sábado, 7 de agosto de 2021

Administração Pública desfalcada em de recursos humanos

 

Foi o Presidente da República (PR) quem, no rescaldo do debate parlamentar do Estado da Nação, disse, no passado dia 28 de julho, no programa de televisão da TVI24/TSF Circulatura do Quadrado”, que Administração Pública (AP) está “desfalcada de recursos humanos” e foi “esticada até ao limite”. Disse-o no quadro da preocupação com a execução do PRR (Programa de Recuperação e Resiliência) pedindo “uma taxa máxima de utilização” dos fundos que virão de Bruxelas e que parte dessas verbas sejam para a AP.

Depois de ouvir António Lobo Xavier a pedir uma fatia maior de dinheiro para as empresas, Marcelo afirmou que temos uma AP “muito debilitada por causa da pandemia” e não refeita do depauperamento dos tempos da troika, acrescentando que, “em termos de recursos humanos”, a AP está desfalcada”. E deu o exemplo de “gabinetes de estudo e de planeamento que sofreram um grande desgaste, com saídas, com pessoas a irem para a reforma e com a concorrência do setor privado”. O Presidente, antevendo que “não vai ser fácil” inverter a situação, pois os fundos europeus “não são uma panaceia” para resolver o problema, vincou:

Todos sofreram. As empresas privadas também sofreram, mas a Administração Pública foi esticada até ao limite. Para os profissionais de Saúde foi desgastante, mas foi para todos. Muitas pessoas estão exaustas e tiveram de reformular os projetos pessoais e profissionais.”.

Marcelo reconhece que o setor empresarial atravessa dificuldades, mas apontou a dimensão das empresas, recordando que o país tem um tecido empresarial com cerca de 400 mil empresas “mais relevantes” e que com mais de 10 trabalhadores “são apenas 200 mil empresas”. Há, pois, segundo o Chefe de Estado, “um problema de recapitalização e redimensionamento, mas aí o setor privado tem de desempenhar um papel decisivo”, na sequência das várias leis que foram aprovadas para facilitar as fusões e aquisições de empresas.

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Uma semana após as preditas declarações, o Governo revelou que vai contratar mais técnicos superiores e que o OE 2022 (Orçamento do Estado para 2022) terá dinheiro para aumentar salários. Com efeito, já começaram as negociações para o OE 2022 em ano marcado pelas eleições autárquicas, que podem mudar o xadrez político, não havendo ainda garantia da sua aprovação e estando a ser desenhado este grande instrumento previsional no meio da pandemia. 

A este respeito, Alexandra Leitão, Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, que supervisiona a AP, ouvida pelo ECO online, revelou que o Governo se preparava para abrir, a 3 de agosto, oferta de colocação para contratar mais 475 técnicos superiores para a AP e que deverá abrir um segundo Recrutamento Centralizado que poderá trazer mais 1.000 técnicos superiores para o Estado (número ainda não fechado).

A governante não discute se a AP tem gente a mais ou a menos, mas assenta em que há técnicos superiores e trabalhadores qualificados a menos, sendo fundamental no PRR o papel destes trabalhadores. E acrescenta que terão condições remuneratórias mais atrativas, estando o Governo a estudar duas soluções: nível de entrada na carreira geral que premeie mais as qualificações e progressão mais rápida que os saltos de 10 anos em 10 anos, soluções que o OE 2022  acautelará inscrevendo as verbas necessárias, pois não queremos uma AP barata, mas “produtiva e qualificada”. Na ótica da Ministra, não há trabalhadores a mais na AP apesar de ter havido, desde 2015, um crescimento consistente no número de trabalhadores no setor, mas acha necessário mudar o seu perfil. Ninguém discute que precisamos de ter mais trabalhadores nos setores da Saúde e Educação. Tanto assim é que 70% do crescimento da AP de março 2020 a março de 2021 foi para a Educação e Saúde, o que significa efetivamente que é aí, por razões que têm a ver com a pandemia, que está a ser aumentado o número de trabalhadores. Aliás, referiu que muitos professores foram e são colocados em substituição, não significando que venham a aumentar o contingente na AP, dado que a sua colocação é temporária.

