terça-feira, 31 de agosto de 2021

Período eleitoral não deve servir de motivo para férias do país

 

 

Nos termos da Constituição, as eleições servem obviamente para que os eleitores escolham os seus representantes nos diversos órgãos colegiais do poder político eletivo – Assembleia da República, Parlamento Europeu, assembleias municipais, assembleias de freguesia, câmaras municipais –, Presidente da República, presidente da câmara municipal e presidente da junta de freguesia.

Indiretamente, quando se elegem os deputados à Assembleia da República, elege-se o Chefe do Governo, que será aquele líder partidário que obtiver condições políticas para formar um executivo nos termos constitucionais ou porque é o líder o partido mais votado ou porque negociou um apoio parlamentar maioritário. E, quando se elege a assembleia de freguesia, também se elegem indiretamente os vogais da junta, normalmente propostos pelo presidente.    

Todavia, parece que, muitas vezes, além disso, as candidaturas e a própria CNE (Comissão Nacional de Eleições) pretendem que o país entre de férias por motivo de eleições.

Cabe, naturalmente, às candidaturas zelar pela sua boa saúde eleitoral e escrutinar as deficiências das candidaturas concorrentes que possam impedir o normal fluxo da corrida eleitoral, quer em termos de substância, quer em termos formais e de oportunidade. No entanto, é aos tribunais, eventualmente com recurso para o Tribunal Constitucional, que incumbe ajuizar da justeza das razões dos impugnantes, devendo a CNE prestar os devidos esclarecimentos com base na lei entendível de forma restrita quando se trata de limitações e restrições.

Entretanto, o Presidente da República vetou um diploma do Parlamento, além de outras razões não de substância, por ter sido apresentado para promulgação já depois de publicado o decreto que marcou as eleições autárquicas para 26 de setembro, não fosse a sua aplicação criar desnecessário ruído eleitoral.

Alguns tribunais, escudados na posição interpretativa da CNPD (Comissão Nacional de Proteção de Dados) em relação à lei eleitoral e ao novo RGPD (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados), fizeram publicar as listas de candidatos com o código postal da morada de cada um, omitindo o nome da rua ou equivalente e o n.º de porta, quando os candidatos a cargos políticos sabem que os dados de identificação pessoal são de interesse público.

A CNE tem-se intrometido no conteúdo de cartazes pela sua alegada similitude, tem feito reparo em relação à promoção de orçamentos participativos em ano de eleições por alegadamente favorecerem os atuais autarcas-presidentes, a passagem de vídeos promocionais em centros de vacinação, os avisos e placards de obras públicas e serviços que os municípios protagonizam ou em que participam, bem como a publicitação de propaganda nas redes sociais – por alegadamente servirem de favorecimento aos atuais autarcas-presidentes e suas equipas ou por serem divulgados em meios de publicidade comercial.

Ora bem, se formos a isso, não se deviam abrir, em ano de eleições, escolas, piscinas, praias fluviais, parques infantis, lares de idosos, complexos desportivos e outros equipamentos de utilização coletiva em que o Estado ou os municípios liderem ou participem. No entanto, em ano de eleições anda tudo em polvorosa no que respeita a obras, programas e apoios…

Enfim, segundo alguns, em ano de eleições, o país encerrava para balanço e, sobretudo, após a publicação do decreto de marcação de eleições, punham-se editais a declarar “encerrado o país para eleições”, pois, em todo o ano, mas em especial neste período, a atividade da administração pública pode prejudicar a corrida eleitoral e condicionar os resultados.

Se esta práxis interpretativa da CNE fosse corrente em 1993, eu e a minha equipa teríamos infringido a lei ao pôr em funcionamento uma escola profissional em que o município era parceiro relevante. Em alternativa, os estudantes deveriam esperar que a pandemia eleitoral passasse.

Os zelosos intérpretes da lei esquecem que o art.º 72.º da Lei Eleitoral para a Assembleia da República, que estabelecia que “a partir da publicação do decreto que marque a data das eleições é proibida a propaganda política feita direta ou indiretamente através dos meios de publicidade comercial”, foi revogado pela alínea d) do artigo 14.º da Lei n.º 72-A/2015, de 23 de julho. De igual modo, pela alínea e) do artigo 14.º da Lei n.º 72-A/2015, de 23 de julho, foi revogado o art.º 46.º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais que estabelecia: “a partir da publicação do decreto que marque a data da eleição é proibida a propaganda política feita direta ou indiretamente através dos meios de publicidade comercial(n.º 1); e “são permitidos os anúncios publicitários, como tal identificados, em publicações periódicas, desde que não ultrapassem um quarto de página e se limitem a utilizar a denominação, símbolo e sigla do partido, coligação ou grupo de cidadãos e as informações referentes à realização anunciada(n.º 2).

