terça-feira, 7 de novembro de 2023

A presente crise política eclodiu sem aviso prévio e faz estragos

António Costa, primeiro-ministro (PM) dos XXI, XXII e XXIII governos constitucionais, quando interpelado sobre eventual responsabilidade criminal de membros do executivo, sempre vincou que é preciso respeitar o tempo da Justiça, devendo as autoridades proceder à investigação de todos os casos sobre os quais recaia suspeita fundamentada, porque “ninguém está acima da lei”.

Segurou os seus colaboradores enquanto pode, talvez durante demasiado tempo, em alguns casos, segundo o princípio que sempre foi badalando: “à Justiça o que é da Justiça, à Política o que é da Política”. E chegou a referir que o facto de alguém ser constituído arguido não implica, necessariamente, que tenha cometido qualquer crime. Com efeito, a constituição de arguido é um instrumento jurídico que pode funcionar a favor do suspeito, dando-lhe o ensejo de se defender ou o de optar pelo silêncio. Nestes pressupostos, é acompanhado por politólogos e por políticos da nossa praça (estes, sobretudo quando lhes convém).

Não obstante, são frequentes as vozes que bradam aos céus de que não se pode fazer justiça na praça pública, condenando as pessoas sem serem julgadas, pois deve ser acolhida a presunção de inocência, mas que sustentam que, independentemente do que a Justiça deva ou possa fazer, os factos políticos que suscitem responsabilidade política devem ser tratados politicamente. Assim, tem-se pedido, intempestivamente, a cabeça de governantes e de autarcas, invocando a necessidade de tirar consequências políticas de algumas situações ou de algumas práticas.

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Entretanto, a 7 de novembro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) emitiu um comunicado que refere estarem a “ser realizadas diligências de busca para identificação e apreensão de documentos e outros meios de prova de interesse para a descoberta da verdade”, nos termos de inquérito dirigido pelo Ministério Público (MP) do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). As diligências foram ordenadas ou autorizadas pelas entidades competentes – MP e juiz de Instrução Criminal (JIC) – e estão a ser executadas com o apoio operacional de elementos da Polícia de Segurança Pública (PSP) e da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

Foram ordenadas/autorizadas, em concreto, 17 buscas domiciliárias; cinco buscas em escritório e domicílio de advogado; 20 buscas não domiciliárias, designadamente, em espaços utilizados pelo chefe do gabinete do PM, no Ministério do Ambiente e da Ação Climática, no Ministério das Infraestruturas e na Secretaria de Estado da Energia e Clima, na Câmara Municipal de Sines e na sede/espaços de outras entidades públicas e de empresas. As buscas nos espaços utilizados pelo chefe do gabinete do PM estão a ser acompanhadas por um JIC.  

Participam nas buscas 17 magistrados do MP, três magistrados judiciais, dois representantes da Ordem dos Advogados (OA), cerca de 145 elementos da PSP e nove da AT.

Poderão estar em causa, designadamente, factos suscetíveis de constituir crimes de prevaricação, de corrupção ativa e passiva de titular de cargo político e de tráfico de influência. Os factos estão relacionados com as concessões de exploração de lítio nas minas do Romano (Montalegre) e do Barroso (Boticas); com um projeto de central de produção de energia a partir de hidrogénio em Sines, apresentado por consórcio que se candidatou ao estatuto de Projetos Importantes de Interesse Comum Europeu (IPCEI); e com o projeto de construção de “data center” desenvolvido na Zona Industrial e Logística de Sines pela sociedade “Start Campus”.

Face aos elementos recolhidos e por se verificarem os perigos de fuga, de continuação de atividade criminosa, de perturbação do inquérito e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, o MP emitiu mandados de detenção fora de flagrante delito do chefe de gabinete do PM, do Presidente da Câmara Municipal de Sines, de dois administradores da sociedade “Start Campus” e de um advogado/consultor contratado por esta sociedade. Os detidos, à guarda da PSP, serão presentes a primeiro interrogatório judicial para aplicação das medidas de coação.

