Já
quase estávamos esquecidos do diferendo que surgiu nalguma opinião pública
publicada em relação ao novo programa de Matemática no ensino básico em que se
põe em causa o produto do respetivo grupo de trabalho criado pelo Ministério da
Educação (ME) e os contributos recolhidos em consulta pública.
E as parangonas dos jornais destacavam que a célebre fórmula resolvente, a que
permite resolver equações do 2.º grau a uma incógnita, passa a ser lecionada só
no 10.º ano, o que fazia crer que iria cair o Carmo e a Trindade, tal como se
criticava a mudança de programa com a mudança de Ministro.
Percebo
a posição da SPM (Sociedade
Portuguesa de Matemática), que até andou a fazer testes nas escolas (não sei com que autoridade), alternativos
aos exames nacionais (aliás,
provas finais) do 4.º e 6.º ano, que o Governo de Costa aboliu,
e do 9.º ano, que o mesmo Governo suspendeu por força da pandemia. Com efeito,
o seu escopo é a defesa e incremento da componente académica do currículo, devendo
o saber acumulado ser inoculado em doses cavalares independentemente do tempo
disponível e da capacidade do putativo recetor, que a sociedade poderá
selecionar.
Todavia,
percebo melhor a postura da APM (Associação de Professores de Matemática) cujo escopo é a educação pela Matemática. Ou
seja, os professores de Matemática – do ensino básico ao superior – também se
preocupam com o currículo académico, mas privilegiam o equilíbrio possível e
desejável entre o saber académico e o tempo disponível, bem como as capacidades
dos alunos e o contexto social em que se insere a escola. Por isso, recusando a
padronização, insistem na sólida formação inicial dos professores e na atempada
e adequada formação contínua e entendem que a aprendizagem se processa
paulatinamente, ciclicamente, em crescendo e, predominantemente, pelo método da
descoberta.
Provavelmente
o ensino básico dispõe de tempo demasiado longo e o ensino secundário de tempo
demasiado curto (6
anos letivos para cada um seria mais equilibrado). E agora que a
escolaridade universal e obrigatória é de 12 anos, porque não se faz o
ajustamento? Por outro lado, com o ensino superior com a duração de 3 anos na
maior parte das licenciaturas, nem dá para conhecer os cantos à respetiva
instituição de ensino. E os mestrados integrados acabam por surtir numa
ginástica pedagógico-administrativa para suprir a insuficiência do tempo da licenciatura.
Que
há a tendência para os programas se perpetuarem para lá das mudanças é tão
verdade como a tentação de mudar logo que haja novo Ministro. Porém, não se
criticou Passos Coelho pela substituição dos programas de Matemática e de
Português do ensino básico na governança anterior – crítica que agora se faz a
Brandão Rodrigues!
***
Porém,
o problema é mais fundo e amplo. É preciso pensar a educação no seu todo, como
sustenta Pedro Patacho, professor
universitário, doutorado em Educação pela Universidade da Corunha, Espanha,
vereador da Educação na Câmara Municipal de Oeiras, que escreveu o livro “Pensar a Educação”, pois, em sua ótica, “a educação escolar
está sufocada por enunciados românticos e complacentes”, como confessa em
entrevista a Sara oliveira, acabada de publicar no “educare.pt”, neste dia 11 de agosto. E levanta várias
questões, sendo a mais pertinente: “Como
podem os professores liderar a metamorfose da escola?” Com efeito, a
diversidade social e cultural traz novos e constantes desafios, o que leva à
necessidade de repensar a educação escolar contemporânea, pois continua a fazer
escola a tradição de transformar crianças em alunos e alunos em “orelhas”, que
debitam informação em instrumentos de avaliação padronizados. Assim, urge que os
professores conquistem mais autonomia escolar e profissional e recorram à participação
como ferramenta essencial. E Patacho garante que “a escola não se transformará
enquanto se mantiver fechada sobre si própria e submersa nas culturas escolares
seculares que moldam a sua vida organizacional e as vidas profissionais dos
professores”.
