quinta-feira, 19 de agosto de 2021

O direito constitucional de manifestação não é absoluto

 

No passado dia 15 de agosto, na paróquia de Meda, da diocese de Lamego, uma manifestação de cidadãos nas imediações da igreja matriz levou a que o Bispo diocesano e o pároco, tendo iniciado a celebração eucarística da Solenidade da Virgem Santa Maria, a interromperam e não a retomaram, mercê do barulho ensurdecedor.

Interpelado pelo prelado, o cabo-chefe da GNR, comandante da força de segurança que assistiu a este evento popular, terá respondido que as pessoas têm o direito de se manifestarem.

Independentemente dos motivos que induziram o grupo de populares a invocar o direito constitucional de manifestação, os quais poderiam ser (e até o foram) discutidos noutras ocasiões e por meios mais adequados e proporcionados, obviamente estou pelo lado do Bispo diocesano, por motivos da ilegalidade de que se revestiu o episódio em si.

É verdade que o art.º 45.º da CRP estabelece que “os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização(n.º 1) e que “a todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação(n.º 2).  Mas também é verdade que o n.º 1 do art.º 41.º estabelece que “a liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável”. Por outro lado, o art.º 290.º esclarece que “as leis constitucionais posteriores a 25 de abril de 1974 não ressalvadas neste capítulo são consideradas leis ordinárias, sem prejuízo do disposto no número seguinte (n.º 1) e “o direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados(n.º 2).

Assim, é à luz do n.º 2 do art.º 290.º da CRP que se entende a plena vigência da lei das manifestações, que só há pouco tempo é que alguns descontentes começaram a pensar que era o tempo do PREC (em agosto de 1974 ainda não havia PREC). Digam em que aspetos ela contradiz a Constituição ou os princípios nela consignados.  

Assim, é de ter em conta o que estipula o n.º 1 do art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 406/74, de 29 de agosto: “A todos os cidadãos é garantido o livre exercício do direito de se reunirem pacificamente em lugares públicos, abertos ao público e particulares, independentemente de autorizações,para fins não contrários à lei, à moral, aos direitos das pessoas singulares ou coletivas e à ordem e à tranquilidade públicas’.” (sublinhei).

Ora, é direito da comunidade paroquial desenvolver, integralmente e sem perturbações, o seu ato de culto, para o qual foi convocada legitimamente. Se é certo que todos têm o direito de se manifestarem e que as forças de segurança não podem impedir ou dificultar as manifestações, também é certo que lhes cabe proteger os direitos e a segurança de quem está legitimamente em reunião de culto, como em reunião de órgãos colegiais.  

Embora não seja necessária qualquer autorização, o n.º 1 do art.º 2.º do mencionado decreto-lei frisa que “as pessoas ou entidades que pretendam realizar reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos ou abertos ao público deverão avisar por escrito e com a antecedência mínima de dois dias úteis o governador civil do distrito ou o presidente da câmara municipal, conforme o local da aglomeração se situe ou não na capital do distrito”.

Como já não há governador civil e como a Meda não é cabeça de distrito, tal aviso devia ser feito ao presidente da câmara municipal.

O n.º 2 do mesmo artigo do mencionado decreto-lei estabelece que “o aviso deverá ser assinado por três dos promotores devidamente identificados pelo nome, profissão e morada ou, tratando-se de associações, pelas respetivas direções”. E o art.º 3.º estipula que o aviso “deverá ainda conter a indicação da hora, do local e do objeto da reunião e, quando se trate de manifestações ou desfiles, a indicação do trajeto a seguir”.

Quer isto dizer que também, pelos aspetos formais, a manifestação é ilegal.