O MP procedeu ainda à constituição como arguidos de outros suspeitos da prática de factos investigados nos autos, designadamente do Ministro das Infraestruturas e do Presidente do Conselho Diretivo da Agência Portuguesa do Ambiente.

No decurso das investigações surgiu o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do PM e da intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido, o que será autonomamente analisado no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), por ser esse o foro competente.

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Nenhum dos elementos indicados está ainda condenado nem acusado. Há apenas arguidos. Porém, alguns foram detidos pela PSP, não pela Polícia Judiciária (PJ), como é usual, em casos destes. O PM nem sequer é constituído arguido, mas sustenta que não traz dignidade ao exercício de chefe do governo estar sob suspeita. Por isso, apresentou, de imediato, ao Presidente da República (PR) o pedido de demissão do cargo de primeiro-ministro, que foi aceite pelo chefe de Estado. O PM tirou, logo, consequências políticas da situação e fez bem. Não tinha outra hipótese – diga-se em abono da verdade política –, mas podia ter tentado ganhar tempo, invocando os princípios a que se agarrava na defesa dos colaboradores ou ao não fazer defesa ativa do seu antecessor apoquentado pela Justiça, que não logrou levá-lo a julgamento. Fez bem, em meu entender, em mostrar-se despegado do poder (porfiando que não se candidataria a PM) e grato aos Portugueses, aos partidos da oposição, ao Partido Socialista (PS) e ao PR.        

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Porém, a circunstância inesperada (pelos vistos, também para António Costa) merece reflexão.

A Política não se pode meter na Justiça, porque, se o fizer, “cai o Carmo e a Trindade”; mas a Justiça pode condicionar a Política e condiciona-a. Os políticos são tidos como corruptos, enquanto os operadores judiciários são de comprovada virtude. Contudo, os factos desmentem a generalização do mau juízo sobre políticos (que são muitos) e do bom juízo sobre operadores judiciários (que são relativamente poucos). E, no caso vertente, a Justiça atirou o governo pela janela, quando o PM nem sequer é arguido. É certo que dificilmente teria condições políticas para continuar na plena efetividade de funções, já que tem colaboradores próximos sob detenção. Contudo, o PR bem poderia ter-lhe criado, prudencialmente, condições de continuidade, até que fossem conhecidos os resultados da eventual investigação patrocinada pelo STJ.      

Há dados que tornam estranha, no momento, a irrupção destas 42 diligências de busca domiciliária e não domiciliária a detentores de cargo político (incluindo o PM) ou a personalidades relacionadas com eles. Desde logo, a investigação iniciada em 2020 só dá brado público quase três anos depois, tendo ocorrido, há quase dois, eleições legislativas, que outorgaram ao PS a maioria absoluta. Porquê só agora a devassa?            

Outro facto estranho é o PM ser informado unicamente através de comunicado da PGR de que estava sob suspeita, devendo ser investigado sob a direção do STF, que é o foro competente para o caso deste governante. Afinal, a opacidade e a prepotência não são monopólio dos políticos stricto sensu. Agregada a esta estranheza vem a de a procuradora-geral da República ter sido convocada pelo PR para Belém a “explicar” os contornos do processo que levou a que, pela primeira vez, a residência oficial de um PM tenha sido alvo de buscas judiciais. Lucília Gago esteve no Palácio de Belém, desde que António Costa acabou a sua audiência com o chefe de Estado, tudo levando a crer que foi convocada antes de o PM ser ouvido.

Lucília Gago, a um ano do fim de mandato, que fora escolha polémica de Costa e de Marcelo para suceder a Joana Marques Vidal, rumou a Belém a pedido do PR, para “explicar” o que está em causa no processo que resultou na detenção de cinco pessoas – entre as quais, Vítor Escária, chefe de gabinete de Costa, e Lacerda Machado, o advogado conhecido como amigo do PM. E, pouco antes de a procuradora-geral sair de Belém, o seu gabinete emitiu um comunicado sobre o que está em causa, admitindo que alguns suspeitos invocaram o nome do PM no processo, ao ponto de abrir aí uma linha de investigação junto do STJ, por se tratar de uma das três altas figura do Estado (PR, presidente da Assembleia da República e PM).

