quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Do crescimento do emprego público dito sem estratégia

 

 

Tem o colunista do ECO online Ricardo Arroja um artigo de opinião subordinado ao título “O emprego público cresce, mas sem estratégia” a denunciar o aumento notório dos funcionários públicos “sem que se consiga perceber a relação custo-benefício”, do que resulta ficarmos “submetidos ao cálculo eleitoral do PS”.

Na verdade, já nos esquecemos que o Governo que acompanhou a troika emagreceu até ao tutano a administração pública pelo aumento de horas semanais de trabalho, pelas aposentações antecipadas, apesar de os requerentes verem diminuídos os benefícios, e pelo programa de rescisões por mútuo acordo. E não chegou aos despedimentos porque o Tribunal Constitucional o impediu pela declaração de inconstitucionalidade da respetiva norma. Também aqui não se vislumbrava estratégia que não fosse a da “inevitabilidade” e, talvez, a da progressiva entrega a entidades privadas da gestão dos serviços que não fossem estritamente de soberania. Não houve propriamente uma estratégia de renovação dos quadros de pessoal na administração pública.

É verdade que a empregabilidade no Estado, que está em forte crescimento, superou em junho passado o nível registado em 2011. Mas também acontece que, nos anos da troika, e o colunista não o refere, os contratos a termo e os contratos a termo nas autarquias locais (freguesias, municípios, áreas metropolitanas e comunidades interministeriais e empresas municipais e intermunicipais), segundo o JN, aumentou e estabilizou, passando a diminuir entre 2015 e 2017, como entre 2018 e 2021, sendo 2017 e 2021, anos de eleições autárquicas os momentos privilegiados para a contratação de pessoal nas autarquias, pelo que a falta de estratégia é comum aos partidos que têm algum poder. Entretanto, ironicamente, entre 2011 e 2013, chegavam às assembleias municipais diretivas para redução das estruturas e quadros de pessoal nas autarquias!

É óbvio que, à direita, a linha estratégica é a do emagrecimento do Estado, com o alegado robustecimento do que restaria, e o favor ao setor privado, linha que não tem sido concretizada de forma coerente e consequente, tanto assim é que, ao primeiro embate, se clama pela ajuda do Estado; e, à esquerda, a linha estratégica é a do crescimento do Estado com a subalternização do setor privado e a esmola aos setores ditos “social e solidário”, por estes chegarem aonde o Estado, impedido pelo seu peso burocrático, não consegue chegar. Mas também esta linha não é concretizada de forma coerente e consequente. Bem se vê como há colégios privados entregues a “militantes” do PS, tal como de outros partidos, que se abeiram das benesses estatais; o Governo quer a municipalização da educação, quiçá da saúde, sabendo que daí resultará a privatização pela via da contratação de empresas prestadoras de serviços, que depressa surgirão como cogumelos no pinhal; e, a creditar no “Tal & Qual”, desta semana, dirigentes do PCP sediam abundantemente empresas suas mesmo ao lado da sede nacional.

Dizem os privados que o Estado não sabe gerir e, com os dinheiros públicos, locupleta os dirigentes, os familiares e os amigos. Não estou em condições de o negar. Não obstante, devo dizer que se vê bom atendimento, simpatia e eficácia – e mesmo boa gestão – em muitos serviços públicos. Quanto aos privados, é de referir que, salvo honrosas exceções, a boa gestão reside na poupança, na contratação de quem está disponível para receber menos e trabalhar mais, na obtenção de lucro, multiplicando atos, episódios, instrumentos e adereços apresentados como necessários, que o cliente individual, o subsistema ou o Estado pagarão. E até nem custa armarem-se em bons samaritanos criando uma fundação de benemerência ou de mecenato: ficam aliviados na carga fiscal e nós batemos palmas.

O Estado não tem estratégia; os privados têm a estratégia do lucro.     

Diz o mencionado colunista que a trajetória que denuncia não surpreende, pois “a aposta no emprego público constitui imagem de marca do PS, encontrando-se espelhada no Programa de Estabilidade 2021-2025” (PE 2021-2025), onde se afirma que, “entre 2018 e 2020, se registou um substancial crescimento da massa salarial no valor de 2.358 milhões de euros, correspondendo a uma variação acumulada de 11%”, aumentando também a proporção das despesas com pessoal no PIB em 0,8%. E o PE 2021-2025 prevê, “nos anos 2022 a 2025, um crescimento das despesas com pessoal muito significativo, em torno de 3%, indo ao encontro do inscrito no Programa do Governo”. E, observando que “não será por acaso”, coloca a hipótese de estarem em causa 731 mil votos.

Quem ouviu o Presidente da República a apontar o dedo a uma administração pública exausta em termos de trabalhadores e encarecendo a necessidade do seu robustecimento, sobretudo em relação a técnicos superiores para otimização da execução do PRR e quem acompanhou a entrevista de Alexandra Leitão perguntar-se-á se não há aqui uma estratégia que não apenas a da colheita de votos nas urnas, até porque o voto é secreto. E, se num universo eleitoral reduzido, é possível o seu controlo por aproximação, num universo alargado isso é quase improvável.

