terça-feira, 10 de agosto de 2021

“Em dia de São Lourenço vai à vinha e enche o lenço”

 

 

O ditado popular marca a evolução do amadurecimento da vinha depois de ficar assente que “Pelo São Tiago pinta o bago”.

Sabendo que o povo sábio nem sempre alia os festejos e as memórias litúrgicas aos mistérios que os santos interiorizaram e por que deram a vida seguindo a Cristo seu Mestre e Senhor, talvez seja oportuno começar por lembrar paucis verbis quem foi São Lourenço.

O cargo de diácono era de grande responsabilidade por consistir no cuidado dos bens da Igreja e na distribuição de esmolas aos pobres, considerados o seu tesouro nos termos do que reza o salmista: “Os pobres comerão e ficarão saciados; e louvarão o Senhor os que O procuram(Sl 22,27), segmento que faz parte da oração cujo início se ouviu da boca de Jesus crucificado antes de expirar e que sintetiza o escopo da missão messiânica no sentido do seu mistério e grandeza.  

No ano 257, o imperador romano Valeriano decretou  a perseguição aos cristãos e, ao ano seguinte (258), foi detido e decapitado o Papa São Sisto II. Segundo as tradições, quando o Papa se dirigia ao local da execução, o diácono Lourenço de Huesca (Hispânia) ia com ele e perguntava chorando: Aonde vais sem o teu diácono, meu pai?. E o Pontífice respondeu: Não penses que te abandono, meu filho, pois dentro de três dias me seguirás.

Após a execução do Papa, o imperador intimou a Igreja a entregar as suas riquezas no prazo de 3 dias. Cumprido esse prazo, Lourenço, que fora poupado a princípio com o fito da obtenção de informações sobre os bens da comunidade, levou as pessoas que foram auxiliadas pela Igreja – pobres, órfãos e viúvas – e os fiéis cristãos ante o imperador. Depois, exclamou a frase que lhe valeu a morte: Estes são o património da Igreja. O imperador, furioso e indignado, mandou-o prender e queimar vivo sobre um braseiro ardente, por cima duma grelha. E diz a tradição que o santo conservou o bom humor enquanto era executado, dizendo aos que o queimavam: Podeis virar-me agora, pois este lado já está bem assado.

Morto in odium fidei, tornou-se mártir cristão depois de ter sido um fiel seguidor de Cristo e um inabalável servo da Igreja.

Santo Agostinho considera que o grande desejo de Lourenço de se unir a Cristo fez com que esquecesse as exigências da tortura e que Deus operou muitos milagres em Roma por sua intercessão, tendo sido, desde o século IV, um dos mártires mais venerados. O seu nome é mencionado no Cânone Romano (Oração Eucarística I) da missa. Foi sepultado no cemitério de Ciriaca, em Agro Verão, sobre a Via Tiburtina. A sua memória litúrgica e celebrada a 10 de agosto. Constantino ergueu a primeira capela no local que ocupa atualmente a Basílica de São Lourenço Extramuros, a quinta basílica patriarcal de Roma. Geralmente, as estátuas dele apresentam uma grelha, instrumento que lhe causou a morte, e uma Bíblia nas mãos.

Em todo o mundo cristão, existem muitas igrejas dedicadas a este santo. Na cidade do Porto, vê-se, perto da Sé, a Igreja e Colégio de São Lourenço, popularmente conhecida pela Igreja dos Grilos e o Seminário Maior, um conjunto de edifícios edificados pelos jesuítas em 1577 em estilo maneirista barroco-jesuítico, financiados por doações de fiéis, bem como de Frei Luís Álvaro de Távora, Comendador de Leça do Balio, da Ordem de Malta, cujo brasão de armas encima a fachada principal. Tudo isto sucedeu com forte oposição da Câmara e da população, não dirigida aos jesuítas, mas ao colégio que pretendiam instituir devido aos privilégios dos cidadãos portuenses que impediam a permanência de nobres e fidalgos dentro da cidade por mais de três dias. E o colégio a edificar iria chamar filhos de nobre e fidalgos que teriam obrigatoriamente de residir na cidade. Porém, através de algumas artimanhas dos seguidores de Santo Inácio de Loyola,  a oposição dos burgueses foi ultrapassada e o ambicionado colégio, com aulas gratuitas, conquistou rapidamente um notável êxito.

