quarta-feira, 11 de agosto de 2021

A educação escolar contemporânea precisa de ser repensada

 

Já quase estávamos esquecidos do diferendo que surgiu nalguma opinião pública publicada em relação ao novo programa de Matemática no ensino básico em que se põe em causa o produto do respetivo grupo de trabalho criado pelo Ministério da Educação (ME) e os contributos recolhidos em consulta pública. E as parangonas dos jornais destacavam que a célebre fórmula resolvente, a que permite resolver equações do 2.º grau a uma incógnita, passa a ser lecionada só no 10.º ano, o que fazia crer que iria cair o Carmo e a Trindade, tal como se criticava a mudança de programa com a mudança de Ministro.

Percebo a posição da SPM (Sociedade Portuguesa de Matemática), que até andou a fazer testes nas escolas (não sei com que autoridade), alternativos aos exames nacionais (aliás, provas finais) do 4.º e 6.º ano, que o Governo de Costa aboliu, e do 9.º ano, que o mesmo Governo suspendeu por força da pandemia. Com efeito, o seu escopo é a defesa e incremento da componente académica do currículo, devendo o saber acumulado ser inoculado em doses cavalares independentemente do tempo disponível e da capacidade do putativo recetor, que a sociedade poderá selecionar.

Todavia, percebo melhor a postura da APM (Associação de Professores de Matemática) cujo escopo é a educação pela Matemática. Ou seja, os professores de Matemática – do ensino básico ao superior – também se preocupam com o currículo académico, mas privilegiam o equilíbrio possível e desejável entre o saber académico e o tempo disponível, bem como as capacidades dos alunos e o contexto social em que se insere a escola. Por isso, recusando a padronização, insistem na sólida formação inicial dos professores e na atempada e adequada formação contínua e entendem que a aprendizagem se processa paulatinamente, ciclicamente, em crescendo e, predominantemente, pelo método da descoberta.

Provavelmente o ensino básico dispõe de tempo demasiado longo e o ensino secundário de tempo demasiado curto (6 anos letivos para cada um seria mais equilibrado). E agora que a escolaridade universal e obrigatória é de 12 anos, porque não se faz o ajustamento? Por outro lado, com o ensino superior com a duração de 3 anos na maior parte das licenciaturas, nem dá para conhecer os cantos à respetiva instituição de ensino. E os mestrados integrados acabam por surtir numa ginástica pedagógico-administrativa para suprir a insuficiência do tempo da licenciatura.

Que há a tendência para os programas se perpetuarem para lá das mudanças é tão verdade como a tentação de mudar logo que haja novo Ministro. Porém, não se criticou Passos Coelho pela substituição dos programas de Matemática e de Português do ensino básico na governança anterior – crítica que agora se faz a Brandão Rodrigues!

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Porém, o problema é mais fundo e amplo. É preciso pensar a educação no seu todo, como sustenta Pedro Patacho, professor universitário, doutorado em Educação pela Universidade da Corunha, Espanha, vereador da Educação na Câmara Municipal de Oeiras, que escreveu o livro “Pensar a Educação”, pois, em sua ótica, “a educação escolar está sufocada por enunciados românticos e complacentes”, como confessa em entrevista a Sara oliveira, acabada de publicar no “educare.pt”, neste dia 11 de agosto. E levanta várias questões, sendo a mais pertinente: “Como podem os professores liderar a metamorfose da escola?” Com efeito, a diversidade social e cultural traz novos e constantes desafios, o que leva à necessidade de repensar a educação escolar contemporânea, pois continua a fazer escola a tradição de transformar crianças em alunos e alunos em “orelhas”, que debitam informação em instrumentos de avaliação padronizados. Assim, urge que os professores conquistem mais autonomia escolar e profissional e recorram à participação como ferramenta essencial. E Patacho garante que “a escola não se transformará enquanto se mantiver fechada sobre si própria e submersa nas culturas escolares seculares que moldam a sua vida organizacional e as vidas profissionais dos professores”.

Sobre que projeto político é este a que chamamos escola, o autor do livro recua ao passado para analisar o presente e pensar no futuro, advertindo que há pontos relevantes a debater neste rumo umbilicalmente ligado ao desenvolvimento do país. A seu ver, tomar decisões sobre a educação escolar implica disponibilidade para construir compromissos estáveis e duradouros de política educativa, não se podendo “aceitar que os alunos mais desfavorecidos continuem a ter mais insucesso e dificuldades em construir uma experiência escolar positiva, sendo assim duplamente penalizados”, como não se podem “aceitar aprendizagens essenciais decalcadas de programas curriculares” muitos deles com largas dezenas de anos, sem profundo trabalho de reflexão sobre os conteúdos culturais mais pertinentes para o trabalho escolar na atualidade.

