sábado, 28 de agosto de 2021

Produzir legislação com o sentido das pessoas e do povo que sofre

 

O Papa Francisco recebeu, no Vaticano, no dia 27, os participantes do encontro promovido pela Rede Internacional de Legisladores Católicos, uma rede de parlamentares católicos provenientes de todo o mundo nascida, em Trumau, na Áustria, em 2010, com o patrocínio do Cardeal Christoph Schönborn, Arcebispo de Viena, que esteve presente na audiência junto com o professor Alting von Geusau e Ignatius Aphrem II, patriarca da Igreja sírio-ortodoxa.

O Sumo Pontífice elencou um conjunto de chagas que atravessam a sociedade tornando as pessoas extremamente vulneráveis: a pandemia da covid que perturba e continua a causar mortes e contágios; múltiplos distúrbios e polarizações políticas que criam desconfiança em relação aos representantes políticos e, acima de tudo, o desafio que interpela e torna ainda mais delicado o papel dos parlamentares, especialmente dos parlamentares católicos, que é o desafio das novas tecnologias e das ameaças à “dignidade humana”; a pornografia infantil; a exploração de dados pessoais; os ataques a infraestruturas importantes como hospitais; e as fake news.

E contra essas chagas, na opinião inquestionada do Santo Padre, é necessária uma legislação atenta e orientada ao bem comum. Mais: este é um mandato claro e definido que o Papa confiou aos membros da Rede Internacional de Legisladores Católicos.

Agradecendo ao organismo o trabalho destes 11 anos de acompanhamento e apoio à obra da Santa Sé nos respetivos países e na Comunidade internacional, o Papa abordou a realidade hodierna gravemente marcada pela pandemia da covid, que parece ganhar ímpeto, dizendo:

Fizemos certamente progressos significativos na criação e distribuição de vacinas eficazes, mas há ainda muito trabalho a ser feito. Já foram confirmados mais de 200 milhões de casos e quatro milhões de mortos devido a esta praga terrível, que também causou tanta ruína económica e social.”.

Referindo que o papel dos parlamentares é hoje mais importante do que nunca, Francisco disse que, “nomeados para servir o bem comum, são agora chamados a colaborar, através da sua ação política, para renovar integralmente as suas comunidades e a sociedade como um todo”. E frisou que o objetivo não é “vencer o vírus” e “voltar ao status quo de antes da pandemia”, mas “enfrentar as causas profundas que a crise revelou e ampliou: pobreza, desigualdade social, desemprego e falta de acesso à educação”. Com efeito, de uma crise não saímos iguais, mas piores ou melhores. Nem sairemos sozinhos, mas ou sairemos juntos ou não conseguiremos sair.

Não é trabalho fácil, para mais em “época de perturbação e polarização política”, na qual “os parlamentares e os políticos em geral nem sempre possuem grande estima”. Porém, como observou o Papa, é de questionar “que desafio maior existe do que servir o bem comum e dar prioridade ao bem-estar de todos, antes do ganho pessoal”.

Neste contexto, um dos maiores desafios da atualidade é “a administração da tecnologia para o bem comum”, vincou o Pontífice. Na verdade, “as maravilhas da ciência e tecnologias modernas aumentaram a nossa qualidade de vida”, mas, se “abandonadas a si mesmas e apenas às forças do mercado, sem as devidas orientações das assembleias legislativas e de outras autoridades públicas orientadas por um sentido de responsabilidade social, essas inovações podem ameaçar a dignidade do ser humano”. Não se trata, segundo o Papa, de “frear o progresso tecnológico”, mas “de proteger a dignidade humana quando esta é ameaçada”. Os instrumentos políticos e regulamentares permitem que os parlamentares o façam. E o Pontífice enumerou alguns destes ataques contra a pessoa provenientes da internet: o flagelo da pornografia infantil, a exploração de dados pessoais, os ataques a infraestruturas importantes como hospitais, as falsidades difundidas nas redes sociais.

A isto poderá e deverá atalhar “uma legislação atenta” e que oriente “a evolução e aplicação da tecnologia para o bem comum”. Para tanto, precisamos de cidadãos responsáveis e líderes bem preparados. E o incentivo é a “assumir a tarefa de uma reflexão moral séria e profunda sobre os riscos e oportunidades inerentes ao progresso científico e tecnológico, para que a legislação e as normas internacionais que os regulam possam centrar-se na promoção do desenvolvimento humano integral e da paz, e não no progresso como um fim em si mesmo”.

Assim, o Papa convidou os membros da Rede Internacional de Legisladores Católicos a “promoverem o espírito de solidariedade, a começar pelas necessidades das pessoas vulneráveis e desfavorecidas”, pois é indispensável “o compromisso dos cidadãos, nas várias esferas da participação social, civil e política. E explicitou:

Para curar o mundo, duramente provado pela pandemia, e para construir um futuro mais inclusivo e sustentável em que a tecnologia sirva as necessidades humanas e não nos isole uns dos outros, precisamos não apenas de cidadãos responsáveis, mas também de líderes preparados e animados pelo princípio do bem comum”.

Em suma, o Papa reconhece que ainda há muito que fazer contra a covid; sustenta que é indispensável uma boa política para a paz social; enfatiza o desafio das novas tecnologias; e quer cidadãos responsáveis e líderes bem preparados e orientados para o bem comum.

