quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Enquadramento do Programa de Apoio à Economia Local

 

Ecoou na comunicação social a notícia divulgada na página da Presidência da República de que, a 24 de agosto, o Presidente da República devolveu, sem promulgação, o Decreto da Assembleia da República n.º 176/XIV, sobre “Alteração às regras de Programa de Apoio à Economia Local” (PAEL), o que não passa de uma forma eufemística de dizer que o Chefe de Estado usou a prerrogativa de veto político prevista no n.º 1 do art.º 136 da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Na verdade, o direito de veto reconhecido constitucionalmente ao Presidente não constitui um sepultamento do diploma em causa – o que acontece no caso do veto a um diploma do Governo – antes implica um pedido de reapreciação formulado em mensagem dirigida à Assembleia da República (AR) com a devida fundamentação.

No vertente caso, trata-se duma alteração à Lei n.º 43/2012, de 31 de agosto, que criou o PAEL, estabelecendo um regime excecional e transitório de concessão de crédito aos municípios, permitindo a execução de um plano de ajustamento financeiro municipal para a concretização de um cenário de equilíbrio financeiro e para a regularização do pagamento das dívidas dos municípios vencidas há mais de 90 dias, com referência a 31 de março de 2012.

Tal programa resultou da conjuntura económica e financeira do País e da execução do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF), sob a égide da troika, o qual estabeleceu metas de consolidação orçamental das contas públicas nacionais, em especial da redução do montante dos pagamentos em atraso, pelo que já então se viu a necessidade de proceder ao enquadramento dum programa de apoio à economia local, cabendo aos municípios a liderança do processo através do equilíbrio das contas, incentivo ao investimento e ajuda às populações.

Em termos sintéticos, o PAEL estabeleceu um regime de concessão de crédito pelo Estado aos municípios para regularização do pagamento das dívidas a fornecedores, vencidas há mais de 90 dias, tendo como referência 31 de março de 2012. Ao abrigo deste normativo, 103 municípios celebraram contratos de empréstimo entre 2012 e 2015 com prazos máximos de vigência de 20 ou de 14 anos, conforme as respetivas situações na altura. Sucede que, entretanto, se proclamou aos quatro ventos a saída limpa do PAEF, pelo que a troika se foi embora deixando-nos mais pobres, mas mais alegres e satisfeitos. Supunha-se que um programa de apoio à economia local teria que se estribar noutra matriz, menos austeritária e mais abrangente e ambiciosa.

Não obstante, nos termos do diploma aprovado em 22 de julho e agora vetado, os municípios que recorreram ao PAEL podiam não cobrar a taxa máxima de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) que a adesão ao programa exigia, optando por “medidas alternativas com idêntico impacto que se concretizem em receita efetiva”. Por outro lado, o diploma introduzia uma alteração segundo a qual a cessação do plano de ajustamento financeiro, no momento da liquidação completa do empréstimo concedido pelo Estado, “obsta à aplicação de sanções” previstas na lei em vigor, “extinguindo quaisquer procedimentos sancionatórios pendentes”.

De acordo com o portal da Assembleia da República, este diploma, um texto final saído da Comissão de Poder Local, com base num projeto de lei do PS, foi aprovado em votação final global em 22 de julho com votos a favor do PS, PCP e PEV, votos contra do PSD, BE e PAN e a abstenção de CDS-PP, Chega e Iniciativa Liberal.

No dia seguinte à aprovação do diploma, o presidente do PSD, Rui Rio, acusou socialistas e comunistas de “descaramento” ao juntarem-se para “votar uma lei que pura e simplesmente evita que seis autarcas, cinco do PS e um do PCP, percam o mandato em tribunal por terem violado essa mesma lei, por não terem cumprido aquilo a que se comprometeram cumprir”.

O presidente do PSD, que falava em Tábua (distrito de Coimbra), disse que “estavam na iminência de perder o mandato autárquico em tribunal os autarcas da Covilhã, de Aljustrel, de Vila Nova de Gaia, do Cartaxo e de Alfândega da Fé, todos do PS, e, de Évora, do PCP”. E acrescentou:

Juntaram-se, alteraram a lei e, administrativamente é assim, com este facilitismo. Se, por acaso, algum deles não cumpriu a lei, há uma solução, altera-se a lei. Isto não é método de Governo, nem isto é o rigor que o país merece e que os portugueses merecem.”.

Agora, o presidente do PSD manifestou-se “100% de acordo” com o veto e considerou que “mudar uma lei que calça precisamente a seis câmaras municipais, cinco do PS e uma do PCP” é “de terceiro mundo”. Rio referia-se à Câmara Municipal de Évora, cujo executivo é da CDU, quando apontou as críticas ao PCP.

O PCP considerou que o Presidente vetou “injustificadamente” o diploma que altera as regras de enquadramento do PAEL e apelidou de “ignorância” e “má-fé” as críticas de Rio.

Em comunicado, os comunistas referiram que o PAEL se constituiu “como um instrumento de ingerência e violação grosseira da autonomia administrativa e financeira das autarquias e um verdadeiro pacto de agressão contra as populações”, que “contou, desde a primeira hora, com a firme oposição do PCP”. Por isso, entendem que Marcelo “devolveu, injustificadamente”, à AR o diploma que procedia a alterações das regras de enquadramento do PAEL. E frisam:

O PAEL de Évora foi subscrito em 2013 pelo PS aquando da sua presença na presidência da autarquia. A gestão da CDU não só recuperou financeiramente o município como viu esse trabalho reconhecido em 2019 com a liquidação deste programa e o arquivamento por decisão da procuradora-geral do Tribunal de Contas de alegados incumprimentos.”.

