terça-feira, 31 de agosto de 2021

Período eleitoral não deve servir de motivo para férias do país

 

 

Nos termos da Constituição, as eleições servem obviamente para que os eleitores escolham os seus representantes nos diversos órgãos colegiais do poder político eletivo – Assembleia da República, Parlamento Europeu, assembleias municipais, assembleias de freguesia, câmaras municipais –, Presidente da República, presidente da câmara municipal e presidente da junta de freguesia.

Indiretamente, quando se elegem os deputados à Assembleia da República, elege-se o Chefe do Governo, que será aquele líder partidário que obtiver condições políticas para formar um executivo nos termos constitucionais ou porque é o líder o partido mais votado ou porque negociou um apoio parlamentar maioritário. E, quando se elege a assembleia de freguesia, também se elegem indiretamente os vogais da junta, normalmente propostos pelo presidente.    

Todavia, parece que, muitas vezes, além disso, as candidaturas e a própria CNE (Comissão Nacional de Eleições) pretendem que o país entre de férias por motivo de eleições.

Cabe, naturalmente, às candidaturas zelar pela sua boa saúde eleitoral e escrutinar as deficiências das candidaturas concorrentes que possam impedir o normal fluxo da corrida eleitoral, quer em termos de substância, quer em termos formais e de oportunidade. No entanto, é aos tribunais, eventualmente com recurso para o Tribunal Constitucional, que incumbe ajuizar da justeza das razões dos impugnantes, devendo a CNE prestar os devidos esclarecimentos com base na lei entendível de forma restrita quando se trata de limitações e restrições.

Entretanto, o Presidente da República vetou um diploma do Parlamento, além de outras razões não de substância, por ter sido apresentado para promulgação já depois de publicado o decreto que marcou as eleições autárquicas para 26 de setembro, não fosse a sua aplicação criar desnecessário ruído eleitoral.

Alguns tribunais, escudados na posição interpretativa da CNPD (Comissão Nacional de Proteção de Dados) em relação à lei eleitoral e ao novo RGPD (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados), fizeram publicar as listas de candidatos com o código postal da morada de cada um, omitindo o nome da rua ou equivalente e o n.º de porta, quando os candidatos a cargos políticos sabem que os dados de identificação pessoal são de interesse público.

A CNE tem-se intrometido no conteúdo de cartazes pela sua alegada similitude, tem feito reparo em relação à promoção de orçamentos participativos em ano de eleições por alegadamente favorecerem os atuais autarcas-presidentes, a passagem de vídeos promocionais em centros de vacinação, os avisos e placards de obras públicas e serviços que os municípios protagonizam ou em que participam, bem como a publicitação de propaganda nas redes sociais – por alegadamente servirem de favorecimento aos atuais autarcas-presidentes e suas equipas ou por serem divulgados em meios de publicidade comercial.

Ora bem, se formos a isso, não se deviam abrir, em ano de eleições, escolas, piscinas, praias fluviais, parques infantis, lares de idosos, complexos desportivos e outros equipamentos de utilização coletiva em que o Estado ou os municípios liderem ou participem. No entanto, em ano de eleições anda tudo em polvorosa no que respeita a obras, programas e apoios…

Enfim, segundo alguns, em ano de eleições, o país encerrava para balanço e, sobretudo, após a publicação do decreto de marcação de eleições, punham-se editais a declarar “encerrado o país para eleições”, pois, em todo o ano, mas em especial neste período, a atividade da administração pública pode prejudicar a corrida eleitoral e condicionar os resultados.

Se esta práxis interpretativa da CNE fosse corrente em 1993, eu e a minha equipa teríamos infringido a lei ao pôr em funcionamento uma escola profissional em que o município era parceiro relevante. Em alternativa, os estudantes deveriam esperar que a pandemia eleitoral passasse.

Os zelosos intérpretes da lei esquecem que o art.º 72.º da Lei Eleitoral para a Assembleia da República, que estabelecia que “a partir da publicação do decreto que marque a data das eleições é proibida a propaganda política feita direta ou indiretamente através dos meios de publicidade comercial”, foi revogado pela alínea d) do artigo 14.º da Lei n.º 72-A/2015, de 23 de julho. De igual modo, pela alínea e) do artigo 14.º da Lei n.º 72-A/2015, de 23 de julho, foi revogado o art.º 46.º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais que estabelecia: “a partir da publicação do decreto que marque a data da eleição é proibida a propaganda política feita direta ou indiretamente através dos meios de publicidade comercial(n.º 1); e “são permitidos os anúncios publicitários, como tal identificados, em publicações periódicas, desde que não ultrapassem um quarto de página e se limitem a utilizar a denominação, símbolo e sigla do partido, coligação ou grupo de cidadãos e as informações referentes à realização anunciada(n.º 2).

Entretanto, o art.º 10.º da Lei n.º 72-A/2015, de 23 de julho, estabelece, no seu n.º 1 que “a partir da publicação do decreto que marque a data da eleição ou do referendo é proibida a propaganda política feita direta ou indiretamente através dos meios de publicidade comercial”. E o seu n.º 4 estipula que, nesse período, “é proibida a publicidade institucional por parte dos órgãos do Estado e da Administração Pública de atos, programas, obras ou serviços, salvo em caso de grave e urgente necessidade pública”.

Porém, o seu art.º 13.º estabelece que “a presente lei deve ser objeto de revisão no prazo de um ano após a sua entrada em vigor”, o que não aconteceu.

Quatro questões se levantam: É lícita uma certa propaganda política e não a publicidade institucional por parte dos órgãos do Estado e da Administração Pública de atos, programas, obras ou serviços, como se esta não fosse mais importante? São meios de publicidade comercial painéis com avisos, indicação de obras e serviços, vídeos promocionais e sites da internet, não havendo jugar a pagamento, para isso, a empresa especializada? Não deveriam ser contemplados nas exceções do n.º 4 obras em curso, programas em desenvolvimento, serviços públicos de apoio às populações? Se a matéria é tão relevante, a lei não deveria ter sido revista no prazo nela previsto? Mais prejudicial que tudo isto é a continuação da publicação de sondagens durante o período estrito da campanha eleitoral, que de proibida passou a ser lícita.   

Porém, a legislação eleitoral não é única em termos do absurdo prático. A própria Constituição prevê, “hipocritamente”, horizontes temporais em que há governos de gestão, designadamente entre a nomeação do Governo e a apreciação do seu programa pela Assembleia da República ou entre a demissão do Governo (por dissolução do Parlamento, rejeição do programa do Governo, não aprovação de uma moção de confiança, aprovação de uma moção de censura, aceitação do pedido de demissão do Primeiro-Ministro pelo Presidente da República ou exoneração do Primeiro-Ministro pelo Presidente da República quando “tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas”) e a posse do novo Governo.