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Por sua vez, em entrevista que vai estar no centro do programa ECCLESIA, na Antena 1, este domingo, às 6 horas, pré-anunciada neste dia 28 e de que a agência Ecclesia já levantou o véu, Dom António Couto, Bispo de Lamego e autor do livro O lado de cá da meia-noite”, pede uma Igreja “a fazer-se”, que seja mais familiar e receia que a próxima Assembleia dos Bispos sobre a Sinodalidade seja “um conjunto de relatórios”, bem como dá uma alfinetada na política e na sociedade dizendo que a sociedade trata idosos como “canalha”.

A este respeito, recordo como o prelado, em outubro de 2016, referia para quem o escutava, na igreja matriz de Santa Maria da Feira, o que via nas suas visitas pastorais na diocese de Lamego no atinente aos idosos, com quem ele conversava demoradamente a sós e o que estes lhe contavam, pelo que acusava o tom burocrático, frio e até displicente com que eram tratados, como se não conhecessem a realidade de quem sofre a penúria e o isolamento.

Agora, afirmando que o tempo de pandemia é “já um tempo de esperança”, releva a importância de “fazer a experiência” da proximidade às pessoas e da visita aos locais mais isolados para decidir não só com “relatórios e papéis”, que não motivam qualquer compaixão. E conta:

Tenho dito aos políticos que aqui vêm e falam comigo: façam esta experiência. A Assembleia da República devia fazer esta experiência e depois não sei se fariam a leis que fazem. A política nacional, central, deveria debruçar-se sobre estas realidades, não recebendo papéis e relatórios, porque isso não dói nada.”.

Por outro lado, o autor do livro ‘O lado de cá da meia-noite’ pede um regresso à Bíblia, um livro “de cultura”, que chama à humanidade e mostra caminhos “intransitivos”. Lamenta que a cultura dominante queira resumir a Bíblia a um livro de fé e sustenta que, a par da “cultura grega, que continua através dos tempos”, da qual o homem contemporâneo é herdeiro, “há que ter na outra mão a Bíblia, um livro de excelência”. E recorda:

O que nos traz a Bíblia é uma voz que vem de fora. Não nasce dos meus desejos, instintos e projetos. É um caminho novo que vem de fora, uma voz que me interpela. É um rosto, como diz Emmanuel Levinas.”.

Perante “a voz ética” que se escuta, “não há tempo para pensar, há que responder, pois é o rosto de um irmão, de um pobre, de uma criança, de um abandonado, é um rosto que fala… Eu não tenho de tomar uma decisão, tenho de responder”, reconhece, contrapondo a cultura dominante que procura “caminhos alcatroados, de modas que mudam”. E explicita:

Há muitos caminhos alcatroados, mas os caminhos a fazer – o da estupidez para a inteligência, da maldade para a bondade – são caminhos longos, levam muito tempo porque dá muito trabalho passar do ‘eu’ para o ‘eis-me’; requer uma disponibilidade que não experimentamos. mas este é o caminho apontado pela Bíblia, pelo Talmude judaico e por grandes pensadores da história”.

O prelado lamecense diz que este é o tempo de “escutar a voz de Deus, mesmo que doa”. Deseja uma “Igreja mais familiar”, uma “Igreja a fazer-se” em detrimento de o “fazer coisas na Igreja”, e pede que se construam “templos de tempo”, que reconheçam o que é paradigmático na Igreja – “o Evangelho, a evangelização, a caridade”, e não os eventos programáticos. E desenvolve:

Fazer coisas na Igreja é mais fácil. E é o que andamos a fazer. Apostamos quase tudo no fazer coisas na Igreja porque é mais fácil de manter: continuar a limpar o altar, os bancos, lidar com coisas, procurar pessoas para as flores, para dar catequese… Estamos sempre no mesmo, a fazer coisas na Igreja. Os párocos ficam felizes quando têm a Igreja organizada, mas penso que estamos a brincar com coisas secundárias – é preciso muito mais. Onde está a escuta, permanente e ativada, da palavra de Deus, que é o motor?”.

D. António Couto reconhece uma “enorme porta” que o Papa Francisco deseja abrir com a realização de uma Assembleia de Bispos sobre Sinodalidade, em outubro de 2023, mas receia que resulte num “conjunto de relatórios, todos iguais”: “Temo que não peguemos na Igreja e não a comecemos a fazer”. E explica:

Fazer a Igreja significa que estamos dois aqui, mas podíamos ter connosco uma criança, um velhinho, um doente e todos tínhamos que nos entender. Não podia falar tão rápido, as perguntas teriam de ser outras para alargar o contexto, mais pessoas teriam de intervir. Isto é a comunhão, a Igreja a fazer-se. E este já seria o objetivo. Se conseguirmos juntar diferentes pessoas em idade, culturas, até de credos diferentes – porque temos de abrir a Igreja para o mundo – vamos ter um excelente diálogo e vamos todos ter de nos respeitar. Isso é a Igreja a fazer-se.”.

Enfim, Igreja a fazer-se e política ao serviço do homem ou com vista à construção e consolidação dum povo a partir da realidade é o grande desafio para obviar às situações de vulnerabilidade, tantas vezes resultantes da ambição desenfreada de alguns ou dos caprichos incontrolados do progresso. Para tanto, precisamos da ética, da lei justa e do espírito personalista articulado com o princípio do bem comum.

2021.08.28 – Louro de Carvalho

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