Outro dado estranho é a operação do MP decorrer com o apoio de equipas da PSP – e não com as da PJ, ao contrário do que é habitual em casos desta dimensão. Na verdade, fonte policial, sem especificar o motivo, disse que a PSP e o MP estavam a efetuar buscas em vários pontos do país.

Em causa está um processo que envolve suspeitas de crimes no âmbito de dois projetos: extração de lítio, em Montalegre, a construção de central de produção de hidrogénio verde, em Sines.

Fonte da PSP referiu à Lusa que foram mobilizados cerca de 140 polícias para a operação e que o inquérito está a cargo do DCIAP, mas o comunicado da PGR dá números mais exatos.

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Pensando nos alegados crimes que estão em causa e nas possíveis causas para a detenção de cinco arguidos, é de admitir que a situação criada ao governo traz mais problemas de ordem pública e mais alarme do que a não detenção. Além disso, nada garante que a prática dos alegados crimes não continue, que o inquérito não seja perturbado e que se afaste o perigo de fuga.

Quanto à substância, tudo leva a crer que, passada a maré da turbulência, a uva ficará asfixiada pelo excesso de parra. Dou dois exemplos para esta suspeita. Segundo a literatura produzida sem paixão político-partidária, o PM foi surpreendido em quatro escutas; em três, não há qualquer suspeita, por o assunto ser de natureza institucional ou de natureza pessoal; e, numa outra, em que pode haver suspeita, o então presidente do STJ, que não validou as outras, acabou por aceder ao pedido do MP, embora tenha reconhecido não haver matéria criminal. Além disso, vinca-se o facto de uma empresa ou grupo empresarial ter sido constituído uns dias antes da assinatura do contrato para o desenvolvimento de um dos projetos. Isso, que é muito comum, pode ser mau, mas não é crime. E foi esclarecido que a lei não proíbe que uma empresa agregue a si outras empresas para concorrer a um negócio público. Se havia suspeita de dolo, isso deveria ter sido esclarecido fora da ribalta pública. Aliás, se agíssemos pelo que se diz e pelas suspeitas de influência política, sei lá se a Presidência da República ou alguns setores da Justiça e da Administração Pública não iriam pela janela fora. Andamos a desviar-nos duns casos para outros.

É óbvio que me cinjo ao juízo sobre o PM, que não sobre todos os seus colaboradores.

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O PR tem nas mãos a solução da crise. Parece que está a agir com demasiada pressa. Convocou os partidos para o dia 8 e o Conselho de Estado para o dia 9. Nem houve tempo de respirar.

Os resultados das últimas eleições legislativas aconselhariam, em democracia sustentada em regras sólidas, a que à maioria parlamentar fosse dada a possibilidade de apresentar um novo PM. Todavia, o PR considerou, desde início, que o eleitorado deu a maioria ao PS, mas envolvendo, necessariamente, a personalidade de António Costa (o que é discutível), pelo que tem acenado com a dissolução parlamentar como solução de eventual crise política, sustentando-se no precedente de Jorge Sampaio, que dissolveu o Parlamento, apesar de, neste, haver maioria estável.

Ora, se quer ser consequente com o que tem afirmado, em vez de procurar o interesse nacional, e seguindo o exemplo de Jorge Sampaio, deverá deixar prosseguir do debate do Orçamento do Estado até à aprovação final e respetivas promulgação e publicação, para o que deverá protelar, pelos dias necessários, o decreto de dissolução, se esta for, de facto, a sua vontade. Ao invés, dará a entender que apreciou o surgimento antecipado de concretizar o desígnio de entregar o poder à sua família política. Nada de inconstitucional nem ilegal, mas politicamente questionável!

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