Nestes casos, o Governo “limitar-se-á à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”. Ora, um governo é para governar, o que significa fazer tudo o que é necessário fazer. E nós bem sabemos como em governos de gestão se têm praticado atos que ultrapassam a mera gestão. Sabemos como os governos provisórios tomaram decisões que, à partida, não estariam na esfera das suas competências. Por exemplo, o Governo Provisório da 1.ª República produziu leis importantes como a Lei da Separação do Estado das Igrejas e o Código do Registo Civil de 1911 (que estabeleceu o princípio da obrigatoriedade da inscrição no registo civil dos factos a ele sujeitos). Foi o Governo Provisório saído da revolução abrilina que produziu as leis das nacionalizações, a lei das manifestações, a lei do recenseamento eleitoral, a lei das manifestações ainda em vigor, a lei de imprensa, que vigorou durante muito tempo, e decidiu a descolonização… Foi um Governo de Gestão (de iniciativa presidencial), que tinha como encargo principal a preparação de eleições, que tomou inúmeras decisões políticas irreversíveis, como a gratuitidade dos transportes escolares para o ensino obrigatório, a valorização profissional na função pública, a identificação fiscal das pessoas singulares e das pessoas coletivas, a valorização da área social…   

De verdade, um Governo é para governar e as autarquias são para servir as populações. Governo e autarquias nunca podem estar em situação de capitis diminutio. Se cometerem erros e abusos, os eleitores que julguem em devido tempo; e, se incorrerem em contraordenação ou em ilícito criminal, as entidades fiscalizadoras e os tribunais que atuem. Porém, as negociatas, as influências existem, mas passam despercebidas e ninguém atua. Só se implica com incidentes pré-eleitorais.

É certo que todas as candidaturas devem ter o mesmo tratamento, mas quem está em exercício tem vantagem naturalmente. O próprio Presidente da República disse em campanha eleitoral que não usou tempos de antena, porque, a fazê-lo, iria selecionar os melhores momentos do desempenho presidencial, o que o colocaria em vantagem em relação aos outros candidatos. Mas isso é o que os governos fazem em vésperas de eleições legislativas e o que os autarcas fazem em vésperas de eleições autárquicas. E utilizam-se meios e funcionários do Estado para isso. Só não vê quem não quer.

Cerceiem-se os abusos, mas o país não pode encerrar para férias, para balanço ou para eleições.

2021.08.31 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

O farisaísmo atual é uma ameaça para a Igreja e para a sociedade

 

A Liturgia fez-nos regressar, neste domingo XXII do Tempo Comum, no Ano B, ao Evangelho de Marcos, em que escutamos, embora com intermitências, o texto de Mc 7,1-23.

O trecho em apreço divide-se em três partes: Mc 7,1-13, com a diatribe entre Jesus e os fariseus e escribas; Mc 7,14-16, com Jesus a constituir um novo auditório, chamando a multidão e falando para todos; e Mc 7,17-23, com Jesus a entrar em casa e a falar para os discípulos.

Os povos antigos e, em particular, os judeus sentiam desconforto em lidar com misteriosas realidades (quase sempre ligadas à vida e à morte) que não podiam controlar. Por isso, criaram um conjunto de regras que interditavam ou regulamentavam o contacto tais realidades (v. g: cadáveres, sangue, lepra, etc.), para obstar ao suspeito malefício. Entre os judeus, quem infringia tais normas punha-se em situação de indignidade que o impedia de se aproximar do mundo divino (o culto, o Templo) e de integrar a comunidade. A pessoa ficava “impura”. E, para readquirir o estado de pureza e poder reintegrar a comunidade, o crente tinha de realizar um rito de “purificação”, cuidadosamente estipulado na “Lei”.

No tempo de Jesus, as regras da “pureza” tinham sido ampliadas pelos doutores da Lei, contrariando a advertência de Moisés. Um dos ritos de purificação consistia na lavagem das mãos antes das refeições, à semelhança do que a Lei mandava aos sacerdotes de lavarem os pés e as mãos antes de se aproximarem do altar (cf Ex 30,17-21). Na ótica dos doutores da Lei, a purificação das mãos antes das refeições não era um imperativo de higiene, mas religioso.

Ora, na Galileia, terra em permanente contacto com o mundo pagão, as normas de “pureza” não eram tão rígidas como em Jerusalém. E os fariseus, vindos de Jerusalém, vendo como os discípulos de Jesus comiam sem realizar o gesto ritual de purificação das mãos, referiram, escandalizados, o caso a Jesus, tentando sondá-Lo para aquilatar da sua ortodoxia face à tradição (“parádôsis) dos antigos dos antigos.

Para Jesus, a obsessão dos fariseus com os ritos externos de purificação é sintoma de grave desvio na vivência da religião. Por isso, responde ao reparo com dureza a partir da Escritura e da práxis dos judeus, censurando a vivência religiosa que aposta apenas na repetição de práticas formalistas, sem qualquer preocupação com a vontade de Deus (“este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim”) ou com o amor aos irmãos.

É um pouco o que sucede hoje. Quantas pessoas não se regalam com a missa, o batismo, o crisma, a comunhão, o matrimónio para a fotografia. O resto – zelar pela pureza de alma e de intenção, fazer a vontade de Deus e trabalhar pelos irmãos, designadamente os mais frágeis – não é da sua conta. Porém, não cumprindo minimamente os mandamentos, gostam de sobrecarregar os outros com mais e mais obrigações. Estas pessoas só têm direitos, quando os outros só têm deveres; elas têm a consciência limpa, mas espreitam todos os furos para fugir às leis civis e religiosas ou para as ludibriar. Não cumprem do fundo do coração, mas estão em todas as cerimónias que lhes interessem. E não estarão se tal não lhes der dinheiro e/ou vaidade e prestígio. Confundem a verdadeira Tradição com as tradições (cuja origem ninguém conhece ou cuja recente criação ficou obnubilada pela falta de memória).  

Depois, Jesus dirige-se à multidão e ensina que a impureza não está no que vai pelo homem adentro, mas no que dele sai. E desafia: “Quem tem ouvidos para ouvir ouça”. Mostra querer a sério que O entendam.

 

E, tendo regressado a casa, é interpelado pelos discípulos, admira-se da sua falta de entendimento e explica: “do interior do homem é que saem os maus pensamentos: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez; todos estes vícios saem lá de dentro e tornam o homem impuro” (Mc 7, 22-23). O dito de Jesus refere-se a dois “circuitos” diversos: o do estômago, onde entram os alimentos que se ingerem; e o do coração, donde saem os pensamentos, os sentimentos e as ações. Os alimentos não são fonte de “impureza”; os pensamentos e as ações más que saem do coração do homem é que são fonte de “impureza”.

A verdadeira religião não passa, portanto, pelo cumprimento de regras externas, que regulam o que o homem come ou não come, mas por uma autêntica conversão do coração, que leve o homem a deixar a vida velha e a transformar-se num Homem Novo, que assume e que vive os valores do Reino.

A preocupação com as regras externas de “pureza” é preocupação estéril, que atinge o essencial, o coração do homem e pode distrair o crente do essencial, dando-lhe a falsa segurança e a falsa sensação de estar em dia com Deus. A verdadeira preocupação do crente deve ser moldar o seu coração, a fim de que os seus sentimentos, desejos, pensamentos, projetos e decisões se concretizem, no dia a dia, na escuta atenta dos desafios de Deus e no amor aos irmãos.

Refere Dom António Couto que, “na parte do discurso dirigido aos fariseus e escribas (Mc 7,1-13), Jesus pôs a nu o culto vazio e exterior, sem Deus e a vida nova que d’Ele vem, e só com rodeios humanos”; e que, “na nova vaga agora iniciada (Mc 7,14-16), Jesus chama para junto de si a multidão, que tinha sido referida pela última vez em Marcos 6,34, e lança dois imperativos a todos: ‘Escutai-me e compreendei’ (Mc 7,14)”, reclamando “de todos a máxima atenção”. E enuncia “o novo princípio ético do Novo Testamento, a pureza do coração”: “da fisiologia (lavar as mãos, os jarros…) para a ética assente na limpeza e na pureza do coração”, pois “são as coisas que saem do homem que tornam o homem impuro” (Mc 7,15).