No atinente à postura da polícia, é de recordar que o n.º 1 do art.º 5.º prevê que as autoridades possam interromper tais episódios “quando forem afastados da sua finalidade pela prática de atos contrários à lei ou à moral ou que perturbem grave e efetivamente a ordem e a tranquilidade públicas, o livre exercício dos direitos das pessoas ou infrinjam o disposto no n.º 2 do artigo 1.º(o último item diz respeito à honra e consideração devidos aos órgãos de soberania e às forças armadas), devendo, em tal caso, nos termos do n.º 2, “as autoridades competentes lavrar auto em que descreverão ‘os fundamentos’ da ordem de interrupção, entregando cópia desse auto aos promotores”. Mais, segundo o previsto no n.º 1 do art.º 6.º, “as autoridades poderão, se tal for indispensável ao bom ordenamento do trânsito de pessoas e de veículos nas vias públicas, alterar os trajetos programados ou determinar que os desfiles ou cortejos se façam só por uma das metades das faixas de rodagem”.

É caso para perguntar por que motivo o senhor cabo-chefe da GNR entrou na igreja armado quando o n.º 1 do art.º 10.º estabelece que “nenhum agente de autoridade poderá estar presente nas reuniões realizadas em recinto fechado, a não ser mediante solicitação dos promotores”.

A manifestação não era em recinto fechado e a reunião de culto dos católicos em recinto fechado não está sob a alçada da lei das manifestações, aqui invocada e aduzida.

***

Quanto às motivações da manifestação, é preciso referir que não há proporcionalidade do meio com a finalidade.

O pároco é o presidente nato de uma instituição pertencente à Igreja. O relacionamento de quem dirige superiormente uma instituição com a sua direção técnica nem sempre é fácil. Tudo isso deve ser resolvido intra muros. A rutura é estabelecida entre duas instituições: no caso, a diocese e uma congregação religiosa. Ninguém é obrigado a continuar a gerir uma instituição em contexto desconfortável, nem ninguém pode admitir que uma direção técnica não respeite as orientações superiores. Isso de badalar que o padre tem comportamentos mundanos é oco e insultuoso, até porque os padres diocesanos não são frades conventuais, monacais ou eremitas; e dizer que o padre pressiona psicologicamente as freiras só revela falta de estofo e de capacidade de encarar as situações do quotidiano.

Tão ilegítimo é as irmãs dizerem que só continuariam ali a trabalhar se o padre fosse afastado, como o seria se o pároco dissesse que só continuaria na paróquia se as irmãs fossem embora.

Não vale invocar a vontade dos beneméritos cujas disposições legatárias, ainda que bem-intencionadas, se devem cumprir enquanto for possível e não mais do que isso.

Custa-me ver um bispo sujeitar-se, talvez sem necessidade, a este tipo de movimentação popular. Pessoalmente, tive situação grave em que o prelado se prontificou para dar a face por mim numa das paróquias, atitude que agradeci, mas que pus de parte, pois, cabia-me a mim resolver a situação, bastando-me a certeza do apoio do prelado, o que fiz com êxito. Mas tinha a perceção de que a presença do prelado provocaria indisposições desnecessárias.

Espero que tenha êxito na justiça a denúncia que as entidades respetivas farão no Ministério Público. Não sei se os tribunais estarão sensíveis para a lei em causa. Já vi de tudo. Mas importa que episódios destes não se repitam, até porque levantam suspeitas de cristianismo mal formulado nas consciências. Recordo que não foi leal uma inesperada manifestação invasiva de populares de Canelas na Sé do Porto num solene Te Deum presidido pelo então Bispo diocesano   

Dom António Francisco dos Santos, tendo o Cabido assumido generosamente para si o ónus da culpa pelo facto de não o ter previsto e garantindo que tal não se repetiria. E recordo como foram atrabiliárias manifestações contra a presença dum novo pároco na mesma paróquia de Canelas, mas tendo as forças da ordem imposto o necessário afastamento de modo que o culto sempre se desenvolveu.      

É óbvio que, seja como for, como reza a nota da Vigararia Geral, “nestas circunstâncias adversas, é dever do Bispo Diocesano e do Pároco da Meda estarem no seu lugar, isto é, ao lado da comunidade crente da Meda que quer praticar a sua fé, assistindo-lhe, para isso, pleno direito”. E é bom poder anotar-se que “o Bispo Diocesano e o Pároco da Meda garantem (…) que estarão no seu lugar, isto é, com o Povo crente da Meda, nomeadamente ao domingo, em todas as situações”.

Não é de outro modo que se presta bom serviço ao Reino e Deus.

2021.08.19 – Louro de Carvalho

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