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Como mártir de Cristo, São Lourenço é o padroeiro dos diáconos. E, por ocasião da sua festa, celebrada a 10 de agosto, o céu, à noite, ilumina-se de rastos luminosos. O fenómeno ocorre por uma chuva de meteoritos, como refere Amedeo Lomonaco ao “Vatican News”.

Lourenço – o terceiro santo padroeiro da cidade de Roma depois dos apóstolos Pedro e Paulo – nasceu na Espanha na primeira metade do século III, por volta do ano 225. Foi diácono da Igreja de Roma numa época de perseguição aos cristãos e administrava os bens e as ofertas para suprir as necessidades dos pobres, órfãos e viúvas.

O seu martírio ocorreu 3 a 4 dias depois do Papa Sisto II e, de acordo com uma antiga “Paixão”, extraída dos escritos de Santo Ambrósio, foi queimado numa grelha de ferro. No “De Officiis” Ambrósio imagina um encontro no caminho do martírio, em que Lourenço faz algumas perguntas ao Papa Sisto II, aliás como foi referido supra de modo muito conciso:

Pai, para onde vais sem o teu filho? Para onde te apressas, santo bispo, sem o teu diácono? Jamais ofereceste o sacrifício sem o teu ministro. O que fiz para te desagradar, pai? Talvez me consideres indigno? Prova-me para que vejas se escolheste um ministro indigno para a distribuição do sangue do Senhor. Talvez recuses àquele que admitiste aos mistérios divinos ser teu companheiro no derramamento do sangue?”.

Porém, o testemunho de Lourenço galga o período histórico em que este diácono da Igreja de Roma viveu. Ao encontrar os diáconos permanentes da diocese de Roma a 19 de junho deste 2021, Francisco entrelaçou o exemplo de São Lourenço com os desafios atuais e exortou os seus diáconos a “inspirarem-se nas raízes da Igreja”, como então sublinhei.

O Santo Padre frisou que a diminuição do número de sacerdotes levou os diáconos a tarefas de substituição que, apesar de muito importantes, não constituem a especificidade do diaconado. E sustentou, com a doutrina do Vaticano II, que os diáconos são sobretudo ‘consagrados aos ofícios da caridade e da administração’, o que remonta ao início, “quando os diáconos se ocupavam, em nome e por conta do bispo, das necessidades dos fiéis, especialmente dos pobres e dos doentes”. E, recorrendo às raízes da Igreja de Roma, Francisco pensa em Lourenço e “na decisão de dar vida às diaconias”. Com efeito, na metrópole imperial foram organizados sete lugares, distintos das paróquias e distribuídos pelos municípios da cidade, nos quais os diáconos realizavam intenso trabalho em prol da comunidade cristã, em particular dos ‘últimos’, de modo que, no dizer dos Atos dos Apóstolos, nenhum entre eles fosse necessitado. Por isso, em Roma, recuperou-se essa tradição com a diaconia na igreja de Santo Estanislau.

A noite de São Lourenço é tradicionalmente associada, como vem indicado supra, com o fenómeno das estrelas cadentes, evocativo das brasas ardentes sobre as quais o santo foi martirizado. A Terra passa pela chuva de meteoritos Perseidas. E o poema “10 de agosto”, de Giovanni Pascoli, interpreta a “chuva” de estrelas cadentes como um rio de lágrimas celestiais:

São Lourenço, eu sei porque cai e cintila

tanta estrela nesse espaço tranquilo,

 porque é um grande pranto o que resplandece

nesse côncavo céu.

