terça-feira, 17 de agosto de 2021

Se um adolescente quer ser vacinado, mas os pais não deixam?

 

Portugal é o terceiro país do mundo que mais está a vacinar e dos que mais positivamente tem respondido à vacinação. Com efeito, já estão completamente vacinadas 65% das pessoas e cerca de 75% já foram inoculadas com, pelo menos, uma dose. Entretanto, a vacinação contra a covid-19 para os adolescentes entre os 12 e os 15 anos, acompanhada da clivagem que a discussão pública e mediática provocou mesmo entre médicos pediatras, gerou dúvidas nos pais acerca da melhor decisão a tomar.

As, pelo menos aparentemente, contraditórias tomadas de decisão da DGS (Direção-Geral da Saúde) em recomendar a vacinação contra a covid-19 para todos os adolescentes entre os 12 e os 15 anos, acompanhadas da discussão pública e mediática, mesmo entre pediatras, virologistas e médicos de saúde pública, provocaram dúvidas nos pais acerca da melhor decisão a tomar. E, recentemente, o problema apresenta-se do lado ético e do jurídico; e coloca-se nos seguintes termos: “E, se as crianças/adolescentes não tiverem dúvidas e quiserem a vacina, mas os pais ou os representantes legais estiverem contra?”.  

Antes dos 16 anos, ninguém tem poder para decidir sozinho. Segundo a bioética e a lei, se for preciso o tribunal para resolver o conflito, o mais provável é haver ordem para vacinar.

O problema é do campo ético, enquanto está em causa a preservação da saúde pessoal e a da comunidade versus efeitos potencialmente adversos; e é do campo jurídico, porque a lei tem bem definida a idade, 16 anos, a partir da qual o menor tem capacidade para decidir sozinho. 

Não obstante, é de ter em conta que os pais não são donos ou proprietários dos filhos, que lhes são dados como dom da natureza e com o encargo de zelarem por eles como nutrícios e educadores. Por isso, mais do que o direito que tantas vezes invocam sobre eles, deveriam assumir o dever que está inerente à sua missão de pais e educadores e querer para os filhos e filhas todo o bem que lhes seja possível.

Mesmo no quadro legal há solução. Se a criança/adolescente e os pais (ou representantes legais) tentarem harmonizar soluções e não chegarem a entendimento, no dizer de Eurico Reis, juiz desembargador, a saída passará por entregar a decisão ao Ministério Público, que, “em defesa da criança, pedirá para o tribunal se substituir à vontade dos pais”.

Tais processos, de caráter urgente, aplicam-se a qualquer situação em que as crianças sintam que os pais não as estão a proteger. Entra em ação a Lei da Proteção de Menores. O tribunal, depois de ouvir os pais e o adolescente com idade superior a 12 anos, tomará uma decisão que vá ao encontro do “superior interesse da criança”.

Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, a este respeito, frisa que aquilo que que levou os países desenvolvidos a autorizarem utilizar vacinas nesta faixa etária foi a mistura da vantagem, que se acredita haver da vacinação sobre a doença, com a vantagem da vivência em sociedade e da “solidariedade com os outros membros da sociedade”. E contrapõe este aos casos em que a criança necessite de intervenção médica que a sua religião não permite, como as transfusões de sangue para as Testemunhas de Jeová. Esse caso é inequívoco, um pouco diferente da vacinação, a que chama “zona híbrida”.

Para o especialista em bioética, a vacinação justifica-se e os jovens deverão ter total noção do que está em causa, para a aceitarem em consciência. E, se tiverem responsáveis legais que não queiram que sejam vacinados nem respeitem a sua decisão, Rui Nunes entende que “os jovens devem dirigir-se ao seu centro de saúde e deixar o médico de família tomar conta do processo”. E Eurico Reis diz que “há interesses de ordem pública em relação à vacinação”, pelo que teria de haver razões muito fortes para o tribunal não ceder à vontade do adolescente, pois não consegue perceber que “um juiz não decida a favor da criança”. E lembra que, “relativamente aos filhos, os pais não têm poderes, só obrigações”. Porém, se o caso fosse oposto, com o jovem a não querer corresponder à vontade dos pais de ser vacinado, “aí, sem interesse relevante [para o adolescente], teria de haver uma razão muito forte, como uma razão médica e impeditiva”.

