terça-feira, 14 de novembro de 2023

Ministério Público não é intocável e muito menos impassível de crítica

 

António Costa pretende que o Partido Socialista (PS) não caia na armadilha de fustigar, com ataques, o Ministério Público (MP), para este não se vitimizar, em vez de reconhecer que desferiu golpe letal sobre a governação do PS.

Com efeito, o PS e o atual primeiro-ministro (PM) estiveram contra a reforma proposta pelo Partido Social Democrata (PSD), de Rui Rio, que atacava a autonomia do MP, atenção político-jurídica, agora, retribuída pela inviabilização da continuidade da governação do PS, na leitura que o Presidente da República (PR) assumiu, acolitado por quase todos os partidos com assento parlamentar, que lhes satisfez a ambição de dissolver a Assembleia da República (AR) e convocar eleições antecipadas, interrompendo a legislatura antes de ela chegar a meio. 

Segundo a Constituição da República Portuguesa (CRP), ao MP, que “goza de estatuto próprio e de autonomia”, compete “representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar”, “participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”. Os seus agentes, cuja “nomeação, colocação, transferência e promoção” competem à Procuradoria-Geral da República (PGR), que detém “o exercício da ação disciplinar”, “são magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados, não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos, senão nos casos previstos na lei” (ver artigo 219.º).

Face a estas disposições constitucionais, não é atribuível ao MP a independência (ver artigo 203.º) reconhecida aos tribunais, nem aos seus agentes a inamovibilidade dos juízes (ver artigo 216.º). Há, pois, que apreciar os últimos desenvolvimentos da cena política na diferença entre o serviço que o MP, cujo órgão superior é a PGR (ver artigo 220.º), com a prevalência das decisões dos tribunais (que “são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas”) sobre as de “quaisquer outras autoridades” (ver artigo 205.º). Ora, se não estamos perante casos de sustentada suspeita de crimes inerentes a funções da governação, do que os atuais sintomas nos permitem duvidar, estaremos perante um verdadeiro “golpe de Estado” do MP, a partir da alegação de uma série de “atos demasiado graves e bem encadeados e cerzidos, que não deixam dúvidas de que obedecem a um deliberado propósito de provocar o máximo de danos políticos aos PS e ao País” (Vital Moreira, blogue “Causa nossa”, 11-11-2023).    

Com efeito, remete-se para o plano criminal uma operação de lobbying empresarial atinente a um vultuoso investimento estrangeiro vantajoso para o País e a liberdade governativa de o avaliar, onde não se vislumbra corrupção relativamente aos governantes visados. Regista-se a justificação displicente da abertura de “inquérito” ao PM no final do comunicado da PGR, de 7 de novembro, sabendo que tal só resultaria na sua demissão imediata, para esclarecer, a 11 de novembro, que a investigação a António Costa começara a 17 de outubro e que ficará dependente da evolução de todo o processo, ou seja,  sem fim à vista, tudo sem que a procuradora-geral da República tivesse o cuidado de, previamente, informar dessas graves circunstâncias o PR – a quem deve a nomeação e de cuja confiança institucional depende. 

Na verdade, se a investigação, que ameaça ruir aos bocados, não passar de minuciosa teia de aranha, será intentona para atacar a esfera da liberdade política do governo e até da sua obrigação de tomar medidas, revelando atitude de deslealdade institucional da líder do MP.    

Não totalmente satisfeito com a demissão de dois ministros (Azeredo Lopes, da Defesa Nacional, e Eduardo Cabrita, da Administração Interna), ilibados em tribunais, expondo a leveza do MP na acusação, agora o zelador do interesse que a lei determinar e representante do Estado foi mais alto: atingiu outros dois ministros e a cabeça do governo, sabendo que, em relação ao PM, bastaria a publicação de qualquer suspeição, ainda que infundada – como talvez seja o caso –, para o levar à demissão, obviamente, não por motivos jurídicos, mas por falta de condições políticas. E, assim, provocada a queda do governo, ficou o País numa inédita crise política. E o chefe de governo, que tinha credível palavra nos areópagos europeus e apresentava positiva imagem de Portugal, desceu do pedestal e, com ele, foi apeado o país de corruptos.