Confrontada com a questão do PR de o problema não ser de trabalhadores a mais na AP, mas a menos, esclareceu que precisamos de mais, mas não indistintamente, sendo fundamental “valorizar e qualificar os técnicos superiores que temos hoje” na AP e “ter capacidade para atrair, para contratar mais técnicos superiores jovens e qualificados”. E especifica:

Precisamos de juristas, economistas, engenheiros, sociólogos, enfim, pessoas com licenciatura, mestrado ou até doutoramento. No Recrutamento Centralizado, nós tínhamos um número grande de pessoas com doutoramento; no programa de estágios que está agora em curso, dos 3 mil candidatos, temos 1/4 ou 23% que têm mestrado e são jovens que os estágios são para pessoas até aos 30 anos.”.

Regista-se desde 2015 um constante crescimento do número de trabalhadores focados nas áreas de Saúde e Educação, crescimento que se acentuou no período da pandemia por razões que todos compreendem. Atualmente “é prioritário utilizar bem os recursos do PRR” fazendo um esforço para começar a virar a página da pandemia: valorizar e qualificar os técnicos superiores existentes e ter capacidade de atração de pessoas qualificadas como os técnicos superiores.

No fundo, para a Ministra, o que está em causa é mudar o perfil da AP. Com a digitalização, que teve um enorme impulso na pandemia e vai ter mais com o PRR, há cada vez mais funções que se tornam desnecessárias, como são muitas tarefas dos assistentes operacionais e dos assistentes técnicos, mas “continuamos a precisar cada vez mais de gente qualificada”. E apontou:

“Das carreiras gerais (assistentes operacionais, assistentes técnicos e técnicos superiores), só 1/4 é que são técnicos superiores. (…) Depois de incluirmos os médicos, os professores, os docentes universitários, os magistrados, o número muda radicalmente. Das carreiras gerais, só um 1/4 é que são técnicos superiores e são esses que vão produzir e que nós precisamos para produzir a massa crítica de que a AP precisa.”.

Sobre o número de contratações a fazer, releva o Processo de Recrutamento Centralizado que tem agora o lançamento da 3.ª oferta de colocação. Há pessoas na reserva, mas foram colocadas já cerca de 400 pessoas e está aberta a 3.ª oferta de colocação para 475 vagas. Depois, estas vagas dependerão do ‘match’, do cruzamento entre as pessoas na reserva e os perfis solicitados pelos serviços. Se a oferta de colocação correr bem, ficamos com a reserva já com muito pouca gente, pelo que será necessária nova oferta de colocação lá para o início do ano. A reserva tem pouco mais de 1.000 pessoas. Foi preciso fazer duas reservas, uma com cerca de 800 e outra com cerca de 200 pessoas. Foram já lançadas 700 vagas nas duas ofertas de colocação, mas só se colocaram cerca de 400 pessoas, por causa do dito ‘match’. E agora surgem mais 475 vagas.

À medida que a reserva fica exaurida, torna-se necessário um 2.º Recrutamento Centralizado para estes novos 1.000 (número ainda não definido), estando o Governo a trabalhar na possibilidade de em 2022 fazer novo recrutamento centralizado, com um número de pessoas e ‘timings’ a definir, mas, por enquanto, só para técnicos superiores.

Para a governante, nisto convém ir devagar, mudando o perfil dos trabalhadores da AP. Com a digitalização teremos menos trabalhadores menos diferenciados, mas mais trabalhadores qualificados, ou seja, técnicos superiores. Para isso, há que valorizar os existentes. Há cerca de 40 milhões de euros no PRR que o INA (Direção-Geral da Qualificação dos Trabalhadores em Funções Públicas) utilizará para, em parceria com as universidades e politécnicos, fazer a qualificação. E há outro tanto no PRR para reorganização dos modelos do trabalho (v.g: os centros de ‘coworking’).