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É de recordar que, num primeiro momento, a DGS decidiu que, em Portugal continental (ao invés do que decidira o Governo da Região Autónoma da Madeira), a vacinação universal contra a covid-19 continuaria a ser recomendada só a partir dos 16 anos, no cenário duma semana de equívocos comunicacionais, em que pairou no ar a dúvida sobre as cerca de 410 mil pessoas dos 12 aos 15 anos. Em relação a estas, a DGS começou por garantir que essas crianças poderiam ser vacinadas se os pais assim quisessem, com a devida prescrição de um médico, para esclarecer, a seguir, que, para já, estes adolescentes não iriam ser vacinados, a menos que, sob confirmação médica, tivessem uma das comorbidades listadas, isto é doenças que os tornem mais suscetíveis a desenvolver um quadro grave de covid-19 quando infetados pelo vírus SARS-CoV-2. São elas: neoplasia maligna ativa; transplantação (ou candidatura a ela) de progenitores hematopoiéticos (alogénico e autólogo) ou de órgão sólido; imunodepressão; doença neurológica grave e/ou doenças neuromusculares (incluindo paralisia cerebral e distrofias musculares); diabetes; perturbações do desenvolvimento (trissomia 21, perturbações do desenvolvimento intelectual grave e profundo); obesidade (obesidade IMC >120% do P97 ou > 3Z-Score); doença cardiovascular; insuficiência renal crónica (insuficiência renal em diálise, insuficiência estádio III, IV e V); e doença pulmonar crónica (doença respiratória crónica sob OLD ou ventiloterapia, asma grave sob terapêutica com corticoides sistémicos, bronquiectasias, fibrose quística, deficiência de alfa-1-antitripsina).

É certo que, nos adultos, a vacina diminui em muito o risco de desenvolver doença grave. Porém, nas crianças e adolescentes, há um sistema imunitário distinto, devido à idade, acreditando-se haver respostas diferentes ao vírus e à vacina. Por outro lado, há falta de robustez de dados que suportem a decisão de vacinar entre os 12 e os 15 anos. E a dúvida, ante a falta de consenso na classe médica, generalizou-se.

Em conferência de imprensa a 30 de julho, a Diretora-Geral da Saúde apresentou as linhas gerais das justificações pelas quais não incluía estes adolescentes no plano de vacinação e aduzia que a EMA (Autoridade Europeia do Medicamento) encontrara pessoas, sobretudo jovens, que desenvolveram miocardite e pericardite (inflamações do músculo cardíaco e da membrana que envolve o coração, respetivamente) após a toma das vacinas da Pfizer e da Moderna, as únicas duas aprovadas na Europa e testadas para esta faixa etária. Também um relatório do ECDC (Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças) defendia a prioridade da utilização da vacina em grupos etários mais velhos antes de se visarem os adolescentes como um todo, ressalvando a importância de vacinar os adolescentes de alto risco. Contudo, são raros os casos que têm respondido bem ao tratamento convencional. E, visto que as crianças não têm apresentado doença grave nem morrido com covid-19, os peritos portugueses responsáveis pela decisão preferiram esperar, enquanto outros países (Alemanha, em setembro; Bélgica, China ou EUA) e a região autónoma da Madeira avançavam para vacinar universalmente os adolescentes dos 12 aos 15 anos.

Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pedia­tria da Ordem dos Médicos, considerou a decisão sensata, pois “temos vacinas em número limitado” e, se tem sido demonstrado o benefício de vacinar gente com mais de 60, 40 ou 30 anos, a mortalidade pediátrica tem sido residual e quase sempre acontece associada a outras comorbilidades.

Todavia, para este médico do Hospital de São João, é importante não se confundir uma posição de prudência e de boa gestão de recursos com posições negacionistas e de descredibilização das vacinas. Por isso, não diz que a vacina é má, só que “acarreta alguns pequenos riscos”. Segundo o pediatra, a vacina deve proteger primeiro os que correm risco de morrer, ou então “estaríamos também a dar a vacina da febre-amarela ou da febre tifoide a toda a gente”. E pedia pa­ciência:

Devemos evitar pôr em causa opiniões técnicas. Se tivessem nomeado para esse grupo dois engenheiros, três pedreiros e cinco advogados, eu diria que os tipos não eram de confiança. Não foi o caso. É de elementar justiça e respeito ouvir o que os peritos disseram e acreditar que eles o fizeram de boa-fé.”.

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Não foi este o entendimento claro do Presidente da República e o discreto do Governo e da taskforce, bem como dos comentadores que acabam por formar opinião pública. Também alguns virologistas e médicos de saúde pública, atentos ao que ia avançando noutros países, foram puxando pela DGS. E Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, apesar de respeitar a decisão da DGS de excluir os jovens saudáveis, disse que, “face ao conhecimento global, tudo indica que a relação risco-benefício é favorável para a sua vacinação”. Além disso, lembrou que as mortes e os internamentos nesta faixa etária são raros, mas também há e devem ser alargados os horizontes das vantagens da vacinação, porque esta também evita “o impacto da saúde mental” que advém das restrições à vida social. “Estes jovens têm de ter à vontade para irem a espetáculos, fazerem desporto e estarem com os seus familiares”, sustentou.