Em casa, são os discípulos que pedem explicações (Mc 7,17). Só eles é que estão com Jesus em casa. E querem apenas “compreender melhor o dizer sapiencial de Jesus à multidão”. Mas Ele adverte-os, como quem espera uma melhor compreensão. Todavia, explica, apontando outra vez o dedo ao coração: “Não compreendeis que tudo o que, de fora, entra no homem, não o pode tornar impuro, porque não entra no seu coração, mas no ventre, e vai para a fossa?”.

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Acompanha a proclamação do Evangelho, como 1.ª leitura, o texto do Livro do Deuteronómio (Dt 4,1-8), que transcreve o discurso de Moisés ao povo reunido à entrada da Terra Prometida. Este livro é formado, basicamente, por quatro longos discursos de Moisés no último dia da sua vida. O assunto é insistentemente o mesmo: para viver feliz na Terra Prometida em que o povo de Israel está para entrar, isto é, para entrar e viver na Casa de Deus, perto de Deus, Israel tem de escutar e praticar os mandamentos de Deus.

O Deus que interveio na história para libertar Israel é o mesmo Deus que agora oferece ao seu Povo leis e preceitos, que Israel deve acolher e praticar como forma de gratidão ao Deus libertador, que mil vezes agiu no passado para salvar o seu Povo, e porque as leis e preceitos do Senhor são o caminho que guia o Povo pela estrada da felicidade e da liberdade. Na verdade, viver de acordo com as leis e os preceitos do Senhor ajudará o Povo a concretizar todos os seus sonhos e esperanças – nomeadamente o sonho de se estabelecer numa terra, escapando aos perigos e incomodidades do nomadismo.

Contudo, Israel deve ter cuidado para não adulterar as leis e preceitos que Deus lhe propõe. Há sempre o perigo de adaptar a Palavra de Deus, de forma que ela sirva os nossos interesses; o perigo de suavizar a Palavra de Deus, de forma que ela não seja tão exigente; o perigo de suprimir da Palavra de Deus o que nos incomoda; o perigo de acrescentar algo à Palavra de Deus, atribuindo a Deus ideias e propostas com as quais Deus não tem nada a ver. Olhe-se para caterva de regras, rubricas, interpretações, imposições e proibições que por aí há ou para as supressões de textos bíblicos que não queremos ler por incómodos ou mal interpretados!

Na parte final do texto proposto, o catequista deuteronomista manifesta o seu orgulho pelo facto de Israel ser um Povo especial, o Povo eleito de Deus, facto que se manifesta na presença amorosa e libertadora de Javé junto do seu Povo (“Qual a grande nação que tem a divindade tão perto de si como está perto o Senhor nosso Deus sempre que O invocamos?”), no dom da Lei e na “sabedoria” presente nas leis e preceitos que o Senhor deu a Israel, a fim de o conduzir pelos caminhos da história (“Qual é a grande nação que tem mandamentos e decretos tão justos como esta lei que hoje vos apresento?”).

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O texto de São Tiago assumido em 2.ª leitura (Tg 1,17-27) insiste no mesmo tom, o da verdadeira religião: ser fazedores (“poiêtaí) e não apenas ouvintes da Palavra de Deus todos os dias e em todas as circunstâncias, sempre atentos sempre aos mais pobres. Será pela nossa atitude para com os pobres e necessitados que verificamos se somos ou não fazedores da Palavra de Deus.

O autor da carta não desenvolve um raciocínio continuado, mas vai elencando vários aspetos relacionados com a forma como os crentes devem ver e acolher a Palavra de Deus.

Deus oferece continuamente ao homem os seus dons, a fim de lhe proporcionar vida e felicidade. A Palavra de Deus é um dom que o “Pai das luzes” oferece ao homem e se destina a gerar uma nova humanidade.

Os crentes, iluminados pela “Palavra da verdade” que lhes vem de Deus, podem caminhar em segurança em direção à vida plena. Para tanto, devem estar sempre disponíveis para acolher a Palavra de Deus, não podendo fechar-se no seu orgulho e autossuficiência, ignorando as propostas de Deus, mas abrindo o coração para que a Palavra, qual semente lançada por Deus à terra, aí encontre lugar, aí possa lançar raízes e desenvolver-se.

Porém, a escuta e o acolhimento da Palavra têm de conduzir à ação, pela conversão que leve à mudança, ao abandono da vida velha do egoísmo e do pecado, a fim de se abraçar a vida segundo Deus. A escuta da Palavra de Deus também não pode fechar o homem num espiritualismo alienante e estéril, mas tem de conduzir a um compromisso efetivo com a transformação do mundo.

Por fim, o autor da carta descreve a religião autêntica, por oposição à religião vazia, inoperante, morta, dos que falam muito, mas não praticam ações coerentes com as suas palavras: “visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se limpo do contágio do mundo”.

Conectando este versículo com o tema central desta liturgia dominical, podemos dizer que é a escuta atenta da Palavra de Deus que nos lança a ação e no compromisso. A escuta da Palavra de Deus leva o crente a passar duma religião ritual, legalista, externa, para uma religião de efetivo compromisso com a realização do projeto de Deus e com o amor dos irmãos, designadamente os mais vulneráveis, representados, em Tiago, pelos órfãos e viúvas nas suas tribulações.

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O farisaísmo na Igreja leva a que as pessoas tentem servir-se dela para os seus interesses e pompas, a zangar-se quando esse desiderato não é secundado pelos líderes religiosos; leva ao pretenso cumprimento das regras e rubricas, mas ao afastamento dos problemas que atolam as pessoas e a sociedade, para não nos contaminarmos; leva à proscrição dos outros e a mandá-los para o inferno por não pensarem e agirem como nós; leva ao contorno dos preceitos que nos incomodem ou à observância literal dos mesmos sem atingir a profundidade e a exigência de que eles são portadores; leva-nos à obstinação contra a mudança; e leva-nos a desejar que haja pobres e doentes para podermos exercer a “caridade”.  

O farisaísmo na política e na sociedade leva ao desaforo que por aí se vê: propalar os bons princípios, mas fazer leis iníquas, deficientes ou sobre os joelhos; falar de solidariedade, mas fragilizar e descartar (depois de usar); pregar a honestidade e imparcialidade, mas atolar-se na corrupção e no compadrio; enaltecer a verdade, mas fazer propaganda enganosa; falar do bem comum, mas zelar pelo próprio interesse.  

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Finalmente, o Salmo 15 constitui, segundo o Bispo de Lamego, uma “Liturgia de ingresso” no santuário, “uma espécie de liturgia penitencial ou exame de consciência feito à porta do Templo”, para se aquilatar se a pessoa está em condições de entrar no Templo. Com efeito, para alguém poder transpor o limiar do Templo e ir à presença de Deus, tem de preencher uma série de requisitos morais e existenciais, e não apenas de pureza ritual.