Sobre que projeto político é este a que chamamos
escola, o autor do livro recua ao passado para analisar o presente e pensar no
futuro, advertindo que há pontos relevantes a debater neste rumo umbilicalmente
ligado ao desenvolvimento do país. A seu ver, tomar decisões sobre a educação
escolar implica disponibilidade para construir compromissos estáveis e
duradouros de política educativa, não se podendo “aceitar que os alunos mais
desfavorecidos continuem a ter mais insucesso e dificuldades em construir uma
experiência escolar positiva, sendo assim duplamente penalizados”, como não se
podem “aceitar aprendizagens essenciais decalcadas de programas curriculares”
muitos deles com largas dezenas de anos, sem profundo trabalho de reflexão
sobre os conteúdos culturais mais pertinentes para o trabalho escolar na
atualidade.
Pressupondo que a educação é um projeto político, coletivo, portador duma
visão da sociedade e dum modelo de pessoa educada, reporta-se à grande reforma
da educação escolar de 1989, num processo iniciado em 1986, para concluir que
muita coisa precisa de ser repensada. A razão é que, em 2021, o mundo é muito
diferente do de 1989:
“Não havia Internet, as tecnologias de informação e comunicação davam os
primeiros passos, não havia telemóveis, não havia televisão por cabo nem
plataformas de conteúdos; o acesso à informação e ao conhecimento era
completamente diferente; vivíamos a outro ritmo, tínhamos outras preocupações e
centros de interesse; e as vivências das famílias e das crianças eram
completamente diferentes”.
Como mudaram as famílias, a cultura, a economia e o
mundo do trabalho, precisamos de parar para pensar na educação escolar de que
precisamos para encarar os desafios do presente, mas sobretudo os que emergem
no horizonte e cujos contornos já percebemos.
Confrontado com as ideias de
escola como elevador social, sendo que
nenhum aluno pode ficar para trás, de combate ao insucesso e abandono escolares
e dum perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória, reage com a
asserção de que “a educação
escolar está sufocada por enunciados românticos e complacentes, um senso comum
de certezas absolutas que ilude uma constatação que todos já perceberam: Não há vitórias fáceis”. E, como se
trata de projeto político coletivo e de bem público, decidir nesta matéria
postula disponibilidade para construir compromissos estáveis de política
educativa devendo todos os implicados ceder nas suas posições de princípio. Não
obstante, é de registar que uma reforma estrutural requer escolhas ideológicas,
desafios burocráticos e administrativos, planeamento de médio-longo prazo, mas
nós temos feito uma gestão casuística em função do Governo da ocasião. Assim, a
educação nunca será prioridade política. E não se pode aceitar que as escolas
não estejam reabilitadas e requalificadas, como não se podem tolerar avanços,
recuos e velocidade de tartaruga na modernização tecnológica da escola, quando
que a Internet e as TIC se consolidaram como bases materiais da maior parte das
ações quotidianas e da economia, ou que o país não tenha estratégia para a
formação de professores e para o rejuvenescimento e valorização da classe, ou
que se decalquem aprendizagens essenciais de programas curriculares sem profundo
trabalho de reflexão sobre os conteúdos culturais mais pertinentes para o
trabalho escolar na atualidade, ou que os alunos mais desfavorecidos tenham
mais insucesso e dificuldades em construir experiência escolar positiva. Está
em causa o desenvolvimento do país e a democracia.
Quanto à alegada resistência da escola à mudança,
começa por lembrar que “a escola da modernidade, herdeira do industrialismo,
consolidada nas sociedades ocidentais”, se baseia “em estandardizações de todos
os tipos”, como a arquitetura escolar, a gestão curricular, as práticas de
avaliação, etc. Observa que temos dificuldade em libertar-nos desse legado que
fez das crianças alunos e destes “orelhas”, cuja principal função é ouvir e
acumular informação e conhecimento para debitar em instrumentos de avaliação
padronizados. Ora, “a escola não pode ser só isso”. No entanto, vê exemplos
positivos e, até excelentes, de mudança paradigma, mas estão em franca minoria.