Questionada em relação ao facto de a DGAEP (Direção-Geral da Administração e do Emprego Público) mostrar que temos 725.775 trabalhadores na AP, muito perto do máximo nos tempos da troika, e não estando a população a aumentar nem a diminuir, o que pode dar a ideia de que a AP está a engordar demasiado, contrapôs:

Este valor é um valor que resulta de uma contratação muito localizada nas áreas da Saúde e Educação. Nós tivemos, por exemplo, uma substituição de professores num número muito mais elevado do que nos anos anteriores por razões óbvias (isolamentos profiláticos e mais baixas) e que, no caso dos docentes, não constitui necessariamente contratos de trabalho definitivos. Aliás, não são nunca porque são contratos de substituição. Portanto, estes valores estão um bocadinho inflacionados ou influenciados por uma dinâmica conjuntural muito específica. Vamos ver quando as coisas voltarem ao normal se se mantêm ou não.”.

Isto requer análise quando se estabilizarem as diferenças resultantes do período de pandemia que já dura há quase 18 meses. O que é importante numa visão estrutural da AP é o perfil, já que teremos uma AP mais cara, pois substituir assistente operacional por técnico superior implica mais custos. Já não dá, segundo Alexandra Leitão, a regra do 1 por 1, mas importa “ter, paulatinamente, uma AP mais qualificada ainda que isso possa implicar mais ou menos pessoas”, mas uma AP mais qualificada “obviamente não pode ser mais barata”.

Tendo o Primeiro-Ministro, no debate do Estado da Nação, defendido que se olhe mais para os técnicos superiores e já o tendo feito em 2019 quando pediu “aumento significativo do quadro remuneratório dos técnicos superiores”, a responsável pela pasta da AP observou que “essa é uma prioridade que o Primeiro-Ministro tem assinalado” e que o Governo está a levar a peito. E essa valorização, a contemplar já no OE 2022, tem duas dimensões: a primeira, a possibilidade de olhar para as posições remuneratórias em que os técnicos superiores entram na AP e criar variações nas posições remuneratórias segundo as qualificações para atrair pessoas qualificadas na AP; e a outra – em estudo – é olhar não só para a remuneração em si, mas sobretudo para a evolução das carreiras, já que, além do valor com que se entra, importa a expectativa de subida. 

Quanto ao salário que permitiria travar a fuga destes quadros para o setor privado, Alexandra Leitão, considerando que o valor de entrada na carreira de técnico superior anda à volta dos 1.205 euros brutos mais subsídio de alimentação, observa que o mais importante é dar aos técnicos superiores a perspetiva de carreira, ou seja, mesmo dando um salto remuneratório menor, dá-lo mais depressa, “progredindo mais depressa do que apenas de 10 em 10 anos”.

Admitindo que os gabinetes de estudo e de planeamento sofreram grande desgaste, com saídas (pessoas a irem para a reforma e concorrência do setor privado), frisou a preocupação do Governo:

Já temos um Centro de Competências constituído no MNE [Ministério dos Negócios Estrangeiros] em relações internacionais, temos o Centro de Planeamento e Avaliação de Políticas Públicas (PlanAPP) que já está a celebrar os contratos com os primeiros 51 técnicos superiores, e nas próximas ofertas de colocação há de ter mais técnicos superiores. Tivemos um reforço ainda no mandato anterior, do Centro de Competências Jurídicas do Estado (JurisApp) que funciona na Presidência do Conselho de Ministros.”.

E referiu que muitos destes técnicos foram orientados para os gabinetes de planeamento de vários ministérios, com relevo para os da Segurança Social e da Economia, onde, por força da massa crítica, se impõe a capacidade de planeamento e de análise profunda que a AP tem de ter por si, para não estar sistematicamente a fazer recurso ao ‘outsourcing’. É por isso que se está a evoluir para a criação de Centros de Competências, muitos deles com natureza transversal, como o JurisApp, o PlanAPP, tendo a própria Agência para a Modernização Administrativa criado agora no seu seio “um início de um Centro de Competências em Atendimento”, visto que as pessoas que fazem atendimento ao público também precisam de ter uma formação específica.