Para o BE, o PAEL “é um programa de austeridade que a ‘troika’ impôs e que impede as autarquias de fazerem investimentos fundamentais na altura em que as populações estão mais vulneráveis”. O partido é contra o PAEL e a “única boa solução” para este programa é acabar com ele, sendo “incompreensível” que o PS e o PCP, “em vez de o revogarem, tenham feito uma alteração cirúrgica para resolver o problema de meia dúzia de autarcas”. E sublinhou:

A posição do Bloco de Esquerda mantém-se e não se confunde com a da direita. O PAEL deve ser revogado, não deve existir, é uma lei sem sentido e que martiriza tantas vezes as populações que já estão mais vulneráveis.”.

Neste sentido defendeu que “a única boa solução para o PAEL é acabar com o PAEL”, porque, no seu entender, “fazer uma lei à medida de umas poucas situações não tem nenhum sentido” e, por isso, demarcou-se do ponto de vista do líder do PSD, reforçando: “O PSD fez o PAEL e o Bloco de Esquerda quer acabar com ele”.

***

Há, na contestação ao diploma, razões de substância, de abrangência e de oportunidade. Será, pois, curioso ver que razões invoca Marcelo para opor o seu veto político. É elucidativa a carta enviada ao Presidente da AR:

1. Dirijo-me a Vossa Excelência nos termos do n.º 1 do artigo 136.º da Constituição, transmitindo a presente mensagem à Assembleia da República sobre o Decreto n.º 176/XIV.

2. Do diploma decorre, em termos de facto, a eventual não aplicação de sanções a um número preciso e limitado de autarquias locais, relativas ao PAEL.

3. O mesmo diploma foi submetido a promulgação já depois da convocação das eleições para as autarquias locais e do início do prazo de apresentação de candidaturas.

4. Afigura-se de meridiano bom senso não suscitar, com ele, interferências eleitorais e mesmo danos reputacionais para autarquias e autarcas, assim salvaguardando a separação entre a legislação sobre gestão autárquica e o período eleitoral em curso.

5. Nestes termos, devolvo à Assembleia da República, sem promulgação, o Decreto n.º 176/XIV, contendo alteração às regras de enquadramento do PAEL, para que possa sobre ele pronunciar-se depois das eleições do dia 26 de setembro, ou seja, daqui a um mês e dois dias.”.

Quer dizer: Marcelo não invocou nenhuma razão de substância, mas só de abrangência e de circunstância. Em abrangência, critica o facto de apenas se limitar a aplicação de sanções (matéria) e a um número preciso e restrito de autarquias (destinatário). Parece haver colagem discreta ao líder do PSD. E, em termos circunstanciais, refere o facto de o diploma ter sido presente para promulgação “já depois da convocação das eleições para as autarquias locais e do início do prazo de apresentação de candidaturas”. Há claro alinhamento com a restritiva interpretação das leis eleitorais pela CNE (Comissão Nacional de Eleições), a meu ver, sem suporte suficiente. Com efeito, a CNE não quer que os municípios promovam este ano orçamentos participativos, pois considera que a realização de orçamentos participativos em período próximo de eleições autárquicas não é “admissível”, uma vez que viola a lei da publicidade comercial. 

Na perspetiva da CNE, os orçamentos participativos podem servir para a “promoção dos autarcas em funções. “Não somos nós que o dizemos, é a lei”, diz o porta-voz da Comissão, João Machado. Porém, os autarcas com a iniciativa em curso – são pelo menos 51 autarquias – acusam a CNE de “desconhecer o terreno”.

Segundo o JN, 123 câmaras (de 308) responderam se promoveram ou não orçamentos participativos – 76 fizeram-no, das quais 51 este ano. A CNE realça que os orçamentos participativos vão prolongar-se “pelo período eleitoral e, eventualmente, pelo mandato seguinte” e, por isso, acredita que não cumprem o dever de “imparcialidade”. E criticou os autarcas que mandaram passar vídeos promocionais nos centros de vacinação contra a covid-19, como se meteu na guerra de cartazes entre Medina e Moedas, como se o povo não soubesse ler…

É óbvio, do meu ponto de vista, que a gestão das autarquias não pode ser diminuída em ano eleitoral. Todas as iniciativas autárquicas de projeto têm consequências que transbordam o horizonte temporal do mandato. Só quem não conhece um mapa orçamental é que o não sabe. Por isso, toda a gestão é de uma certa continuidade, que pode ser revista e alterada, que não anulada (a não ser em casos excecionais e com a devida fundamentação), se os novos dirigentes preferirem e puderem imprimir outra orientação.

A pensarmos como a CNE, as autarquias não deviam intervir em campanhas nacionais de incidência local, por exemplo, a vacinação contra a covid-19. É certo que o bom exercício favorece quem está no poder. Mas será justo encerrar as autarquias para eleições?

Não, senhores da CNE. Não, senhor Presidente da República, Excelência. O povo não se confunde com alegadas “interferências eleitorais e mesmo danos reputacionais para autarquias e autarcas”. Em termos autárquicos, sabe bem o que a casa gasta e escolhe soberanamente. Assim fosse noutros atos eleitorais!

Também parece abusivo o desejo do Presidente de remeter a discussão parlamentar do diploma ora vetado para depois das eleições. Artificioso e desnecessário condicionamento parlamentar! Aliás, não é a primeira vez que a AR legisla ad hominem (sem veto), como já produziu leis amnistiantes, mesmo sem ser em contexto de amnistia, pois quem pode o mais pode o menos.

2021.08.26 – Louro de Carvalho

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