Pressupondo que a educação é um projeto político, coletivo, portador duma visão da sociedade e dum modelo de pessoa educada, reporta-se à grande reforma da educação escolar de 1989, num processo iniciado em 1986, para concluir que muita coisa precisa de ser repensada. A razão é que, em 2021, o mundo é muito diferente do de 1989:

Não havia Internet, as tecnologias de informação e comunicação davam os primeiros passos, não havia telemóveis, não havia televisão por cabo nem plataformas de conteúdos; o acesso à informação e ao conhecimento era completamente diferente; vivíamos a outro ritmo, tínhamos outras preocupações e centros de interesse; e as vivências das famílias e das crianças eram completamente diferentes”.

Como mudaram as famílias, a cultura, a economia e o mundo do trabalho, precisamos de parar para pensar na educação escolar de que precisamos para encarar os desafios do presente, mas sobretudo os que emergem no horizonte e cujos contornos já percebemos.

Confrontado com as ideias de escola como elevador social, sendo que nenhum aluno pode ficar para trás, de combate ao insucesso e abandono escolares e dum perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória, reage com a asserção de que “a educação escolar está sufocada por enunciados românticos e complacentes, um senso comum de certezas absolutas que ilude uma constatação que todos já perceberam: Não há vitórias fáceis”. E, como se trata de projeto político coletivo e de bem público, decidir nesta matéria postula disponibilidade para construir compromissos estáveis de política educativa devendo todos os implicados ceder nas suas posições de princípio. Não obstante, é de registar que uma reforma estrutural requer escolhas ideológicas, desafios burocráticos e administrativos, planeamento de médio-longo prazo, mas nós temos feito uma gestão casuística em função do Governo da ocasião. Assim, a educação nunca será prioridade política. E não se pode aceitar que as escolas não estejam reabilitadas e requalificadas, como não se podem tolerar avanços, recuos e velocidade de tartaruga na modernização tecnológica da escola, quando que a Internet e as TIC se consolidaram como bases materiais da maior parte das ações quotidianas e da economia, ou que o país não tenha estratégia para a formação de professores e para o rejuvenescimento e valorização da classe, ou que se decalquem aprendizagens essenciais de programas curriculares sem profundo trabalho de reflexão sobre os conteúdos culturais mais pertinentes para o trabalho escolar na atualidade, ou que os alunos mais desfavorecidos tenham mais insucesso e dificuldades em construir experiência escolar positiva. Está em causa o desenvolvimento do país e a democracia.

Quanto à alegada resistência da escola à mudança, começa por lembrar que “a escola da modernidade, herdeira do industrialismo, consolidada nas sociedades ocidentais”, se baseia “em estandardizações de todos os tipos”, como a arquitetura escolar, a gestão curricular, as práticas de avaliação, etc. Observa que temos dificuldade em libertar-nos desse legado que fez das crianças alunos e destes “orelhas”, cuja principal função é ouvir e acumular informação e conhecimento para debitar em instrumentos de avaliação padronizados. Ora, “a escola não pode ser só isso”. No entanto, vê exemplos positivos e, até excelentes, de mudança paradigma, mas estão em franca minoria. A mudança de paradigma impõe que se repense a formação de professores de modo que saibam lidar com a diversidade, pois, quanto mais diversidade (ela aumentou imenso com a universalização do ensino e a extensão da escolaridade obrigatória), mais dificuldades e desafios para a escola que não está preparada para lidar adequadamente com a diferença. Porém, é na diversidade que reside o maior potencial de transformação da educação, quando definirmos políticas educativas e curriculares mais adequadas à diversidade.

A nível da desmotivação e exaustão dos professores e da burocratização do trabalho docente, frisa que são cada vez mais atribuídas mais tarefas às escolas e colocadas mais exigências sobre os professores, quando a sua preocupação dominante devia ser o trabalho com os seus alunos; que os professores estão envelhecidos (são quase 45% os professores com mais de 50 anos de idade) e não têm apoio de outros profissionais. Com efeito, dada a abundância de problemas psicológicos, sociais e económicos, as escolas devem estar dotadas de equipas pluridisciplinares, o que está longe de ser realidade. Por isso, entende que é injusto “responsabilizar os docentes por tudo em vez de criar uma nova atmosfera colaborativa que passe pela colocação nas escolas de outros técnicos”. Os professores que estão na escola precisam de apoio para operar o processo de metamorfose da organização e funcionamento da educação escolar, tal como urge uma nova estratégia para a formação dos novos professores.