As fachadas dos santuários do Egito e da Mesopotâmia tinham inscritas as condições de acesso ao culto. Eram requisitos de natureza ritual ou exterior. E o Talmude lembrava que “o homem não deve subir ao monte do Templo com sapatos ou bolsa ou com os pés cheios de pó, não deve reduzir os átrios do templo a entradas apressadas e, muito menos, cuspir neles.

Ora, o Salmo não se perde em ritualismos exteriores, antes requer comportamentos como o cumprimento de atos éticos e existenciais que envolvam a justiça e a verdade, que evitem a calúnia, o insulto e a usura. Enfim, apela à generosidade.

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Contra o farisaísmo a nossa simplicidade, sinceridade e reta intenção!

2021.08.30 – Louro de Carvalho

domingo, 29 de agosto de 2021

O Mestre das celebrações litúrgicas pontifícias é o novo bispo de Tortona

 

Efetivamente a Sala de Imprensa da Santa Sé divulgou, neste dia 29, a notícia de que o Papa Francisco nomeou Bispo de Tortona (Itália) Monsenhor Guido Marini, do clero da Arquidiocese de Génova, sucedendo ao Arcebispo-bispo Dom Vittorio Francesco Viola, OFM, que foi nomeado secretário da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos no passado dia 27 de maio, para suceder ao Arcebispo Artur Roche, que passou de secretário a prefeito, por passagem do Cardeal Robert Sarah à situação de emérito.

Também a notícia foi replicada pelo Arcebispo de Génova, Dom Marco Tasca, no Santuário Nossa Senhora da Guarda de Génova, diocese de origem do novo bispo.

Por isso, Monsenhor Marini deixará o Vaticano após 14 anos de serviço com Bento XVI e Francisco, para presidir ao governo pastoral da diocese de Tortona, um território eclesiástico católico romano no norte da Itália, abrangendo partes de três regiões de Piemonte (Província de Alessandria), Lombardia (Província de Pavia) e Ligúria (Província de Génova) – sufragânea da Arquidiocese de Génova e integrante da região eclesiástica da Ligúria.

Esta diocese tem-se como uma das mais antigas da Lombardia e do Piemonte.

A nota da Sala de Imprensa da Santa Sé refere os seguintes dados biográficos do novo prelado:

Dom Guido Marini nasceu em Génova a 31 de janeiro de 1965. Depois de se formar no colégio clássico, ingressou no Seminário Arquiepiscopal de Génova, onde se formou em Teologia. Ordenado sacerdote a 4 de fevereiro de 1989, continuou os estudos em Roma, na Pontifícia Universidade Lateranense, onde se doutorou in utroque iure. Em 2007 obteve o diploma de curta duração em Psicologia da Comunicação na Pontifícia Universidade Salesiana .

Foi: secretário particular dos cardeais Giovanni Canestri (1988-1995), Dionigi Tettamanzi (1995-2002) e Tarcisio Bertone (2002-2003); professor de Direito Canónico na Faculdade de Teologia do Norte da Itália – Secção de Génova e no Instituto Superior de Ciências da Religião (1992-2007); membro eleito do Conselho Presbiteral (1996-2001); cónego da Catedral de San Lorenzo (2002-2007); diretor do Escritório Diocesano para a Educação e a Escola (2003-2005); diretor espiritual do Seminário Arquiepiscopal (2004-2007); chanceler arquiepiscopal, membro de direito do Conselho Presbiteral Diocesano e membro do Conselho Episcopal (2005-2007). Desde 2007 é Prelado de Honra de Sua Santidade.

Tornou-se Mestre das Celebrações Litúrgicas Pontifícias em 2007 e, em 2013, foi confirmado no cargo pelo Papa Francisco. Desde 2019 também é Chefe da Pontifícia Capela da Música .

Para o ano académico 2018-2019, foi professor convidado da Liturgia Papal no Pontifício Ateneu Sant'Anselmo. Desde a ordenação sacerdotal até aos dias de hoje desempenhou também o seu ministério no campo da pregação dos exercícios espirituais, da direção espiritual, do acompanhamento de alguns grupos juvenis e como assistente espiritual de algumas comunidades religiosas.

Segundo o Vatican News, Monsenhor Marini, de 56 anos, entrou no seminário quando o cardeal Giuseppe Siri era Arcebispo de Génova.  Foi ordenado sacerdote pelo Cardeal Giovanni Canestri, que foi bispo de Tortona durante quatro anos, e tornou-se seu secretário particular, bem como dos sucessivos arcebispos, Dionigi Tettamanzi e Tarcisio Bertone.

Com Tettamanzi, tornou-se Mestre das celebrações litúrgicas da arquidiocese, ofício também confirmado por Tarcisio Bertone e Angelo Bagnasco.

Durante este período, fundou o “Collegium Laurentianum”, associação de voluntários para o serviço da ordem e acolhida da catedral.

Após a chegada do Cardeal Bertone a Génova, tornou-se o responsável pela escola da arquidiocese, diretor espiritual do seminário, onde lecionou Direito Canónico, e então chanceler da Cúria e prefeito da catedral.

Em outubro de 2007, Bento XVI o nomeou Mestre das celebrações litúrgicas do Sumo Pontífice, sucedendo a outro Marini, o Arcebispo Piero Marini, que havia acompanhado boa parte do longo pontificado de São João Paulo II.

Monsenhor Guido Marini foi o “diretor” das liturgias do pontificado do Papa Ratzinger, em Roma e durante suas viagens pelo mundo. No momento da eleição de Francisco, em 2013, dedicou-se inteiramente ao novo Papa, interpretando a sensibilidade litúrgica, sóbria e essencial, contraposta à mais ostensiva de Ratzinger, com um entendimento recíproco que já dura mais de oito anos.

Em janeiro de 2019, Francisco confiou-lhe também a responsabilidade do Coral da Sistina, a Capela Musical Pontifícia. E foi Guido Marini quem preparou e acompanhou a realização da Statio Orbis em 27 de março de 2020, a oração solitária do Pontífice na Praça de São Pedro vazia, sob copiosas chuvas, para pedir o fim da pandemia.

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Enfim, o homem que víamos de mãos postas ao lado direito do Sumo Pontífice, acompanhando-o no seu, por vezes, trôpego caminhar ou virando-lhe as folhas do cerimonial, passa ao serviço de pastor duma Igreja particular, já não em posição discreta como nos habituámos a vê-lo, mas numa postura de liderança e na estrita sucessão apostólica com a governação duma diocese e a participação na solicitude por todas as Igrejas – agora com a mão de quem segue abençoando.

Que transporte para a sua diocese a sensibilidade litúrgica, sóbria e essencial que o Papa Bergoglio lhe incutiu, bem como a clareza e a coragem didático-pastoral que Francisco mostra ao mundo e de que dá testemunho junto dos oficiais da Cúria Romana.

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Cada um se lembra do que pode. E, eu olhando para a nomeação de Marini, vejo-o com um percurso algo semelhante ao de Dom António Francisco dos Santos, que também foi um jovem cerimoniário na Sé de Lamego, se cultivou academicamente, foi dirigente de seminário e se ocupou de diversas atividades pastorais e docentes.

Faria hoje 73 anos. Foi sempre meu amigo. O Senhor lhe conte a sua inteira disponibilidade para o Reino e a sua ação orante, intelectual e pastoral como forte mais-valia para a sua glorificação beatífica frente ao rosto de Deus.       