No atinente ao número de técnicos superiores existentes na AP, adiantou que estiveram em teletrabalho 70 mil, sendo praticamente a totalidade. Porém, observou que, pensando em todas as áreas governativas, haverá um total de 720 mil trabalhadores na AP.

E fez sobressair uma nota política:

Quando os médicos fazem greve, quando os professores fazem greve, quando as forças de segurança fazem greve, temos consequências. Ninguém ouve falar em greves dos técnicos superiores. Ouvimos falar quando é uma greve geral na Função Pública e aí são todos.”.

Apontou que as carreiras gerais são as que têm menos poder reivindicativo, sobretudo os técnicos superiores, que são aqueles cujo trabalho é menos visível. E anota que, se os assistentes técnicos de atendimento nas lojas do cidadão ou os assistentes operacionais das escolas fizerem greve, se nota, mas os técnicos superiores têm menor poder reivindicativo.

No concernente a aumentos salariais para 2022 na AP, a Ministra não fez promessas, mas sublinha o grande esforço de há vários anos para cá, a começar pelo aumento da RMMG (remuneração mínima mensal garantida), que se aplica à base remuneratória da AP. E com o aumento da RMMG (antigo salário mínimo nacional – SMN), a base remuneratória também sobe e, para manter alguma proporcionalidade na TRU (Tabela Remuneratória Única), tem-se sempre posto um X a mais nos escalões imediatamente a seguir, para não haver ali compressão muito grande.

Admite que isso leve a um problema ainda pior, o achatamento da TRU. Por isso, observa que a valorização de técnicos superiores e as alterações a regras de progressão nas carreiras têm de ser associadas a alteração da TRU, cujo alcance está em estudo – associação necessária para os saltos serem repensados em função da retoma da proporcionalidade, que tem vindo a ser perdida pelo aumento da RMMG, e para quando os saltos forem mais encurtados, também haverem de ser de montantes eles próprios diversos. Tudo isto, no dizer da governante, postula uma revisitação da TRU. Com efeito, tem-se posto o enfoque na base e nos dois ou três escalões a seguir à base, o que é certo em termos sociais porque se privilegiam os que têm salários mais baixos, mas cria uma compressão à medida que se avança e tem deixado de fora os técnicos superiores e os escalões mais elevados de assistente técnico, que ficam mais desprotegidos porque não têm beneficiado de tais aumentos, a não ser os 0,3% decretados de 2019 para 2020.

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Em suma, impõe-se a colmatação de brechas de pessoal em diversos setores da AP, a valorização dos técnicos superiores, tentando atraí-los para o setor público mediante o aumento salarial e a reformulação das carreiras, a subida da massa salarial nos escalões mais baixos da TRU e a reformulação proporcionada dos escalões intermédios e superiores.

Para tanto, são precisas receitas. Aumentar os impostos significa sobrecarregar os contribuintes, os que realmente pagam. Talvez a solução passe por levar a que todos paguem e se anulem os desperdícios no Estado. Salários magros originam legalmente despesas de representação, deslocações e ajudas de custo; e ilegalmente corrupção. Impostos em excesso originam fuga ao fisco, fraude fiscal e branqueamento. Tarefa hercúlea espera o Governo quando acabar o PRR!

Porém, não suceda que o PRR, em vez de dotar os serviços de pessoal qualificado, ocasione a aspersão dos gabinetes governamentais e ministeriais e outros serviços da AP e congéneres (v.g: BdP) por técnicos superiores cuja qualificação seja a da pertença ao bloco central de interesses ou qualificação a que outros não tiveram hipótese de acesso estando, à partida, em igualdade de circunstâncias! E a Casa Civil do PR não tem capacidade para controlar isso…

2021.08.06 – Louro de Carvalho

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