quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Ministério público precisa de reforma, não de pelourinho

 

Em artigo de opinião no jornal Público, a 20 de novembro, a procuradora-geral adjunta Maria José Fernandes, uma figura de topo do Ministério Público (MP), sustenta que a Operação Influencer mostra como a autonomia dos procuradores deixou os magistrados do MP sem controlo na estrutura hierárquica, levando a abusos. Aponta “buscas sem utilidade”, “abuso de poder” e “meios de recolha de prova humilhantes”, da parte de quem levou a cabo esta investigação criminal, que levou à queda do governo.

“Acontece haver quem entenda a investigação criminal como uma extensão de poder sobre outros poderes, de natureza política. Daí que sejamos surpreendidos, de vez em quando, com buscas cuja utilidade e necessidade é nenhuma”, escreveu.

“Ministério Público: como chegámos aqui?”. A pergunta serve de título e de ponto de partida para crítica à atuação dos procuradores na Operação Influencer. Não é preciso indicar nomes para se perceber a quem se refere a também inspetora, responsável por avaliar procuradores, que denuncia o clima de favoritismo, até aqui, do juiz Carlos Alexandre. “A sorte é que, até há pouco tempo, o DCIAP [Departamento Central de Investigação e Ação Penal] dispunha de um tribunal de instrução privativo, com um juiz de instrução igualmente privativo por ser o único durante largos anos. O perfil decisório desse juiz de instrução criminal era conhecido, não há constância de contrariedade ao Ministério Público. Maus hábitos”, declarou.

Tais magistrados têm apoio na comunicação social. “Granjearam até quase camaradagem (em congressos) de certo jornalismo que segue as peripécias da corrupção atribuída a políticos e que tem a militância de deixar Portugal bem colocado nos rankings internacionais da perceção desse flagelo”, vincou. É esta a mistura que leva procuradores que não “hesitem em meios de recolha de prova intrusivos, humilhantes, necessários ou não” a serem o “top da competência”. “Outros magistrados de elevado escalão que seguem esta linha argumentativa e a verbalizando no discurso público também têm o elogio garantido. [...] Quem se opõe à estridência processual é rotulado de protetor dos corruptos. [...] Poucos têm pulso para impor o que deve ser a sensatez, a escorreita interpretação jurídica dos factos, o respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos suspeitos, a investigação célere”, explicitou.

Baseada em casos julgados, conclui que é necessária autocrítica por parte do MP. E, do pouco que sobrou do despacho de indiciação, o crime de recebimento indevido de vantagem, nos almoços pagos a João Galamba, a Duarte Cordeiro e a Nuno Lacasta, pergunta: “A oferta de um almoço num restaurante caro será uma vantagem? Em que se traduz essa vantagem? No prazer da degustação? E se o agente não apreciou a refeição?”

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Por seu turno, o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) considerou, a 22 de novembro, “excessivo e prematuro” fazer, nesta fase, um juízo de valor sobre o MP. “Percebendo que haja interesses políticos e partidários em jogo e com as eleições à vista e que haja a tentação de utilizar este caso também para esse efeito, acho excessivo e prematuro, nesta fase, pendurar já MP no pelourinho ou endeusar o MP e colocá-lo no altar, porque nós não sabemos ainda como é que vai acabar esta investigação”, declarou à Lusa Manuel Soares.

Ante as críticas ao processo que “provocou indiretamente uma crise política”, com a demissão do primeiro-ministro (PM), o dirigente da ASJP não embarca na “tese de ninharia penal” e diz que estão em causa “pessoas com responsabilidades governativas ou próximas de pessoas com responsabilidades governativas que podem ter cometido crimes de tráfico de influência e recebimento indevido de vantagem”, sendo “graves” os factos conhecidos pela imprensa.

Sobre o encontro de mais de 75 mil euros no gabinete de Vítor Escária, lembra que há pessoas, nomeadamente os membros do governo ou dos seus gabinetes, que, por força dos cargos públicos que exercem, estão obrigadas a declarar no Tribunal Constitucional (TC) os seus rendimentos, património e interesses. Portanto, se alguém nessas condições estiver na posse de dinheiro seu e que não foi declarado, independentemente da proveniência, lícita ou ilícita, tal conduta é, desde 2022, punível com pena de prisão de um a cinco anos por crime de ocultação de património. Aliás, a lei foi alterada, então, para penalizar quem oculta património às entidades de fiscalização.