Entretanto, o art.º 10.º da Lei n.º 72-A/2015, de 23 de julho, estabelece, no seu n.º 1 que “a partir da publicação do decreto que marque a data da eleição ou do referendo é proibida a propaganda política feita direta ou indiretamente através dos meios de publicidade comercial”. E o seu n.º 4 estipula que, nesse período, “é proibida a publicidade institucional por parte dos órgãos do Estado e da Administração Pública de atos, programas, obras ou serviços, salvo em caso de grave e urgente necessidade pública”.

Porém, o seu art.º 13.º estabelece que “a presente lei deve ser objeto de revisão no prazo de um ano após a sua entrada em vigor”, o que não aconteceu.

Quatro questões se levantam: É lícita uma certa propaganda política e não a publicidade institucional por parte dos órgãos do Estado e da Administração Pública de atos, programas, obras ou serviços, como se esta não fosse mais importante? São meios de publicidade comercial painéis com avisos, indicação de obras e serviços, vídeos promocionais e sites da internet, não havendo jugar a pagamento, para isso, a empresa especializada? Não deveriam ser contemplados nas exceções do n.º 4 obras em curso, programas em desenvolvimento, serviços públicos de apoio às populações? Se a matéria é tão relevante, a lei não deveria ter sido revista no prazo nela previsto? Mais prejudicial que tudo isto é a continuação da publicação de sondagens durante o período estrito da campanha eleitoral, que de proibida passou a ser lícita.   

Porém, a legislação eleitoral não é única em termos do absurdo prático. A própria Constituição prevê, “hipocritamente”, horizontes temporais em que há governos de gestão, designadamente entre a nomeação do Governo e a apreciação do seu programa pela Assembleia da República ou entre a demissão do Governo (por dissolução do Parlamento, rejeição do programa do Governo, não aprovação de uma moção de confiança, aprovação de uma moção de censura, aceitação do pedido de demissão do Primeiro-Ministro pelo Presidente da República ou exoneração do Primeiro-Ministro pelo Presidente da República quando “tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas”) e a posse do novo Governo.

Nestes casos, o Governo “limitar-se-á à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”. Ora, um governo é para governar, o que significa fazer tudo o que é necessário fazer. E nós bem sabemos como em governos de gestão se têm praticado atos que ultrapassam a mera gestão. Sabemos como os governos provisórios tomaram decisões que, à partida, não estariam na esfera das suas competências. Por exemplo, o Governo Provisório da 1.ª República produziu leis importantes como a Lei da Separação do Estado das Igrejas e o Código do Registo Civil de 1911 (que estabeleceu o princípio da obrigatoriedade da inscrição no registo civil dos factos a ele sujeitos). Foi o Governo Provisório saído da revolução abrilina que produziu as leis das nacionalizações, a lei das manifestações, a lei do recenseamento eleitoral, a lei das manifestações ainda em vigor, a lei de imprensa, que vigorou durante muito tempo, e decidiu a descolonização… Foi um Governo de Gestão (de iniciativa presidencial), que tinha como encargo principal a preparação de eleições, que tomou inúmeras decisões políticas irreversíveis, como a gratuitidade dos transportes escolares para o ensino obrigatório, a valorização profissional na função pública, a identificação fiscal das pessoas singulares e das pessoas coletivas, a valorização da área social…   

De verdade, um Governo é para governar e as autarquias são para servir as populações. Governo e autarquias nunca podem estar em situação de capitis diminutio. Se cometerem erros e abusos, os eleitores que julguem em devido tempo; e, se incorrerem em contraordenação ou em ilícito criminal, as entidades fiscalizadoras e os tribunais que atuem. Porém, as negociatas, as influências existem, mas passam despercebidas e ninguém atua. Só se implica com incidentes pré-eleitorais.

É certo que todas as candidaturas devem ter o mesmo tratamento, mas quem está em exercício tem vantagem naturalmente. O próprio Presidente da República disse em campanha eleitoral que não usou tempos de antena, porque, a fazê-lo, iria selecionar os melhores momentos do desempenho presidencial, o que o colocaria em vantagem em relação aos outros candidatos. Mas isso é o que os governos fazem em vésperas de eleições legislativas e o que os autarcas fazem em vésperas de eleições autárquicas. E utilizam-se meios e funcionários do Estado para isso. Só não vê quem não quer.

Cerceiem-se os abusos, mas o país não pode encerrar para férias, para balanço ou para eleições.

2021.08.31 – Louro de Carvalho

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