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Em dia de São Lourenço, neste ano de 2021, faleceu no Vaticano, aos 94 anos, o cardeal espanhol Eduardo Martínez Somalo, prefeito emérito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada  e as Sociedades de Vida Apostólica e que desempenhou durante a Sé Vacante de 2005 a função de Camerlengo e desde jovem sacerdote ocupou papéis-chave na Santa Sé.

“Grande dignidade” e “solene sobriedade” são atributos da fotografia de qualidades do purpurado tirada por um Papa. Com efeito, quando. pouco antes de 31 de março de 2007, dia do seu 80.º aniversário natalício, Somalo – então cardeal camerlengo da Santa Igreja Romana – escreveu a Bento XVI a comunicar a renúncia ao cargo por limite de idade, o Papa respondeu-lhe com uma carta que revelava no conteúdo uma grande estima.

O Pontífice emérito inclui naquelas linhas, com data de 4 de abril, uma série de substantivos e adjetivos – “diligência”, “competência”, “amor”, despendidos a serviço da Santa Sé – e destaca as atitudes de solene sobriedade e dignidade demonstradas pelo camerlengo quando, por morte de São João Paulo II, se torna a mais alta autoridade pro tempore da Igreja, confirmando a carta o “sincero apreço” pelo sacerdote e pelo bispo que permaneceu “intimamente ligado” à missão na Sé Apostólica.

A história do cardeal Martinez Somalo, que faleceu aos 94 anos, no Vaticano, onde residia, é um contínuo vaivém de e para Roma, desde o início do seu ministério, quando antes da ordenação sacerdotal foi enviado da Espanha (é natural de Baños de Río Tobía, Província de La Rioja) para aperfeiçoar os estudos no Pontifício Colégio Espanhol e na Pontifícia Universidade Gregoriana, onde se formou em Teologia e Direito Canónico.

Em Roma, foi ordenado sacerdote em 1950, retornando então à sua diocese natal de Calahorra y La Calzada-Logroño. Mais tarde, retorna a Roma para frequentar os cursos da Pontifícia Academia Eclesiástica, a escola dos futuros diplomatas de a Santa Sé. Em agosto de 1956, entrou para a Secretaria de Estado, onde se tornou responsável pela seção espanhola, razão pela qual, em agosto de 1968, esteve ao lado de Paulo VI na peregrinação apostólica à Colômbia para o 39.º Congresso Eucarístico internacional. E passou 14 anos no Vaticano. Depois, em abril de 1970, foi nomeado conselheiro da Delegação Apostólica na Grã-Bretanha.

Passados 6 meses, em outubro, a Secretaria de Estado quer que volte às suas fileiras com o encargo de assessor e, depois, colaborador direto do substituto, o Arcebispo Giovanni Benelli.

Passa mais 5 anos de serviço à sombra da Basílica de São Pedro – em que Somalo sempre encontra forma de se dividir entre os diversos escritórios do Vaticano, onde muitos apreciam o seu sentido de humor e a sua proximidade com as pessoas, especialmente com o mundo do sofrimento – até que, a 12 de novembro de 1975, deixa Roma. Paulo VI nomeia-o Arcebispo e envia-o como núncio apostólico à Colômbia, mas, 4 anos depois, a Santa Sé chama-o de volta.

Desta vez foi João Paulo II, em maio de 1979, o nomeou substituto da Secretaria de Estado, cargo que ocupou até 1988, ano em que o Papa Wojtyla o fez cardeal e o nomeou prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, cargo que exerceu até 1992, quando passou a dedicar-se à condução da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, da qual tornou-se prefeito emérito em 2004.

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Também este 10 de agosto fica ensombrado pelos fumos do assassinato dum sacerdote ou encandeado pela glória de mais um martírio.