Sobre a polémica em torno do último parágrafo do comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR), que revelou o inquérito autónomo no MP junto do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) envolvendo o PM, defendeu que “o parágrafo não caiu do céu”. Reage-se a um texto, não pela sequência de palavras e letras, mas pelo significado. E o significado daquele parágrafo e dos outros é que certas pessoas podiam ter praticado atos que, chegados ao conhecimento do MP, foram considerados suspeitos, e o MP foi obrigado, porque a lei obriga, a abrir investigação para “confirmar ou não essas suspeitas e esses atos”. Ora, como sustenta, algumas diligências “foram já até objeto de alguma validação por juízes de instrução”, nomeadamente as que autorizaram a realização de buscas e escutas telefónicas, por haver indícios suficientes.

E questionou que ilações se tirariam, se a PGR tivesse omitido o último parágrafo referente à investigação ao PM. Mais tarde, saber-se-ia, pois, quando os advogados consultar o processo, viam que tinham sido extraídas certidões e percebiam que tinha havido iniciativa processual no STJ sobre o PM. E dir-se-ia que a PGR ocultou informação relevante ao Presidente da República (PR), ao PM, aos cidadãos, para beneficiar o governo e o Partido Socialista (PS). Foi o que aduziu.

Distinguiu lobbying e cunha, conceitos inconfundíveis, desde logo pela lei, que não tem o lobbying regulado, mas tipifica criminalmente comportamentos enquadrados no que se designa como cunha. “Acharmos que o comportamento de meter uma cunha para o nosso processo andar mais depressa ou para obtermos uma decisão ilícita, a troco de alguma vantagem económica que entregamos à pessoa que tem a responsabilidade de decidir, achar que isto é lobby, francamente não é lobby, isto é outra coisa, pelo menos enquanto a lei não for mudada”, acentuou.

Até se conhecerem todos os factos do processo, para Manuel Soares, “ninguém responsável consegue dizer que o MP está a perseguir criminalmente pessoas por factos que não são crime”. Acha “absolutamente normal” que este caso, que “não é coisa pouca” e envolve o PM e outras figuras políticas, tenha provocado “tumultos e perturbação no espaço público” e críticas ao MP. “Se amanhã os tribunais confirmarem decisões neste caso do MP, passarão a ser os tribunais os criticados”, contrapôs, questionando se se quer uma sociedade em que a Justiça não seja “capaz de incomodar, nos casos em que se justifica incomodar” essas pessoas “mais poderosas”.

O consultor e amigo do PM ficou indiciado por tráfico de influência e sujeito à caução de 150 mil euros e à entrega de passaporte. Vítor Escária viu validados indícios de tráfico de influência, ficando proibido de se ausentar para o estrangeiro. O autarca de Sines e dois administradores da Start Campus, ficaram sujeitos a Termo de Identidade e Residência (TIR), devendo a empresa pagar a caução de 600 mil euros. Para o autarca não foram validados indícios de crime, enquanto os dois administradores estão indiciados por tráfico de influência e oferta indevida de vantagem. E o juiz não validou os indícios apontados pelo MP da prática de corrupção e prevaricação.

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Não está em causa a gravidade dos crimes, se os factos forem provados, mas outros dados, como a publicitação do comunicado da PGR sem que alguns suspeitos, por exemplo o PM, fossem notificados; a cooperação da polícia de segurança pública (PSP), em vez da polícia judiciária (PJ); o conhecimento dos alegados factos pela comunicação social ainda na fase da investigação; o momento da publicitação das diligências; a justiça espetáculo, que leva à condenação de figuras públicas na praça pública, sem julgamento, mandando às malvas a presunção de inocência; a perturbação, por forma desnecessária, do funcionamento de órgãos de soberania, na presunção de que os políticos são corruptos e os agentes da Justiça são os bons; e os erros já reconhecidos pelo MP (troca de nomes, citação de portaria indevida e troca de espaços de reuniões). Isto não é pouco.

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Dantas Rodrigues, em artigo de opinião publicado no ECO online, a 22 de novembro, considera que o cargo de procurador-geral da República (PGR) é o único, no quadro das magistraturas (do MP e dos tribunais judiciais) sujeito a nomeação pelo poder político, mas gozando de um estatuto de independência (de autonomia, digo eu) desse mesmo poder político, com um mandato de seis anos. Em termos formais, os procuradores-gerais são autónomos (não independentes), mas, na prática, tal autonomia (não independência) é limitada. A tutela (Ministro da Justiça), pode: transmitir ao PGR instruções específicas nas ações cíveis e nos procedimentos tendentes à composição extrajudicial de conflitos em que o Estado seja interessado, bem como autorizar o MP a confessar, transigir ou desistir nas ações cíveis em que o Estado seja parte (não há, nas ações penais, a possibilidade de transmitir instruções, de ordem genérica ou específica); requisitar ao PGR relatórios e informações relativas a qualquer agente do MP; solicitar ao Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) informações ou esclarecimentos que julgar convenientes; e instar o PGR a proceder a inspeções, sindicâncias e inquéritos, designadamente aos órgãos de polícia.

