No
passado dia 15 de agosto, na paróquia de Meda, da diocese de Lamego, uma manifestação
de cidadãos nas imediações da igreja matriz levou a que o Bispo diocesano e o
pároco, tendo iniciado a celebração eucarística da Solenidade da Virgem Santa
Maria, a interromperam e não a retomaram, mercê do barulho ensurdecedor.
Interpelado
pelo prelado, o cabo-chefe da GNR, comandante da força de segurança que assistiu
a este evento popular, terá respondido que as pessoas têm o direito de se
manifestarem.
Independentemente
dos motivos que induziram o grupo de populares a invocar o direito constitucional
de manifestação, os quais poderiam ser (e até o foram) discutidos noutras ocasiões e por meios
mais adequados e proporcionados, obviamente estou pelo lado do Bispo diocesano,
por motivos da ilegalidade de que se revestiu o episódio em si.
É
verdade que o art.º 45.º da CRP estabelece que “os cidadãos têm o direito de se
reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização” (n.º 1) e que “a todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação” (n.º 2). Mas também é
verdade que o n.º 1 do art.º 41.º estabelece que “a liberdade de
consciência, de religião e de culto é inviolável”.
Por outro lado, o art.º 290.º esclarece que “as leis constitucionais posteriores a 25 de abril de 1974 não
ressalvadas neste capítulo são consideradas leis ordinárias, sem prejuízo do
disposto no número seguinte (n.º 1) e “o direito ordinário anterior à entrada em
vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja
contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados” (n.º 2).
Assim,
é à luz do n.º 2 do art.º 290.º da CRP que se entende a plena vigência da lei
das manifestações, que só há pouco tempo é que alguns descontentes começaram a
pensar que era o tempo do PREC (em agosto de 1974 ainda não havia PREC). Digam em que aspetos
ela contradiz a Constituição
ou os princípios nela consignados.
Assim,
é de ter em conta o que estipula o n.º 1 do art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 406/74,
de 29 de agosto: “A todos os cidadãos é
garantido o livre exercício do direito de se reunirem pacificamente em lugares
públicos, abertos ao público e particulares, independentemente de autorizações,
‘para fins não contrários à lei, à
moral, aos direitos das pessoas singulares ou coletivas e à ordem e à
tranquilidade públicas’.” (sublinhei).
Ora,
é direito da comunidade paroquial desenvolver, integralmente e sem perturbações,
o seu ato de culto, para o qual foi convocada legitimamente. Se é certo que
todos têm o direito de se manifestarem e que as forças de segurança não podem
impedir ou dificultar as manifestações, também é certo que lhes cabe proteger
os direitos e a segurança de quem está legitimamente em reunião de culto, como
em reunião de órgãos colegiais.
Embora
não seja necessária qualquer autorização, o n.º 1 do art.º 2.º do mencionado
decreto-lei frisa que “as pessoas ou
entidades que pretendam realizar reuniões, comícios, manifestações ou desfiles
em lugares públicos ou abertos ao público deverão avisar por escrito e com a
antecedência mínima de dois dias úteis o governador civil do distrito ou o
presidente da câmara municipal, conforme o local da aglomeração se situe ou não
na capital do distrito”.
Como
já não há governador civil e como a Meda não é cabeça de distrito, tal aviso
devia ser feito ao presidente da câmara municipal.
O
n.º 2 do mesmo artigo do mencionado decreto-lei estabelece que “o aviso deverá ser assinado por três dos
promotores devidamente identificados pelo nome, profissão e morada ou, tratando-se
de associações, pelas respetivas direções”. E o art.º 3.º estipula que o aviso
“deverá ainda conter a indicação da hora,
do local e do objeto da reunião e, quando se trate de manifestações ou
desfiles, a indicação do trajeto a seguir”.
Quer
isto dizer que também, pelos aspetos formais, a manifestação é ilegal.
