na promoção da literacia em saúde e na navegação do cidadão no sistema de saúde, favorecendo o bom uso dos escassos recursos disponíveis.

O farmacêutico comunitário tem posição privilegiada para contribuir em áreas como a gestão da terapêutica, administração de medicamentos, determinação de parâmetros, identificação de pessoas em risco, deteção precoce de doenças e promoção de estilos de vida mais saudáveis.

Competente em farmacoterapia, o farmacêutico, tem papel determinante na promoção do uso responsável do medicamento, em articulação com os restantes profissionais de saúde. Nesta área, destacam-se alguns serviços de diferentes graus de complexidade:

- Gestão e otimização da terapêutica periódica e enquadrada num plano contínuo com vista a objetivos terapêuticos e à identificação e resolução ou prevenção de problemas relacionados com medicamentos – um serviço direcionado, sobretudo, para pessoas com terapêuticas crónicas em geral, ou para grupos específicos de patologias, nomeadamente a diabetes, asma/doença pulmonar obstrutiva crónica ou hipertensão/dislipidemia;

- Revisão da medicação, a qual poderá ser feita, de forma isolada, recorrendo ao histórico farmacoterapêutico da farmácia, ou articulada com a medicação proveniente de outras fontes – sendo este último serviço particularmente útil em pessoas que transitam entre diferentes níveis de cuidados, nomeadamente o hospital e os cuidados continuados;

- Promoção da utilização de medicamentos genéricos, que se encontra cofinanciada pelo SNS, tendo papel importante na promoção da adesão à terapêutica;

- Promoção do autocuidado e orientação do cidadão na utilização de medicamento que recorra a dispositivo médico para correta administração;

- Encaminhamento do doente para diversos programas de adesão à terapêutica, disponíveis em vários formatos, desde o envio de alertas até à preparação individualizada da medicação. 

A prevenção da doença e das suas complicações postula a identificação de fatores de risco e de referenciação atempada para cuidados médicos especializados e adequados à situação em causa. Praticamente em todas as farmácias, os cidadãos podem entrar a qualquer hora do dia e, sem marcação, fazer a determinação da pressão arterial, glicémia, colesterol, índice de massa corporal, débito expiratório máximo instantâneo ou calcular o risco cardiovascular, entre muitos outros testes mais recentes que têm vindo progressivamente a ser implementados. 

Na Saúde Pública, é importante o contributo dos farmacêuticos na preservação do ambiente, através da participação em programas de reciclagem (e.g. recolha de radiografias) ou de gestão de resíduos (e.g. recolha de medicamentos fora de uso), bem como da participação em programas que versam comportamentos aditivos e dependências e do envolvimento em programas de minimização de danos. O incentivo à adoção de comportamentos saudáveis tem sido área cada vez mais abraçada pelos farmacêuticos, começando já a ser frequentes as farmácias que dispõem do serviço de cessação tabágica, por exemplo.

Os farmacêuticos comunitários estão empenhados em disponibilizar cada vez mais serviços essenciais à saúde do utente, quer na vertente preventiva quer na vertente terapêutica.

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Porém, a Ordem dos Enfermeiros (OE) não concorda com a vacinação do tétano e da difteria (integrantes do PNV) nas farmácias que estas efetuem intervenções terapêuticas em situações clínicas ligeiras, acusando a DE-SNS de “desmantelar o SNS” e canalizar para privados verbas que deviam ser investimento público. “Não podemos permitir que se esteja a desmantelar o SNS desta forma. A prioridade do governo deveria ser o reforço dos recursos dos cuidados de saúde primários, em vez de canalizar verbas para empresas privadas sem competência para garantir condições adequadas quer à administração de qualquer vacina, quer para efetuar intervenções terapêuticas. É a segurança das pessoas que está em causa”, defende a OE em comunicado.

E, em carta aberta, de 23 de novembro, a entregar ao diretor executivo do SNS, os enfermeiros mostram-se preocupados com as competências que poderão passar para os farmacêuticos. “Apelamos que o diretor executivo do SNS leia os estatutos das profissões e que perceba que não as pode atropelar”, afirma Paula Maia, representante da lista C, que foi candidata aos órgãos regionais do Norte da Ordem dos Enfermeiros e que assina a carta aberta. 

Entre outras preocupações, os enfermeiros chamam a atenção para as propostas do Livro Branco das Farmácias Portuguesas, ao sugerir que as farmácias apoiem o SNS em diversas áreas, como a prevenção e rastreio de hepatites virais, a vacinação e a saúde mental, por exemplo.

Não veem com bons olhos as palavras de elogio de Fernando Araújo ao livro e pedem que leia os estatutos de cada uma das profissões. “No Estatuto dos Farmacêuticos, particularmente no seu artigo 75.º, não conseguimos vislumbrar a base para os eixos estratégicos/dimensões a que se propõe a Associação Nacional das Farmácias e as Farmácias Portuguesas”, lê-se na carta aberta.

Paula Maia explica que, além de a “transferência” de competências colidir com o estatuto dos farmacêuticos, põe em causa o lugar e os postos de trabalho dos enfermeiros. “Isto começou com as vacinas da covid-19 e da gripe, agora começam a entrar no plano nacional de vacinação e será alargado. Abriu-se a caixa de pandora, nomeadamente na questão da vigilância de saúde, da saúde mental e da referenciação para o hospital”, sustenta, revelando que os enfermeiros temem pela segurança dos utentes, pois “tudo o que é vigilância de saúde, de grávidas, de crianças e dos doentes crónicos, são os enfermeiros que fazem”. Se tal vigilância for feita pelo farmacêutico, menos preparado, há a questão do “risco para a população”.

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Não me preocupa a perda de competências dos enfermeiros, perda que não ocorrerá, a menos que a concorrência configure a perda (do monopólio corporativo). Todavia, a DE-SNS, em vez de colher a lição do serviço de proximidade que as farmácias prestam com interesse comercial (as entidades comerciais desistem, logo que o lucro seja exíguo), passa-lhes valências essenciais de serviço público, a troco de pagamento. Ou seja, em vez de investir na formação e na carreira de mais médicos e de mais enfermeiros e de criar mais e melhores serviços de efetiva proximidade e atendimento 24/24 horas, contratualiza com privados. E, assim, pouco a pouco, se esvai o SNS. Para isso, não precisávamos da DE-SNS.

2013.11.23 – Louro de Carvalho  

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