Os dados da DGAEP (Direção-Geral da Administração e Emprego Público) mostram que o saldo de entradas menos saídas nas administrações públicas tem sido positivo desde 2015, tendência que se reforça à medida que o Governo olvida as regras impostas no tempo da troika, a fim de travar a despesa pública com pessoal. Pelas contas do Governo, do acréscimo total de despesas com pessoal, entre 2021 e 2025, mais de 60% serão resultado de contratações e outras variações remuneratórias; e as progressões e promoções representarão cerca de 1/4 do acréscimo previsto.

É certo que valorizar e requalificar são argumentos simpáticos, mas são genéricos e ocos, pois os números aventados e os valores percentuais não nos dizem que “a carreira na função pública que mais cresceu em número de empregados em junho foi a dos assistentes operacionais”, a menos qualificada e mais mal paga. Por outro lado, mercê da pandemia, muitos professores e outros técnicos superiores foram contratados para substituição das inúmeras baixas médicas, pois a covid-19, real ou suspeita, obrigou tantos a afastar-se da prestação de trabalho.

O colunista entende que “o desafio estrutural da administração pública está na incorporação da digitalização na provisão dos serviços públicos”. É óbvio que a digitalização é importante e necessária, mas não resolve tudo. E a pandemia ensina que não basta dispormos de meios e instrumentos, mas que é preciso saber lidar com eles; e que a máquina facilita e resolve muitas situações, mas se falta ou falha o fator humano, é impossível a convivência e a garantia do trabalho eficaz. Mesmo a telemedicina não significa, como pensam, teleconsulta.

Deus nos livre que o Estado se lembre de generalizar o que já faz com a Caixa Geral de Depósitos, que é exatamente o que fazem os outros bancos e as outras empresas: reestruturar. E reestruturar significa apenas dispensar pessoal, ainda que seja necessário admitir mais, mas com menor custo, encerrar serviços e aumentar despesas para utentes/clientes.

O mencionado colunista fala do caso dos médicos de família. Na verdade, aposentações, férias, transferência para outros serviços (privados ou públicos), procura de outras especialidades levam a que haja em Portugal cerca de um milhão de pessoas sem médico de família. E, se os concursos são insuficientes e as remunerações são magras, há que resolver o problema pela forma mais adequada. Enfim, vontade política, abrir os cordões à bolsa e, depois, responsabilizar. Médico de família cuja consulta é quase inacessível para que serve? Consultas por telefone, quando até há pouco se indispunham porque não prescreviam nem opinavam sem verem o doente? Médico de família que tem horário de trabalho em estabelecimento público, mas que, se não está, o utente fica desamparado porque as consultas não programadas não chegam para as encomendas!

***

Só para vermos como as reestruturações troikanas resultam, veja-se como Alberto Teixeira descreve no ECO online o que se passa com banqueiros.

O setor está em profunda reestruturação, acelerada pela pandemia, de que resulta uma onda de despedimentos em massa. Porém, continua como uma indústria que pratica bons salários. E os dados revelados, no dia 18, pela EBA (Autoridade Bancária Europeia) reforçam a ideia: “quase 5.000 trabalhadores de bancos europeus receberam mais de um milhão de euros em 2019”.

Para chegar a estes números, a EBA contabiliza vários elementos da remuneração, além da componente fixa: bónus, prémios de longo prazo, contribuições para a pensão e indemnizações.

Segundo mesmo relatório, havia em Portugal 13 banqueiros ou profissionais a trabalhar para a banca que auferiram remunerações acima do milhão de euros naquele ano – em média, cada um recebeu 1,5 milhões de euros. No ano anterior eram 15, acima dos 8 em 2017.

A EBA detalha que quatro tinham funções de gestão no banco, outros dois de supervisãodois trabalhavam na banca de investimentoquatro na banca de retalho, sobrando um trabalhador que estava classificado como tendo “outra” função. E esclarece que, para Portugal, “5 destes 13 indivíduos foram reportados como tendo rendimentos elevados devido aos montantes de indemnizações que foram pagas em 2019”.

O Reino Unido  lidera a lista: mais de 70% dos trabalhadores da banca com rendimentos mais elevados trabalhavam em solo britânico. Eram 3.519 trabalhadores em 2019, o que representa uma descida ligeira de 95 trabalhadores em relação a 2018. A Alemanha (492, mais 9,3%)França (270, mais 15,4%)Itália (241, mais 17%) aumentaram o número de banqueiros com remunerações anuais acima do milhão de euros.

A EBA justifica estas evoluções com o impacto da transferência de pessoal do Reino Unido para a UE a 27 como parte dos preparativos do Brexit, com os bons resultados financeiros globais em alguns bancos e com a reestruturação e consolidação de bancos em curso, o que conduziu a indemnizações por rescisões superiores ao normal.

Com 13 banqueiros a receberem mais de um milhão, Portugal situa-se no 13.º lugar do ranking europeu, imediatamente à frente da Noruega (12)Polónia (9) e atrás da Bélgica (17)Luxemburgo (22). Lindo, não é?! Se houver crise o povo está pronto a pagar…

***

Quanto ao emprego público, haja a robustez necessária e suficiente para a eficácia no cumprimento das missões e funções, sem delapidação em favor de dirigentes e seus compadres, na certeza de que se os médicos, enfermeiros, professores e trabalhadores da segurança social trabalham maioritariamente na administração pública, esta não poderá emagrecer. Enfim, o Estado deve dar o exemplo o trabalho digno para todos.

2021.08.18 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário