Nos
termos da Constituição, as eleições servem obviamente para que os eleitores
escolham os seus representantes nos diversos órgãos colegiais do poder político
eletivo – Assembleia da República, Parlamento Europeu, assembleias municipais,
assembleias de freguesia, câmaras municipais –, Presidente da República, presidente
da câmara municipal e presidente da junta de freguesia.
Indiretamente,
quando se elegem os deputados à Assembleia da República, elege-se o Chefe do
Governo, que será aquele líder partidário que obtiver condições políticas para
formar um executivo nos termos constitucionais ou porque é o líder o partido mais
votado ou porque negociou um apoio parlamentar maioritário. E, quando se elege
a assembleia de freguesia, também se elegem indiretamente os vogais da junta,
normalmente propostos pelo presidente.
Todavia,
parece que, muitas vezes, além disso, as candidaturas e a própria CNE (Comissão
Nacional de Eleições)
pretendem que o país entre de férias por motivo de eleições.
Cabe,
naturalmente, às candidaturas zelar pela sua boa saúde eleitoral e escrutinar as
deficiências das candidaturas concorrentes que possam impedir o normal fluxo da
corrida eleitoral, quer em termos de substância, quer em termos formais e de oportunidade.
No entanto, é aos tribunais, eventualmente com recurso para o Tribunal
Constitucional, que incumbe ajuizar da justeza das razões dos impugnantes,
devendo a CNE prestar os devidos esclarecimentos com base na lei entendível de
forma restrita quando se trata de limitações e restrições.
Entretanto,
o Presidente da República vetou um diploma do Parlamento, além de outras razões
não de substância, por ter sido apresentado para promulgação já depois de
publicado o decreto que marcou as eleições autárquicas para 26 de setembro, não
fosse a sua aplicação criar desnecessário ruído eleitoral.
Alguns
tribunais, escudados na posição interpretativa da CNPD (Comissão
Nacional de Proteção de Dados)
em relação à lei eleitoral e ao novo RGPD (Regulamento
Geral sobre a Proteção de Dados), fizeram publicar as listas de candidatos com o
código postal da morada de cada um, omitindo o nome da rua ou equivalente e o
n.º de porta, quando os candidatos a cargos políticos sabem que os dados de identificação
pessoal são de interesse público.
A
CNE tem-se intrometido no conteúdo de cartazes pela sua alegada similitude, tem
feito reparo em relação à promoção de orçamentos participativos em ano de
eleições por alegadamente favorecerem os atuais autarcas-presidentes, a
passagem de vídeos promocionais em centros de vacinação, os avisos e placards
de obras públicas e serviços que os municípios protagonizam ou em que
participam, bem como a publicitação de propaganda nas redes sociais – por
alegadamente servirem de favorecimento aos atuais autarcas-presidentes e suas equipas
ou por serem divulgados em meios de publicidade comercial.
Ora
bem, se formos a isso, não se deviam abrir, em ano de eleições, escolas,
piscinas, praias fluviais, parques infantis, lares de idosos, complexos
desportivos e outros equipamentos de utilização coletiva em que o Estado ou os
municípios liderem ou participem. No entanto, em ano de eleições anda tudo em
polvorosa no que respeita a obras, programas e apoios…
Enfim,
segundo alguns, em ano de eleições, o país encerrava para balanço e, sobretudo,
após a publicação do decreto de marcação de eleições, punham-se editais a
declarar “encerrado o país para eleições”, pois, em todo o ano, mas em especial
neste período, a atividade da administração pública pode prejudicar a corrida
eleitoral e condicionar os resultados.
Se
esta práxis interpretativa da CNE fosse corrente em 1993, eu e a minha equipa
teríamos infringido a lei ao pôr em funcionamento uma escola profissional em
que o município era parceiro relevante. Em alternativa, os estudantes deveriam
esperar que a pandemia eleitoral passasse.
Os
zelosos intérpretes da lei esquecem que o art.º 72.º da Lei Eleitoral para a
Assembleia da República, que estabelecia que “a partir da publicação do decreto que marque a data das eleições é
proibida a propaganda política feita direta ou indiretamente através dos meios
de publicidade comercial”, foi revogado pela alínea d) do artigo 14.º da
Lei n.º 72-A/2015, de 23 de julho. De igual modo, pela alínea e) do artigo 14.º
da Lei n.º 72-A/2015, de 23 de julho, foi revogado o art.º 46.º da Lei
Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais que estabelecia: “a partir da publicação do decreto que marque
a data da eleição é proibida a propaganda política feita direta ou indiretamente
através dos meios de publicidade comercial” (n.º 1); e “são permitidos os anúncios publicitários, como tal identificados, em
publicações periódicas, desde que não ultrapassem um quarto de página e se
limitem a utilizar a denominação, símbolo e sigla do partido, coligação ou
grupo de cidadãos e as informações referentes à realização anunciada” (n.º
2).
Entretanto,
o art.º 10.º da Lei n.º 72-A/2015, de 23 de julho, estabelece, no seu n.º 1 que
“a partir
da publicação do decreto que marque a data da eleição ou do referendo é
proibida a propaganda política feita direta ou indiretamente através dos meios
de publicidade comercial”. E o
seu n.º 4 estipula que, nesse período, “é
proibida a publicidade institucional por parte dos órgãos do Estado e da
Administração Pública de atos, programas, obras ou serviços, salvo em caso de
grave e urgente necessidade pública”.
Porém,
o seu art.º 13.º estabelece que “a presente lei
deve ser objeto de revisão no prazo de um ano após a sua entrada em vigor”,
o que não aconteceu.
Quatro questões se levantam: É lícita uma certa propaganda
política e não a publicidade institucional por parte dos órgãos do Estado e da
Administração Pública de atos, programas, obras ou serviços, como se
esta não fosse mais importante? São meios de publicidade comercial painéis com
avisos, indicação de obras e serviços, vídeos promocionais e sites da internet,
não havendo jugar a pagamento, para isso, a empresa especializada? Não deveriam
ser contemplados nas exceções do n.º 4 obras em curso, programas em desenvolvimento,
serviços públicos de apoio às populações? Se a matéria é tão relevante, a lei
não deveria ter sido revista no prazo nela previsto? Mais prejudicial que tudo
isto é a continuação da publicação de sondagens durante o período estrito da campanha
eleitoral, que de proibida passou a ser lícita.
Porém, a legislação eleitoral não é única em termos do absurdo
prático. A própria Constituição prevê, “hipocritamente”, horizontes temporais
em que há governos de gestão, designadamente entre a nomeação do Governo e a apreciação
do seu programa pela Assembleia da República ou entre a demissão do Governo (por dissolução do Parlamento, rejeição do programa do
Governo, não aprovação de uma moção de confiança, aprovação de uma moção de
censura, aceitação do pedido de demissão do Primeiro-Ministro pelo Presidente
da República ou exoneração do Primeiro-Ministro pelo Presidente da República quando
“tal se torne necessário para assegurar o
regular funcionamento das instituições democráticas”) e a posse do novo Governo.
Nestes casos, o Governo “limitar-se-á à prática dos atos estritamente
necessários para assegurar a gestão dos negócios
públicos”. Ora, um governo é para governar, o
que significa fazer tudo o que é necessário fazer. E nós bem sabemos como em governos
de gestão se têm praticado atos que ultrapassam a mera gestão. Sabemos como os governos
provisórios tomaram decisões que, à partida, não estariam na esfera das suas competências.
Por exemplo, o Governo Provisório da 1.ª República produziu leis importantes
como a Lei da Separação do Estado das Igrejas e o Código do Registo
Civil de 1911 (que estabeleceu o
princípio da obrigatoriedade da inscrição no registo civil dos factos a ele
sujeitos). Foi o Governo
Provisório saído da revolução abrilina que produziu as leis das nacionalizações,
a lei das manifestações, a lei do recenseamento eleitoral, a lei das manifestações
ainda em vigor, a lei de imprensa, que vigorou durante muito tempo, e decidiu a
descolonização… Foi um Governo de Gestão (de iniciativa
presidencial), que tinha como encargo principal a preparação de eleições,
que tomou inúmeras decisões políticas irreversíveis, como a gratuitidade dos transportes
escolares para o ensino obrigatório, a valorização profissional na função pública,
a identificação fiscal das pessoas singulares e das pessoas coletivas, a
valorização da área social…
De verdade, um Governo é para governar e as autarquias são
para servir as populações. Governo e autarquias nunca podem estar em situação
de capitis diminutio. Se cometerem erros
e abusos, os eleitores que julguem em devido tempo; e, se incorrerem em contraordenação
ou em ilícito criminal, as entidades fiscalizadoras e os tribunais que atuem. Porém,
as negociatas, as influências existem, mas passam despercebidas e ninguém atua.
Só se implica com incidentes pré-eleitorais.
É certo que todas as candidaturas devem ter o mesmo
tratamento, mas quem está em exercício tem vantagem naturalmente. O próprio Presidente
da República disse em campanha eleitoral que não usou tempos de antena, porque,
a fazê-lo, iria selecionar os melhores momentos do desempenho presidencial, o
que o colocaria em vantagem em relação aos outros candidatos. Mas isso é o que
os governos fazem em vésperas de eleições legislativas e o que os autarcas
fazem em vésperas de eleições autárquicas. E utilizam-se meios e funcionários
do Estado para isso. Só não vê quem não quer.
Cerceiem-se os abusos, mas o país não pode encerrar para férias,
para balanço ou para eleições.
2021.08.31 – Louro
de Carvalho