Não podiam deixar de ser antecipáveis as perversas consequências da demissão do governo, quer em termos políticos – cerca de meio ano sem governo em plenitude defunções e a subsequente instabilidade governativa – quer no plano económico, neste caso, a perda do investimento em causa, o adiamento da decisão sobre o novo aeroporto, o atraso e até (como prevê a comissão de acompanhamento do PRR – Plano de Recuperação e Resiliência) dos investimentos do PRR. Também no plano financeiro, a eventual desconfiança dos mercados financeiros levará ao agravamento do custo da dívida pública, à reputação externa do País e à confiança dos investidores estrangeiros. Por isso, a espetacular e irresponsável investida do MP contra a liberdade da ação política do governo, acompanhada da conduta negligente da PGR, tem de ser avaliada nesta situação de crise.

Vital Moreira, no texto citado, esclarece que “a justiça é função dos juízes, constitucionalmente imparciais, independentes e irresponsáveis pelas suas decisões”, ao passo que o MP é “uma instituição auxiliar da justiça, especialmente quanto à investigação e à acusação penal, devendo, porém, mesmo aí, respeitar as prioridades de política penal definidas pela AR”. Assim, os magistrados do MP, que não são imparciais, independentes e irresponsáveis, estão inseridos numa “hierarquia”, chefiada pelo procurador-geral da República (PGR), “sendo pessoalmente responsáveis pela sua atividade, em última instância, perante ele”. E o PGR “só é relativamente independente, visto que é livremente nomeado e demitido pelo PR, sob proposta do governo”, pelo que, “institucionalmente responsável perante aquele”. 

Diz o renomado constitucionalista que o MP não é um órgão “judicial”, mas apenas “judiciário”. Por isso, deve prestar contas perante a AR e perante o País, por intermédio da PGR. A pretensa independência do MP, como se fosse magistratura equiparada à magistratura judicial, é um estratagema para o tornar imune à crítica pública. Isto leva à necessidade recolocar o MP e a PGR no seu lugar constitucional de auxiliar da justiça responsável perante o PR e perante a AR. Não pode ser “quarto poder político” (para o que não tem legitimidade, nem responsabilidade política). Porém, tem-se autoerigido abusivamente “em instrumento de controlo da liberdade política dos governos na prossecução do interesse público”.

É arrepiante ver comentadores de uma direita oposicionista, até agora credível, aplaudir esta onda de criminalização da liberdade de ação governamental na atração de investimento estrangeiro, esquecendo as propostas do PSD para reduzir a abusiva autogestão do MP, não prevendo que, no futuro, um governo dessa área possa vir a sofrer de ataque similar. Aliás, teve-o no tempo de Passos Coelho: um ministro acusado, estrondosamente, pelo MP foi ilibado.

Também Vital Moreira considera justificável a comunicação pública do PM a 11 de novembro, de que ressalta quea ponderação entre as vantagens económicas de um grande investimento privado e a defesa do ambiente e sobre a eventual necessidade de alterações regulamentares é uma questão do foro político” (portanto, competência do Governo, não do foro judicial – “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”); e que o PM, como chefe do governo, “assume a responsabilidade política pela decisão tomada, cobrindo a ação conforme dos seus ministros”. Tornou-se claro que o governo não responde politicamente perante o MP.

O governo pode alterar leis (salvo em matéria reservada à AR) e regulamentos, quando necessário para prosseguir o interesse público. Tendo havido eventuais atos ilegais, é de proceder à sua impugnação no foro competente, a justiça administrativa (por norma, o MP usa tal poder).

Há, na verdade, uma diferença grande entre ilegalidade e ilícito penal. E este pode existir na prática de atos legais. Assim, uma ilegalidade só é penalmente punível se, autonomamente, preencher um crime tipificado como tal na lei, o que o MP tem de acusar e provar.

Ora, passados estes dias sobre a demissão do PM, não se sabe que possível ilicitude (muito menos penal) lhe pode ser imputada. Em democracia, não se derruba um governo deste modo. Isso configura ditadura da estrutura judiciária, o que nem ao poder judicial é legítimo (só o seria após decisão judicial transitada em julgado)

Persiste a questão do dinheiro escondido no gabinete de Vítor Escária. O caso é lamentável (no mínimo, abusivo e imprudente), mas implica o próprio, não o PM, cabendo ao MP o ónus da prova no sentido de o dinheiro provir de “luvas” recebidas no âmbito do processo e não de outra origem. Para já, não há, na investigação, nenhum indício nesse sentido, sendo óbvio que a empresa interessada nem precisava dele para influenciar o PM, tendo à mão “influencers” mais capacitados, como Lacerda Machado e João Galamba. Todavia, face à gravidade da crise política, Escária devia clarificar a proveniência de tal dinheiro e a razão por que o guardou ali.

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Neste aspeto, é clarividente o artigo “Democracia sufocada”, de Cândida Almeida, ex-diretora do DCIAP, publicado no site do Jornal de Notícias (JN) a 12 de novembro.

Aponta, ironicamente, a nossa Justiça como “a mais célere do Planeta” e anota que o país fora acordado, a 7 de novembro, “com estrondosa e censurável violação do segredo de justiça”, ao invés da discrição até então, com notícias da “realização de várias diligências, de detenção, buscas e apreensões domiciliárias e não domiciliárias, no âmbito do processo relativo à exploração do lítio e hidrogénio verde”. Logo os média se rodearam de peritos na matéria, para discutirem, de todas as formas possíveis, os supostos acontecimentos, “com mais ou menos arranjos e floreados, parte deles, com conivência de alguns dos entrevistadores”, determinaram, na praça pública, “a condenação dos suspeitos, arguidos e nem uma coisa nem outra”, abafando e desconsiderando as vozes “sensatas presentes nesses debates”.

Urgia condenar os ditos suspeitos, sem recurso, pelos crimes de que eram indiciados: “corrupção ativa e passiva, prevaricação e tráfico de influências”. Porém, “os detidos nem sequer tinham sido interrogados pelo juiz de instrução”. É óbvio que “a justiça da praça pública serve interesses ocultos e entusiasma os pretensiosos e ignorantes”. E, digo eu, eles existem da parte do poder económico e do contrapoder político, arredado que está do palco principal das decisões. A inesperada maioria absoluta vigente não foi digerida pelos adversários e ficou sob vigilância matreira de autênticos corsários neste mar encapelado.     

Cândida Almeida diz que o processo está em segredo de justiça, mas “os justiceiros já decidiram a causa, no conforto de uma cadeira estrategicamente colocada num espaço de TV”. Assim, foram às malvas a preservação e a garantia do princípio da presunção de inocência. Com efeito, expostos rostos e funções, a localização das residências dos envolvidos, a imputação de factos não confirmados, embora indiciados, “rasga as regras de defesa e até do MP sobre a transparência e a isenção na condução das investigações”. O processo penal está sujeito a formalismos e a regras constitucionais, não compagináveis com julgamentos nos média.

Com maior gravidade foi a revelação do inquérito no STJ contra o PM, por atos relativos à investigação do lítio. Contra as normas deontológicas, alguém informou a imprensa do inquérito, sem suspeitos ou arguidos constituídos. No dia 8, o Expresso referia que “são praticamente inexistentes indícios do cometimento de crime por António Costa, que até pode não ser constituído arguido”. Porém, são constantes as referências a escutas contidas na investigação”. Pela primeira vez na História da nossa liberdade se assiste, de forma grave e perigosa, à negativa conexão entre a Justiça e a Política. A democracia não está de saúde. Resta saber porquê e para quê a PGR foi a Belém. A Justiça não pode britar ditatorialmente a democracia, como no Brasil.

2023.11.14 – Louro de Carvalho

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