2021.08.29 – Louro de Carvalho

Cabido de São Pedro centra-se na oração e animação pastoral

 

O cabido da Basílica Vaticana de São Pedro é uma instituição quase milenar cujo estatuto está em revisão. Entretanto, o Papa Francisco acabou por aprovar, a 27 de agosto, na memória litúrgica de Santo Agostinho, as normas transitórias para o Cabido de São Pedro no Vaticano, que entrarão em vigor no próximo dia 1 de outubro.

A finalidade é favorecer o início da reforma desta antiga instituição fazendo ressaltar o serviço litúrgico e pastoral dos canónicos nesta Basílica papal. Em especial, quer-se relançar o “serviço de animação litúrgica e pastoral” desempenhado até agora pelos cónegos na Basílica Vaticana, principalmente aos domingos e feriados. A reforma atual insere-se no caminho indicado por Bento XVI na sua alocação de 8 de outubro de 2007.

Os cónegos, que são pouco menos de 30, segundo as novas normas receberão, “um emolumento capitular que não pode ser acumulado com outras comissões ou outras remunerações por serviços prestados na Cúria Romana e outras instituições ligadas à Santa Sé”.

Será assim também para os coadjutores do Cabido, que exercem o seu múnus nas celebrações litúrgicas, nas obras pastorais e em outras funções.

“A administração e a gestão das atividades económicas ligadas ao Museu do Tesouro e à venda de objetos religiosos” serão confiadas à Fábrica de São Pedro, “que assume todos os funcionários contratados pelo Cabido”. Este continuará a manter e administrar “o património imobiliário e financeiro atualmente em seu nome e as relativas rendas”. Além disso, estabelece-se que os emolumentos dos cónegos e dos coadjutores em serviço “são fornecidos pela Fábrica”.

O Cabido da Basílica Papal de São Pedro no Vaticano é constituído por um colégio de sacerdotes nomeados pelo Papa no papel de cónegos, assim como os coadjutores. Nasce como instituição em 1053 com uma Bula de são Leão IX, que veio confirmar uma realidade já presente há séculos na Basílica constantiniana com o serviço litúrgico e orante desempenhado por monges pertencentes a vários mosteiros. A partir do pontificado do Papa Eugénio IV (1145-1153), o Cabido transforma-se gradualmente em comunidade autónoma, passando de uma estrutura monasterial a uma estrutura canónica.

A atividade do Cabido abarca desde o início vários campos: do litúrgico ao administrativo para a gestão do património da Basílica e das igrejas filiais; e do campo pastoral, com a atividade no bairro “Borgo”, ao caritativo, com os diversos serviços assistenciais. A partir do século XVI, quando começa a construção da nova Basílica, a história do Cabido entrelaça-se com a da Fábrica de São Pedro, duas instituições separadas, mas unidas na pessoa do arcipreste.

Nas últimas décadas – como destacou Bento XVI em 8 de outubro de 2007 – “ a atividade do Cabido na vida da Basílica Vaticana orientou-se progressivamente para a redescoberta das suas verdadeiras funções originárias, que consistem sobretudo no ministério da oração. (…) Esta é a natureza própria do Cabido Vaticano e o contributo que o Papa espera de vós: recordar com a vossa presença orante junto do túmulo de Pedro que nada se antepõe a Deus; que a Igreja toda está orientada para Ele, para a sua glória; que o primado de Pedro está ao serviço da unidade da Igreja e que ela por sua vez está ao serviço do desígnio salvífico da Santíssima Trindade”. 

A Capela do Coro do Cabido guarda as relíquias de São João Crisóstomo e ostenta a imagem Virgem Imaculada, coroada pelo Beato Pio IX em 1854 e circundada de estrelas, cinquenta anos depois, em 1904, por São Pio X.

 

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No encontro com o Cabido em outubro de 2007, Bento XVI reconheceu “a presença ininterrupta do clero orante na Basílica Vaticana desde os tempos de São Gregório Magno: uma presença contínua, intencionalmente não ostentosa, mas fiel e perseverante”.

Em seguida, sintetizou a história do Cabido: teve início em 1053, quando o Papa Leão IX confirmou ao Arcipreste e aos Cónegos de São Pedro, estabelecidos no mosteiro de Santo Estêvão Maior, os domínios e os privilégios concedidos pelos seus predecessores; com o pontificado de Eugénio IV (1145-1153) adquiriu as caraterísticas de uma comunidade bem estruturada e autónoma, uma longa e gradual passagem de uma estrutura monasterial, colocada ao serviço da Basílica para a atual estrutura canonical.

Depois, fez referência às funções capitulares. Sob a orientação do Arcipreste, a atividade dirigiu-se, desde as origens, a vários campos de empenho: o litúrgico para a celebração coral e para os cuidados diários dos serviços anexos ao culto; o administrativo para a gestão do património da Basílica e das igrejas filiais; o pastoral, no qual ao Cabido era confiado o cuidado do bairro “Borgo”; o campo caritativo, no qual o Cabido desenvolvia formas assistenciais próprias e de colaboração com o hospital Santo Espírito e outras instituições.

O bairro “Borgo” fica situado entre o rio Tibre e a Cidade do Vaticano e centra-se no Castel Sant'Angelo. Originalmente o mausoléu de Adriano e, mais tarde, uma fortaleza, um palácio papal e uma prisão, o castelo é agora um museu com vista panorâmica da cidade a partir do terraço. A ampla Via della Conciliazione, que conduz à Piazza San Pietro, está ladeada de vendedores de comida e lembranças.

E Bento XVI recordou que, desde o século XI até 2007, são 11 os Papas que fizeram parte do Cabido Vaticano e entre eles, os Papas do século XX, Pio XI e Pio XII. A partir do século XVI, no momento em que começou a construção da nova Basílica (no ano de 2006, celebrou-se o 5.º centenário da colocação da primeira pedra), a história do Cabido Vaticano entrelaça-se com a da Fábrica de São Pedro, instituições unidas na pessoa do Arcipreste, que zela por garantir uma recíproca e proveitosa colaboração.

No século XX, especialmente nas últimas décadas, a atividade do Cabido progressivamente orientou-se para a redescoberta das suas verdadeiras funções originárias, que consistem sobretudo no ministério da oração, pois, se a oração é fundamental para todos os cristãos, para os cónegos, é uma tarefa, por assim dizer “profissional”.

A este respeito, o Papa Ratzinger mencionou do conteúdo da sua viagem à Áustria que “a oração é serviço ao Senhor, que merece ser sempre louvado e adorado e é, ao mesmo tempo, testemunho para os homens”, sendo que “onde Deus é louvado e adorado com fidelidade, a bênção não falta”. E definiu a natureza própria do Cabido Vaticano: recordar com a sua presença orante junto do túmulo de Pedro que nada se antepõe a Deus; que a Igreja toda está orientada para Ele, para a sua glória; que o primado de Pedro está ao serviço da unidade da Igreja e que ela por sua vez está ao serviço do desígnio salvífico da Santíssima Trindade.

Enfim, é de esperar “a Basílica de São Pedro possa ser um autêntico lugar de oração, de adoração e de louvor ao Senhor”. Com efeito, “neste lugar sagrado, aonde chegam todos os dias milhares de peregrinos e turistas de todo o mundo”, torna-se necessário o testemunho de que, “ao lado do túmulo de Pedro, esteja presente uma comunidade estável de oração, que garanta a continuidade com a tradição e ao mesmo tempo interceda pelas intenções do Papa no hoje da Igreja e do mundo”.