O MP é um corpo hierarquizado. No atinente à sua hierarquia, tem o PGR, chefe máximo, com poderes de direção, de categoria e de intervenção processual sobre os demais magistrados, a saber, o vice-procurador-geral da República, os procuradores-gerais-adjuntos e os procuradores da República. São todos magistrados do MP, magistrados na qualidade de procuradores europeus delegados, e deles provém o representante de Portugal na EUROJUST e respetivos adjunto e assistente. Compete ao PGR dirigir, coordenar e fiscalizar a atividade do MP e emitir as diretivas, ordens e instruções a que deve obedecer à atuação dos respetivos magistrados.

O CSMP é o órgão através do qual a PGR faz uso da competência para nomear, colocar, transferir, promover, exonerar, apreciar méritos profissionais, exercer ações disciplinares e, em geral, praticar todos os atos de idêntica natureza respeitantes aos magistrados do MP, exceto ao PGR.  

Na sede de cada distrito judicial existe a Procuradoria-Geral Distrital, em que exercem funções procuradores-gerais-adjuntos, com a função de ali dirigir, coordenar e fiscalizar a atividade do Ministério Público, para além da emissão de ordens e de instruções várias.

Os procuradores dos Estados Unidos da América (EUA) integram o poder executivo, podendo ser demitidos pelo presidente, e os do Reino Unido têm poderes limitados, dependendo, formalmente, do poder legislativo. São países anglo-saxónicos, com a sua cultura própria.

Na Europa, em termos de funções ou, melhor, de poder, o MP ou está integrado com autonomia funcional no respetivo poder judicial (Espanha, Alemanha) ou insere-se no próprio Ministério da Justiça (Holanda, França, Bélgica, Áustria). A média dos mandatos dos procuradores-gerais, nesses países, é de quatro anos (não seis), cessando quando terminam os governos que os propõem. As suas funções são essencialmente penais, não se imiscuindo noutras áreas jurídicas.

No nosso país, o MP intervém em quase tudo, ou seja, em matérias constitucionais, penais, cíveis, comerciais, laborais, administrativas e de família. A estrutura é gigantesca, pesada e dispendiosa. Ora, depositar tanto poder num único órgão não beneficia os cidadãos, nem os procuradores, desacreditando a sua autonomia avaliativa e o seu sentido de autonomia (não independência).

A imparável descredibilização das instituições, em geral, e da Justiça, em particular, tem ocupado dias consecutivos de interrogações, sendo a principal: “Poderemos confiar no MP, que cometeu três erros fatais?” De facto, “renunciou à recolha de prova indiciária com rigor científico e jurídico, prejudicando a investigação em que estava a trabalhar, o que lhe retirou logo a imparcialidade exigida”; “parou, ilegitimamente, a atividade do governo; e “fez política”, pois este mal provém de outros inquéritos e de anos passados.

O rombo provocado no casco da nave da execução da política criminal afeta o sistema judicial. A brusca manobra do leme pelos procuradores constitui causa bastante para a reformulação do Código do Processo Penal, do Estatuto do Ministério Público e do Código de Conduta dos Magistrados do Ministério Público. E deve-se fazê-lo “antes que o sistema de justiça vá a pique”.

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É preciso que o MP atue no âmbito da Constituição (ver artigos 219.º e 220.º), segundo a qual que o MP “goza de [...] autonomia, nos termos da lei” (a autonomia pressupõe a prestação de contas), não de completa independência, os seus agentes “são magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados” (não há hierarquia sem responsabilidade).

O MP não é um feudo, nem uma corporação. Por isso, como diz o constitucionalista Vital Moreira (ver “Causa nossa”, 20 de novembro), impõe-se: tornar o PGR a suprema e efetiva autoridade governativa e administrativa no MP; obrigar a instituição, através do PGR, a prestar contas regulares da atividade do MP à Assembleia da República (AR) e ao PR; instituir efetiva hierarquia e responsabilidade hierárquica interna, inclusive para efeitos disciplinares, retirando tal competência ao “parlamento” do CSMP; e punir disciplinarmente e fazer punir penalmente conluios entre magistrados do MP e a imprensa, a principal fonte da sistemática e impune violação do segredo de justiça, estando em causa investigados expostos politicamente. Nem sempre a propalada transparência é a alma do negócio público.

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O MP, que não é órgão de soberania, precisa de ser credibilizado – não exposto e vergastado no pelourinho – para, como precioso defensor da causa pública e como prestimoso órgão auxiliar dos tribunais (independentes órgãos de soberania), contribuir para uma Justiça universal, eficaz, célere e imparcial.

2023.11.22 – Louro de Carvalho

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