E a DGS passou a recomendar de forma universal a vacinação dos jovens entre os 12 e os 15 anos. A decisão foi anunciada no dia 10, em conferência de imprensa por Graça Freitas, que garantiu que a DGS “vai continuar a acompanhar a evolução do conhecimento científico”, mas não adiantou detalhes sobre o calendário de vacinação nesta faixa etária, vincando que a logística do processo será anunciada pela taskforce. Contudo, disse que o processo de vacinação não terá grande impacto no início do ano letivo das crianças entre os 12 e os 15 anos.

Na última reunião do Infarmed, a taskforce recomendou que, se esta decisão fosse tomada, os jovens entre os 12 e os 15 anos recebessem a 1.ª dose da nos dias 21 e 22 e 28 e 29 de agosto. No entanto, as datas não estão confirmadas: a taskforce, liderada pelo vice-almirante Gouveia e Melo, terá a última palavra e já esclareceu que “a vacinação dos jovens com idades compreendidas entre os 12 e os 15 anos está a ser planeada e será divulgada oportunamente”.

Segundo Graça Freitas, esse grupo etário abrange cerca de 400 mil pessoas, algumas das quais “já terão imunidade” contra o SARS-CoV 2, de acordo com um estudo serológico do INSA (Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge)Tudo indica que o esquema vacinal será de duas doses. Há duas vacinas autorizadas pela EMA para o grupo: Pfizer e Moderna.

O tema tem gerado um vivo debate na sociedade portuguesa nas últimas semanas. Luís Graça, imunologista e membro da Comissão Técnica de Vacinação, admitiu-o: “o tema é complexo”, tem havido “opiniões diferentes”, mas acabou por se chegar um “certo consenso”, o que permite à DGS dar agora luz verde à vacinação dos adolescentes. Graça Freitas sublinhou que, apesar das pressões sociais e políticas, a decisão se centrou nos dados científicos que existem de forma objetiva. E deu o exemplo dos EUA, onde 15 milhões de adolescentes já estão vacinados e os dados científicos mostram que isso não levou a quaisquer “sinais de risco”. Ora, o objetivo de todo o processo foi gerar confiança na população, segundo a DGS.

Na verdade, numa nota divulgada entretanto, a DGS refere que “foi possível analisar novos dados disponibilizados nos últimos dias”, os quais confirmam que os mais de 15 milhões de adolescentes vacinados nos EUA e na UE confirmam que os episódios reportados de miocardite e pericardite são extremamente raros e têm evolução clínica benigna, não sendo conhecidos “novos alertas de segurança com a utilização destas vacinas na UE nestas faixas etárias”.

Também Luís Graça acrescentou que a vacinação dos adolescentes lhes traz “benefícios ao nível da saúde mental e do bem-estar social e educacional”.

Vários outros países já estão a vacinar jovens entre os 12 e os 15 anos, tais como Canadá, Israel, Chile, Alemanha, França, Itália, Reino Unido, Áustria, Suíça, Lituânia, Roménia, Filipinas, China, Singapura, ou Hong Kong. Além disso, Espanha e Estónia já anunciaram que vão começar a fazer o mesmo a partir de setembro.

Questionada pelos jornalistas sobre a situação das pessoas transsexuais a receber tratamentos hormonais, Graça Freitas sublinhou que devem aconselhar-se com o seu médico assistente no sentido de obter uma recomendação sobre que vacina e respetivo esquema vacinal.

Luís Graça apontou que a decisão técnica sobre a necessidade de uma eventual 3.ª dose para reforçar a proteção contra o vírus ainda não está tomada e que a DGS e a Comissão Técnica de Vacinação vão continuar a monitorizar os dados científicos sobre a questão. Além disso, Graça Freitas apontou que a DGS está a estudar a possibilidade de acabar com o isolamento profilático de pessoas que já se encontrem vacinadas, norma que ainda se encontra em vigor.

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É claro que as dúvidas são muitas. Sem vacinas, os adolescentes saudáveis terão de continuar a apresentar testes para estas atividades? Os adolescentes vacinados ficarão obrigados ao mesmo? Estarão os jovens sujeitos a regressar ao ensino à distância pelo terceiro ano consecutivo?

Para Jorge Amil Dias não é “muito sério dizer que as escolas vão funcionar em pleno”. E terá razão, pois as vacinas são uma ajuda, que não a solução absoluta.

Segundo o médico especialista em Saúde Pública Bernardo Gomes, as crianças também são transmissoras do vírus e com a variante Delta (responsável pela 4.ª e mais recente vaga) tornaram-se mais transmissoras. Por isso, vacinaria um filho nestas idades, porque “a evidência científica diz que é preferível vacinar as crianças” e que a medida tem “um contributo coletivo na contenção do vírus”. E Amil Dias contra-argumenta:

Se adultos vacinados contactam com crianças infetadas, até podem ficar doentes, mas quase de certeza que não morrem por isso. Para segurança das escolas, das famílias e dos empregos, precisamos é de que os adultos estejam todos vacinados.”.

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Porém, não digam que não há vantagem em vacinar os adolescentes.

2021.08.17 – Louro de Carvalho

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