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Por falar em cabido, recordo que foi em 1967 – tinha eu 15 anos, não tinha ainda feito os 16 – no cumprimento dum voto secular feito pelo Cabido da Catedral de Lamego, uma jornada a pé do Seminário Maior à ermida de São Domingos de Fontelo, que eu fumei o primeiro cigarro.

Era proibido fumar. Porém, como o proibido é, muitas vezes, o mais apetecido, um grupo de seminaristas que ia mais adiante foi ficando para trás e partilhou uma cigarrada às ocultas dos superiores, que iam mais à frente. E eu, que vinha mais atrasado, atrevi-me a pedir-lhes um cigarro. Hesitantes, a princípio, pois o “santinho” não podia prevaricar, mas decididos, a seguir, porque o “também faltoso” não os iria acusar, lá me deram o cigarro que acendi e fumei. E foi começo da fumaça que durou até 25 de julho de 2000.

É um dos resultados de se confiar a outrem a execução dos votos seus ou do facto de a oração própria duma coletividade ceder o passo a uma jornada folclórica porque era necessário cumprir a todo o custo, por nós ou pelos outros, ou da irrequietude juvenil. Claro, há tempo para tudo, menos para rezar.

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Bela lição do Cabido de São Pedro!

2021.08.29 – Louro de Carvalho

sábado, 28 de agosto de 2021

Produzir legislação com o sentido das pessoas e do povo que sofre

 

O Papa Francisco recebeu, no Vaticano, no dia 27, os participantes do encontro promovido pela Rede Internacional de Legisladores Católicos, uma rede de parlamentares católicos provenientes de todo o mundo nascida, em Trumau, na Áustria, em 2010, com o patrocínio do Cardeal Christoph Schönborn, Arcebispo de Viena, que esteve presente na audiência junto com o professor Alting von Geusau e Ignatius Aphrem II, patriarca da Igreja sírio-ortodoxa.

O Sumo Pontífice elencou um conjunto de chagas que atravessam a sociedade tornando as pessoas extremamente vulneráveis: a pandemia da covid que perturba e continua a causar mortes e contágios; múltiplos distúrbios e polarizações políticas que criam desconfiança em relação aos representantes políticos e, acima de tudo, o desafio que interpela e torna ainda mais delicado o papel dos parlamentares, especialmente dos parlamentares católicos, que é o desafio das novas tecnologias e das ameaças à “dignidade humana”; a pornografia infantil; a exploração de dados pessoais; os ataques a infraestruturas importantes como hospitais; e as fake news.

E contra essas chagas, na opinião inquestionada do Santo Padre, é necessária uma legislação atenta e orientada ao bem comum. Mais: este é um mandato claro e definido que o Papa confiou aos membros da Rede Internacional de Legisladores Católicos.

Agradecendo ao organismo o trabalho destes 11 anos de acompanhamento e apoio à obra da Santa Sé nos respetivos países e na Comunidade internacional, o Papa abordou a realidade hodierna gravemente marcada pela pandemia da covid, que parece ganhar ímpeto, dizendo:

Fizemos certamente progressos significativos na criação e distribuição de vacinas eficazes, mas há ainda muito trabalho a ser feito. Já foram confirmados mais de 200 milhões de casos e quatro milhões de mortos devido a esta praga terrível, que também causou tanta ruína económica e social.”.

Referindo que o papel dos parlamentares é hoje mais importante do que nunca, Francisco disse que, “nomeados para servir o bem comum, são agora chamados a colaborar, através da sua ação política, para renovar integralmente as suas comunidades e a sociedade como um todo”. E frisou que o objetivo não é “vencer o vírus” e “voltar ao status quo de antes da pandemia”, mas “enfrentar as causas profundas que a crise revelou e ampliou: pobreza, desigualdade social, desemprego e falta de acesso à educação”. Com efeito, de uma crise não saímos iguais, mas piores ou melhores. Nem sairemos sozinhos, mas ou sairemos juntos ou não conseguiremos sair.

Não é trabalho fácil, para mais em “época de perturbação e polarização política”, na qual “os parlamentares e os políticos em geral nem sempre possuem grande estima”. Porém, como observou o Papa, é de questionar “que desafio maior existe do que servir o bem comum e dar prioridade ao bem-estar de todos, antes do ganho pessoal”.

Neste contexto, um dos maiores desafios da atualidade é “a administração da tecnologia para o bem comum”, vincou o Pontífice. Na verdade, “as maravilhas da ciência e tecnologias modernas aumentaram a nossa qualidade de vida”, mas, se “abandonadas a si mesmas e apenas às forças do mercado, sem as devidas orientações das assembleias legislativas e de outras autoridades públicas orientadas por um sentido de responsabilidade social, essas inovações podem ameaçar a dignidade do ser humano”. Não se trata, segundo o Papa, de “frear o progresso tecnológico”, mas “de proteger a dignidade humana quando esta é ameaçada”. Os instrumentos políticos e regulamentares permitem que os parlamentares o façam. E o Pontífice enumerou alguns destes ataques contra a pessoa provenientes da internet: o flagelo da pornografia infantil, a exploração de dados pessoais, os ataques a infraestruturas importantes como hospitais, as falsidades difundidas nas redes sociais.

A isto poderá e deverá atalhar “uma legislação atenta” e que oriente “a evolução e aplicação da tecnologia para o bem comum”. Para tanto, precisamos de cidadãos responsáveis e líderes bem preparados. E o incentivo é a “assumir a tarefa de uma reflexão moral séria e profunda sobre os riscos e oportunidades inerentes ao progresso científico e tecnológico, para que a legislação e as normas internacionais que os regulam possam centrar-se na promoção do desenvolvimento humano integral e da paz, e não no progresso como um fim em si mesmo”.

Assim, o Papa convidou os membros da Rede Internacional de Legisladores Católicos a “promoverem o espírito de solidariedade, a começar pelas necessidades das pessoas vulneráveis e desfavorecidas”, pois é indispensável “o compromisso dos cidadãos, nas várias esferas da participação social, civil e política. E explicitou:

Para curar o mundo, duramente provado pela pandemia, e para construir um futuro mais inclusivo e sustentável em que a tecnologia sirva as necessidades humanas e não nos isole uns dos outros, precisamos não apenas de cidadãos responsáveis, mas também de líderes preparados e animados pelo princípio do bem comum”.

Em suma, o Papa reconhece que ainda há muito que fazer contra a covid; sustenta que é indispensável uma boa política para a paz social; enfatiza o desafio das novas tecnologias; e quer cidadãos responsáveis e líderes bem preparados e orientados para o bem comum.

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Por sua vez, em entrevista que vai estar no centro do programa ECCLESIA, na Antena 1, este domingo, às 6 horas, pré-anunciada neste dia 28 e de que a agência Ecclesia já levantou o véu, Dom António Couto, Bispo de Lamego e autor do livro O lado de cá da meia-noite”, pede uma Igreja “a fazer-se”, que seja mais familiar e receia que a próxima Assembleia dos Bispos sobre a Sinodalidade seja “um conjunto de relatórios”, bem como dá uma alfinetada na política e na sociedade dizendo que a sociedade trata idosos como “canalha”.

A este respeito, recordo como o prelado, em outubro de 2016, referia para quem o escutava, na igreja matriz de Santa Maria da Feira, o que via nas suas visitas pastorais na diocese de Lamego no atinente aos idosos, com quem ele conversava demoradamente a sós e o que estes lhe contavam, pelo que acusava o tom burocrático, frio e até displicente com que eram tratados, como se não conhecessem a realidade de quem sofre a penúria e o isolamento.

Agora, afirmando que o tempo de pandemia é “já um tempo de esperança”, releva a importância de “fazer a experiência” da proximidade às pessoas e da visita aos locais mais isolados para decidir não só com “relatórios e papéis”, que não motivam qualquer compaixão. E conta:

Tenho dito aos políticos que aqui vêm e falam comigo: façam esta experiência. A Assembleia da República devia fazer esta experiência e depois não sei se fariam a leis que fazem. A política nacional, central, deveria debruçar-se sobre estas realidades, não recebendo papéis e relatórios, porque isso não dói nada.”.

Por outro lado, o autor do livro ‘O lado de cá da meia-noite’ pede um regresso à Bíblia, um livro “de cultura”, que chama à humanidade e mostra caminhos “intransitivos”. Lamenta que a cultura dominante queira resumir a Bíblia a um livro de fé e sustenta que, a par da “cultura grega, que continua através dos tempos”, da qual o homem contemporâneo é herdeiro, “há que ter na outra mão a Bíblia, um livro de excelência”. E recorda:

O que nos traz a Bíblia é uma voz que vem de fora. Não nasce dos meus desejos, instintos e projetos. É um caminho novo que vem de fora, uma voz que me interpela. É um rosto, como diz Emmanuel Levinas.”.

Perante “a voz ética” que se escuta, “não há tempo para pensar, há que responder, pois é o rosto de um irmão, de um pobre, de uma criança, de um abandonado, é um rosto que fala… Eu não tenho de tomar uma decisão, tenho de responder”, reconhece, contrapondo a cultura dominante que procura “caminhos alcatroados, de modas que mudam”. E explicita:

Há muitos caminhos alcatroados, mas os caminhos a fazer – o da estupidez para a inteligência, da maldade para a bondade – são caminhos longos, levam muito tempo porque dá muito trabalho passar do ‘eu’ para o ‘eis-me’; requer uma disponibilidade que não experimentamos. mas este é o caminho apontado pela Bíblia, pelo Talmude judaico e por grandes pensadores da história”.

O prelado lamecense diz que este é o tempo de “escutar a voz de Deus, mesmo que doa”. Deseja uma “Igreja mais familiar”, uma “Igreja a fazer-se” em detrimento de o “fazer coisas na Igreja”, e pede que se construam “templos de tempo”, que reconheçam o que é paradigmático na Igreja – “o Evangelho, a evangelização, a caridade”, e não os eventos programáticos. E desenvolve:

Fazer coisas na Igreja é mais fácil. E é o que andamos a fazer. Apostamos quase tudo no fazer coisas na Igreja porque é mais fácil de manter: continuar a limpar o altar, os bancos, lidar com coisas, procurar pessoas para as flores, para dar catequese… Estamos sempre no mesmo, a fazer coisas na Igreja. Os párocos ficam felizes quando têm a Igreja organizada, mas penso que estamos a brincar com coisas secundárias – é preciso muito mais. Onde está a escuta, permanente e ativada, da palavra de Deus, que é o motor?”.

D. António Couto reconhece uma “enorme porta” que o Papa Francisco deseja abrir com a realização de uma Assembleia de Bispos sobre Sinodalidade, em outubro de 2023, mas receia que resulte num “conjunto de relatórios, todos iguais”: “Temo que não peguemos na Igreja e não a comecemos a fazer”. E explica:

Fazer a Igreja significa que estamos dois aqui, mas podíamos ter connosco uma criança, um velhinho, um doente e todos tínhamos que nos entender. Não podia falar tão rápido, as perguntas teriam de ser outras para alargar o contexto, mais pessoas teriam de intervir. Isto é a comunhão, a Igreja a fazer-se. E este já seria o objetivo. Se conseguirmos juntar diferentes pessoas em idade, culturas, até de credos diferentes – porque temos de abrir a Igreja para o mundo – vamos ter um excelente diálogo e vamos todos ter de nos respeitar. Isso é a Igreja a fazer-se.”.

Enfim, Igreja a fazer-se e política ao serviço do homem ou com vista à construção e consolidação dum povo a partir da realidade é o grande desafio para obviar às situações de vulnerabilidade, tantas vezes resultantes da ambição desenfreada de alguns ou dos caprichos incontrolados do progresso. Para tanto, precisamos da ética, da lei justa e do espírito personalista articulado com o princípio do bem comum.

2021.08.28 – Louro de Carvalho

No V centenário da morte de Josquin, o “Michelangelo da música”

 

Em 27 de agosto de 1521, falecia no norte da França o compositor flamengo Josquin Desprez, que, durante alguns anos, esteve ao serviço dos Papas no Colégio dos Capelães Cantores. O Vaticano assinalou a efeméride com um concerto na Capela Sistina, promovido pelo Dicastério para a Comunicação, os Museus do Vaticano e a Capela Musical Pontifícia.

Josquin Lebloitte, dito Josquin Desprez ou Josquin des Prés, que nasceu em Beaurevoir (?), Picardia, cerca do ano 1450, e faleceu em Condé-sur-l’Escaut, a 27 de agosto de 1521, não raro designado simplesmente como Josquin, foi um compositor franco-flamengo da Renascença.

É o compositor europeu mais célebre entre Guillaume Dufay (1397 – 1474) e Palestrina (1525 – 1594). Geralmente considerado como a figura central da Escola franco-flamenga, é o primeiro grande mestre da polifonia vocal dos primórdios do Renascimento.

No século XVI, chegou a ser considerado o maior compositor da época, vindo a ser admirado e imitado o seu domínio da técnica e a sua expressividade. Autores tão diversos como Baldassare Castiglione e Martinho Lutero escreveram sobre a sua reputação e o seu renome. Teóricos como Glareanus e Gioseffo Zarlino julgaram perfeito o seu estilo.

A sua música incorpora influências italianas na formação caraterística da escola flamenga, tendo a sua combinação de técnica e expressividade marcado a rutura com a música medieval.

Josquin contribuiu para o património musical com diversos géneros, principalmente o moteto (género musical polifónico surgido no século XIII, em que inicialmente, se usavam textos distintos para cada voz), a missa e a chanson (forma musical basicamente vocal surgida em França no período renascentista) francesa e italiana. Mas foi sobretudo nos mais de cem motetos que se mostrou mais original: a suspensão é empregada como recurso de ênfase e as vozes ganham os registos mais graves nos trechos em que o texto alude à morte. Também é relevante na sua obra a canção.

Foi o principal representante do novo estilo de meados do século XV, com formas musicais menos rígidas. Certas canções mostram técnica rebuscada, em ritmos vivos e texturas claras. Superando as formas tradicionais e dando novo tratamento às relações entre texto e música, foi um mestre da polifonia e do contraponto, estendeu e aplicou sistematicamente o recurso da imitação (repetição de um trecho musical por vozes diferentes).