Em sua ótica, o sistema de ensino, com base no que se aprende, com currículos definidos e metas de aprendizagem e exames nacionais, não está bem estruturado para as exigências de uma sociedade moderna e digital. Ora, tendo-se referido às aprendizagens essenciais, explicou:

Decidiu-se agora fazer cair todas as orientações curriculares e programas, mantendo-se apenas em vigor as aprendizagens essenciais, lidas articuladamente com o perfil do aluno e os normativos da educação inclusiva. São avanços positivos e sinais de esperança. Mas claramente insuficientes. Estruturalmente tudo se mantém na mesma. O império das disciplinas não é minimamente questionado, nem as práticas de avaliação.”.

E considera que, em 2021, na era da informação e conhecimento, encontrar resposta à questão sobre “que conteúdos culturais são os mais pertinentes e adequados para uma educação de qualidade que atenda a toda a diversidade” requer “trabalho complexo, profundo e amplamente participado que ainda não foi feito”.

No atinente à relação entre famílias (com pais mais escolarizados e mais exigentes) e professores para “uma educação capaz, robusta e democrática”, aponta que a investigação das últimas décadas, (quantitativa e qualitativa) e as várias meta-análises mostram que o envolvimento e a participação das famílias na vida escolar dos educandos, quer em casa, quer na escola, tem impacto positivo e duradouro na qualidade da experiência escolar e nos resultados académicos dos alunos e que os vários tipos de parcerias escolares com as famílias e a comunidade têm impacto nos resultados escolares e na qualidade do ambiente educativo. E, sendo certo que “todas as famílias, independentemente do seu nível de instrução, podem constituir-se aliados poderosos dos professores e profissionais escolares”, é verdade que, à medida que os níveis de escolarização das famílias se elevam, haverá cada vez mais pressão sobre as escolas e sobre os professores. Além disso, não pode ser desvalorizado o lado democrático, pois “a educação escolar é um bem público” e “as famílias e instituições da comunidade interessadas nas questões educativas têm o direito e o dever de participar”.

Ora, para que aconteça o debate público sobre o que ensinar, o que trabalhar na escola com os alunos, porquê e para quê, precisamos dum movimento de reforma análogo ao de 1986, “amplamente participado, gerador de um novo pacto social para a educação”, sendo de “convocar todas as partes interessadas para um processo aberto e construtivo de debate dessas matérias”, em que todos estejam disponíveis para “fazer cedências e construir compromissos”.

Sobre a solidez dos alicerces da Escola Pública, o investigador entende que “nunca como hoje foi tão importante reforçar a solidez desses alicerces, assentes nos valores da justiça social enquanto concretização democrática”, já que desapareceram das vivências das crianças e jovens, cujas existências estão hiper-reguladas, a rua e as relações de vizinhança. Assim, emerge a escola como “grande espaço público de encontro da diversidade, onde todos aprendem a respeitar-se, a cooperar e trabalhar juntos, a partilhar sonhos, ideais e projetos, de forma solidária e tolerante”, o que nunca foi tão importante como na atualidade.

E Patacho, enquanto sustenta que “os espaços públicos de escolarização são a melhor apólice de seguro do nosso modo de vida democrático e o maior instrumento para construir uma sociedade mais justa”, diz que “também nunca foram tão fortes como hoje as ameaças conservadoras e neoliberais a este modelo de escolarização”. Porém sublinha que “este é um debate que tem sido constantemente minado por preconceitos ideológicos, quer à esquerda, quer à direita, que apenas lançam confusão onde deveria reinar a serenidade”. E crê que “é possível promover a integração das redes pública e privada de ensino sem beliscar os valores da justiça social que estão na base do ideal público de escolarização”.

Considera que a pandemia não resolveu nada, só mostrou é que a educação escolar não dispensa a interação presencial profundamente humana em que os professores têm papel decisivo, mas trouxe para o espaço público o debate da educação escolar, não podendo nós perder o ensejo para criar uma plataforma de entendimento que permita construir um pacto social e político para um novo movimento de reforma estrutural da educação amplamente participado.

Por fim, quanto aos professores, diz que precisam, desde logo, de conquistar mais autonomia escolar e profissional, mas, sobretudo, de ter como recurso normal a participação, pois “a escola não mudará enquanto se mantiver fechada sobre si e submersa nas culturas escolares seculares que moldam a sua vida organizacional e as vidas profissionais dos professores”. E sustenta que participação de outros atores é a chave da mudança, mas essa participação tem de ser liderada pelos professores, que, ao fazê-lo, como líderes e organizadores de novos contextos escolares, retomarão o prestígio social e a autoridade profissional que tem vindo a esboroar-se.

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Para quando o debate e a ação tão necessários sobre esta momentosa matéria? Porque manter na escola o órgão de gestão estratégica composto maioritariamente por não professores? Porque não reconhecer a autonomia científica e pedagógica do professor?

2021.08.11 – Louro de Carvalho

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