O Padre Olivier Maire, Superior Provincial da Congregação dos Missionários Montfortinos, em França, foi morto ontem, 9 de agosto na região da Vendée por um refugiado ruandês na França, com transtornos psiquiátricos e em liberdade condicional, que há um ano ateara fogo à Catedral de Nantes e que agora fora acolhido pelo Padre Olivier. O sacerdote não hesitou em acolher Emmanuel Abayisenga, libertado sob controlo judiciário no início de junho. O corpo do clérigo foi encontrado sem vida em Saint-Laurent-sur-Sèvre, na região oeste de Vendée. Após o assassinato, o jovem foi à gendarmaria de Mortagne-sur-Sèvre e confessou o crime.

Cinco anos se passaram desde o brutal assassinato do padre Jacques Hamel, morto em Rouen, enquanto celebrava Missa, por dois extremistas que haviam jurado lealdade ao Estado Islâmico. No caso do Padre Maire, os investigadores excluíram qualquer motivação terrorista. 

A Igreja francesa volta a ser abalada por um episódio de violência. Proximidade e solidariedade com todos os católicos da França também foram expressas pelo Presidente, Emmanuel Macron, e pelo Primeiro-Ministro, Jean Castex, profundamente consternados com o ocorrido.

Depois do assassinato do Padre Olivier, a Conferência Episcopal Francesa e a Conferência dos Religiosos da França expressam a sua imensa tristeza.

Os prelados franceses asseguram as suas orações à família e aos missionários montfortinos. O bispo de Rouen, Dominique Lebrun, recorda as primeiras e últimas palavras da oração que Jesus nos ensinou: “Pai nosso” e “livrai-nos do mal”. Todos os dias, frisa o prelado, o cristão recita esta oração e encontra esperança na fraternidade que Deus deseja para todos os homens. Com todos os homens de boa vontade, “quer lutar contra toda a violência ao seu redor e dentro dele” através das armas da “justiça, paz e perdão”. “Domingo, 15 de agosto – acrescenta Dom Lebrun – rezaremos intensamente à Virgem Maria pela França, com o coração na região da Vendée”.

O bispo da Diocese de Luçon, Dom François Jacolin, recorda do Padre Maire:

Foi um homem que dedicou a sua vida ao serviço de Deus, ao serviço de todos. A sua morte é uma tragédia, mas ao mesmo tempo, na fé, tem um sentido. O próprio Cristo: se a semente não morre, permanece só, mas se morre dá muito fruto. Este é o pensamento que me ocorre quando me lembro da vida do padre Olivier Maire, que se entregou aos outros.”.

Conhecido por sua abertura e profunda fé – lê-se no comunicado da Diocese de Luçon – “Padre Olivier Maire morreu vítima da sua generosidade, um mártir da caridade”. O Padre Olivier Maire, também licenciado em psicologia, foi um “biblista apaixonado pelos Padres da Igreja e pela patrística grega”. “Para ele, os escritos de São Luís Maria Grignion de Montfort, redigidos há 300 anos, conservam toda a sua atualidade para explicar e viver a fé”.

A nossa reação, enfatiza a irmã Véronique Margron, presidente da CORREF (Conferência dos Religiosos e Religiosas da França), em entrevista à redação francesa do “Vaticano News”, é de consternação ao pensar que “um homem de paz seja assassinado”. Os Montfort nós, lembra a religiosa, acolheram este homem que devia ter graves problemas psiquiátricos. Além da consternação, há “incompreensão e sensação de impotência”.

Veremos o que a investigação revelará e se concluirá que se tratou de ato de loucura. Após o incêndio da Catedral de Nantes, os especialistas que examinaram este homem não pensaram que pudesse realizar ações perigosas. Por enquanto, explica Irmã Véronique Margron, o que é necessário não só aos religiosos e religiosas, “é antes de tudo a recordação, a manifestação de dor e a partilha desta dor com os irmãos que viveram com o Padre Maire, com os seus pais e parentes, com toda a família montfortina”. A seguir, virá o resultado da investigação.

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Enfim, encher o lenço de diaconia ou serviço, acolhimento, fidelidade, martírio!

2021.08.10 – Louro de Carvalho

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