A ampla difusão da sua música tornou-se possível graças à invenção da impressão de partituras, no começo do século XVI. E hoje sabemos mais sobre sua música do que sobre a sua vida.

Compositor e cantor de talento muito apreciado pelos mais ricos mecenas da Europa, incluindo a família Este, de Ferrara, Josquin foi o primeiro compositor a ter impressos volumes inteiramente dedicados à sua obra musical. Vários aspetos da sua biografia são pouco documentados – sobretudo detalhes da sua infância e educação.

Há, porém, um problema, que é a atribuição a Josquin de peças que não são suas, mas o seu estilo musical destaca-se por exibir grande invenção melódica e domínio de técnicas como o cânone, bem como uma inclinação para as canções populares.

Entre as obras mais famosas de Desprez, estão a missa Pange lingua, o moteto Stabat Mater, a chanson Petite Camusette e a frottola El Grillo (“O grilo”)Pange língua (de Pange, Lingua, Gloriosi Corporis Mysterium, primeiros versos do hino composto por Tomás de Aquino para a festa do Corpus Christi: “Canta, língua, o mistério do glorioso corpo...”) é Missa para coro e 4 vozes. Baisé moy, ma doulce amye (“Beija-me, minha doce amiga”)chanson para 4 vozes.

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A frottola é um estilo musical de peças de um repertório de música secular do Norte da Itália que floresceu no final do século XV e início do século XVI. Era considerada música das cortes. Era composta por canções estróficas, solísticas, seculares, com ritmo bem marcado, diatómicas, com acompanhamento musical instrumental. O seu estilo é precursor do madrigal. No seu estilo, a frottola varia de quase toda homofónica, com 4 vozes e os ornamentos melódicos muito elaborados, principalmente as vozes do tenor. As vozes inferiores participam com escalas, representando o máximo da atividade polifónica, e, no restante elas seguem homofonicamente. As linhas do baixo eram bem harmónicas. Os ritmos sugerem um estilo de canção de dança.

As palavras tinham conotações populares e rústicas; e as formas poéticas utilizadas para o repertório escrito de frottole resultaram da capacidade dos improvisadores da época e, provavelmente, até de antes, mas isto não nos deve levar a pensar que a frottola é uma música só do povo ou folclorista.

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Quando Josquin Desprez morre a 27 de agosto de 1521, em Condé-sur-L’Escaut, no norte da França, próximo à atual fronteira com a Bélgica, tinha cerca de 70 anos e era reitor do Colégio de Notre Dame, mas, acima de tudo, era o músico mais famoso da época.

Na sua longa viagem em etapas pelas Cortes da França, Itália e dos Estados Pontifícios, tornou-se “o Michelangelo da música”, segundo o maestro Walter Testolin, diretor do conjunto “De labyrintho” e um dos maiores conhecedores da obra do compositor flamengo.

Josquin faz uma mudança radical na história da música, como explica Testolin. Na sua obra, há uma coexistência completa da palavra com a música, o que faz dele o motor da grande revolução que acontecerá cerca de duas gerações após a sua morte na Itália, e que verá o nascimento do madrigal. Dessa música nascerá a ópera. 

Entre 1489 e 1495 o músico, nascido nos Flandres a meados do século XV, mas adotado por seus tios que viviam em Condé-sur-L’Escaut, está no Colégio dos Capelães Cantores do Papa, a atual Capela Musical Pontifícia Sistina, primeiro com Inocêncio VIII e depois com Alexandre VI (Borgia), para os quais compõe algumas de suas Missas mais famosas. E o maestro Marcos Pavan, diretor da Capela Musical Pontifícia, explica:

Josquin torna-se o músico mais famoso de todo o Ocidente graças ao seu génio porque soube dar um passo à frente no estilo polifónico da sua época, até àquele momento um tanto intelectualista, e torna-o mais audível e atento à expressão dos sentimentos”.

 Como outros cantores da Capela Sistina, Josquin quase certamente quis deixar o seu nome gravado na parede do pequeno coro da Capela Sistina, num graffiti descoberto após as restaurações no final do século passado. Sobre isto, diz Monsenhor Pavan:

Muito provavelmente é a sua assinatura, porque, para os cantores que também foram compositores, era certamente um privilégio poder participar na Capela Pontifícia e, portanto, deixavam uma recordação sua na Capela Sistina”. 

 Os maestros Pavan e Testolin, com os corais que dirigem, são os protagonistas do concerto comemorativo do 500.º aniversário da morte de Josquin, gravado na Capela Sistina e fruto da colaboração entre Vatican Media, Rádio Vaticano e Vatican News, Capela Musical Pontifícia e Museus Vaticanos, e que será lançado no outono.

 Durante os seus anos no Vaticano, explica o diretor brasileiro da Capela pontifícia, Josquin “faz muitas coisas de valor, como o tractus Domine, non secundum peccata nostra, com o qual participamos neste concerto comemorativo, certamente realizado pela primeira vez no coro da Capela Sistina, na celebração da Quarta-feira de Cinzas presidida pelo Papa”. No texto, canta-se: “Senhor, não seja eu julgado segundo os meus pecados” – o que nos recorda o Juízo Final pintado por Michelangelo que temos na Capela Sistina”.

Quando está ao serviço do Papa, sublinha o Maestro Testolin, o compositor flamengo compõe “algumas das suas obras mais importantes: entre todas as Missas L’homme armé super voces musicales, talvez a sua primeira Missa totalmente humanística” e que, para o diretor de Vicenza, “dará vida também ao novo Josquin porque, durante os anos romanos, ele se transformará radicalmente e irá crescer de forma notável”, pois, “em poucos anos, tornar-se-á o principal compositor europeu”.

Na escolha das peças a interpretar no concerto comemorativo, o maestro e os seus colaboradores do conjunto “De labyrinto” optaram por quatro motetos “que descrevessem o percurso de Josquin, mas sobretudo com uma ligação direta com Roma”.

De facto, depois do “Praeter rerum seriem”, um moteto a seis vozes escrito nos últimos anos da sua vida em Condé, foram incluídos no programa “Illibata Dei virgo nutrix”, composto em Roma, no qual Josquin coloca a sua assinatura, pondo o seu nome como acróstico nos versos da primeira parte.

Assim, depois do “Gloria” da “Missa Gaudeamus”, “Missa de extraordinária beleza escrita em Roma, foram escolhidos dois motetos que têm uma referência precisa à Capela Sistina. Um é o Factum est autem?, que descreve a cena do Batismo de Cristo tirada do Evangelho de Lucas: na Sistina é ilustrado pelo afresco de Perugino. E, depois, o longo moteto, Liber generationis Jesu Cristi’, cujo texto é retirado da genealogia de Cristo com a qual Mateus abre o seu Evangelho”. São os nomes dos antepassados ​​e familiares de Cristo, de Abraão a José, “que Josquin musicou e que Michelangelo, alguns anos depois, pintou na sua série de afrescos na Capela Sistina.

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Enfim, um músico inovador e precursor, que muita gente não conhece. Foi um inovador que abriu o caminho para o madrigal; é o compositor-cantor da polifonia e do contraponto; entre 1489 e 1495, esteve no Colégio dos Capelães Cantores do Papa; tornou-se o principal compositor da Europa ao tempo; e terá deixado a sua assinatura em graffiti na Capela Sistina.

2021.08.28 – Louro de Carvalho