No
atinente à postura da polícia, é de recordar que o n.º 1 do art.º 5.º prevê que
as autoridades possam interromper tais episódios “quando forem afastados da sua finalidade pela prática de atos
contrários à lei ou à moral ou que perturbem grave e efetivamente a ordem e a
tranquilidade públicas, o livre exercício dos direitos das pessoas ou infrinjam
o disposto no n.º 2 do artigo 1.º” (o último item diz respeito à honra e consideração
devidos aos órgãos de soberania e às forças armadas), devendo, em tal caso,
nos termos do n.º 2, “as autoridades
competentes lavrar auto em que descreverão ‘os fundamentos’ da ordem de
interrupção, entregando cópia desse auto aos promotores”. Mais, segundo o
previsto no n.º 1 do art.º 6.º, “as
autoridades poderão, se tal for indispensável ao bom ordenamento do trânsito de
pessoas e de veículos nas vias públicas, alterar os trajetos programados ou
determinar que os desfiles ou cortejos se façam só por uma das metades das
faixas de rodagem”.
É
caso para perguntar por que motivo o senhor cabo-chefe da GNR entrou na igreja
armado quando o n.º 1 do art.º 10.º estabelece que “nenhum agente de autoridade poderá estar presente nas reuniões
realizadas em recinto fechado, a não ser mediante solicitação dos promotores”.
A
manifestação não era em recinto fechado e a reunião de culto dos católicos em
recinto fechado não está sob a alçada da lei das manifestações, aqui invocada e
aduzida.
***
Quanto
às motivações da manifestação, é preciso referir que não há proporcionalidade do
meio com a finalidade.
O
pároco é o presidente nato de uma instituição pertencente à Igreja. O
relacionamento de quem dirige superiormente uma instituição com a sua direção técnica
nem sempre é fácil. Tudo isso deve ser resolvido intra muros. A rutura é estabelecida entre duas instituições: no
caso, a diocese e uma congregação religiosa. Ninguém é obrigado a continuar a
gerir uma instituição em contexto desconfortável, nem ninguém pode admitir que
uma direção técnica não respeite as orientações superiores. Isso de badalar que
o padre tem comportamentos mundanos é oco e insultuoso, até porque os padres
diocesanos não são frades conventuais, monacais ou eremitas; e dizer que o
padre pressiona psicologicamente as freiras só revela falta de estofo e de capacidade
de encarar as situações do quotidiano.
Tão
ilegítimo é as irmãs dizerem que só continuariam ali a trabalhar se o padre
fosse afastado, como o seria se o pároco dissesse que só continuaria na
paróquia se as irmãs fossem embora.
Não
vale invocar a vontade dos beneméritos cujas disposições legatárias, ainda que
bem-intencionadas, se devem cumprir enquanto for possível e não mais do que
isso.
Custa-me
ver um bispo sujeitar-se, talvez sem necessidade, a este tipo de movimentação
popular. Pessoalmente, tive situação grave em que o prelado se prontificou para
dar a face por mim numa das paróquias, atitude que agradeci, mas que pus de parte,
pois, cabia-me a mim resolver a situação, bastando-me a certeza do apoio do
prelado, o que fiz com êxito. Mas tinha a perceção de que a presença do prelado
provocaria indisposições desnecessárias.
Espero
que tenha êxito na justiça a denúncia que as entidades respetivas farão no
Ministério Público. Não sei se os tribunais estarão sensíveis para a lei em
causa. Já vi de tudo. Mas importa que episódios destes não se repitam, até
porque levantam suspeitas de cristianismo mal formulado nas consciências. Recordo
que não foi leal uma inesperada manifestação invasiva de populares de Canelas na
Sé do Porto num solene Te Deum presidido pelo então Bispo diocesano
Dom
António Francisco dos Santos, tendo o Cabido assumido generosamente para si o ónus
da culpa pelo facto de não o ter previsto e garantindo que tal não se repetiria.
E recordo como foram atrabiliárias manifestações contra a presença dum novo
pároco na mesma paróquia de Canelas, mas tendo as forças da ordem imposto o necessário
afastamento de modo que o culto sempre se desenvolveu.
É
óbvio que, seja como for, como reza a nota da Vigararia Geral, “nestas
circunstâncias adversas, é dever do Bispo Diocesano e do Pároco da Meda estarem
no seu lugar, isto é, ao lado da comunidade crente da Meda que quer praticar a
sua fé, assistindo-lhe, para isso, pleno direito”. E é bom poder anotar-se que “o
Bispo Diocesano e o Pároco da Meda garantem (…) que estarão no seu lugar, isto é, com o Povo crente
da Meda, nomeadamente ao domingo, em todas as situações”.
Não
é de outro modo que se presta bom serviço ao Reino e Deus.
2021.08.19 – Louro de Carvalho
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