A mudança de paradigma impõe que se repense a formação de professores de modo
que saibam lidar com a diversidade, pois, quanto mais diversidade (ela
aumentou imenso com a universalização do ensino e a extensão da escolaridade
obrigatória), mais
dificuldades e desafios para a escola que não está preparada para lidar adequadamente
com a diferença. Porém, é na diversidade que reside o maior potencial de
transformação da educação, quando definirmos políticas educativas e
curriculares mais adequadas à diversidade.
A nível da desmotivação e exaustão dos professores e da
burocratização do trabalho docente, frisa que são cada vez mais atribuídas mais
tarefas às escolas e colocadas mais exigências sobre os professores, quando a sua
preocupação dominante devia ser o trabalho com os seus alunos; que os professores
estão envelhecidos (são quase 45% os professores com mais de 50 anos de
idade) e não têm apoio de outros
profissionais. Com efeito, dada a abundância de problemas psicológicos, sociais
e económicos, as escolas devem estar dotadas de equipas pluridisciplinares, o
que está longe de ser realidade. Por isso, entende que é injusto “responsabilizar
os docentes por tudo em vez de criar uma nova atmosfera colaborativa que passe
pela colocação nas escolas de outros técnicos”. Os professores que estão na
escola precisam de apoio para operar o processo de metamorfose da organização e
funcionamento da educação escolar, tal como urge uma nova estratégia para a
formação dos novos professores.
Em sua ótica, o sistema de
ensino, com base no que se aprende, com currículos definidos e metas de
aprendizagem e exames nacionais, não está bem estruturado para as exigências de
uma sociedade moderna e digital. Ora, tendo-se referido às aprendizagens essenciais, explicou:
“Decidiu-se agora fazer cair todas as orientações curriculares e
programas, mantendo-se apenas em vigor as aprendizagens essenciais, lidas
articuladamente com o perfil do aluno e os normativos da educação inclusiva.
São avanços positivos e sinais de esperança. Mas claramente insuficientes.
Estruturalmente tudo se mantém na mesma. O império das disciplinas não é
minimamente questionado, nem as práticas de avaliação.”.
E considera que, em 2021, na era da informação e conhecimento,
encontrar resposta à questão sobre “que
conteúdos culturais são os mais pertinentes e adequados para uma educação de
qualidade que atenda a toda a diversidade” requer “trabalho complexo,
profundo e amplamente participado que ainda não foi feito”.
No atinente à relação entre
famílias (com pais mais escolarizados e mais exigentes) e professores para “uma
educação capaz, robusta e democrática”, aponta que a investigação das últimas décadas, (quantitativa
e qualitativa) e as várias
meta-análises mostram que o envolvimento e a participação das famílias na vida
escolar dos educandos, quer em casa, quer na escola, tem impacto positivo e
duradouro na qualidade da experiência escolar e nos resultados académicos dos
alunos e que os vários tipos de parcerias escolares com as famílias e a
comunidade têm impacto nos resultados escolares e na qualidade do ambiente
educativo. E, sendo certo que “todas
as famílias, independentemente do seu nível de instrução, podem constituir-se
aliados poderosos dos professores e profissionais escolares”, é verdade que, à
medida que os níveis de escolarização das famílias se elevam, haverá cada vez
mais pressão sobre as escolas e sobre os professores. Além disso, não pode ser
desvalorizado o lado democrático, pois “a educação escolar é um bem público” e
“as famílias e instituições da comunidade interessadas nas questões educativas
têm o direito e o dever de participar”.
Ora, para que aconteça o
debate público sobre o que ensinar, o que trabalhar na escola com os alunos,
porquê e para quê, precisamos dum movimento
de reforma análogo ao de 1986, “amplamente participado, gerador de um novo
pacto social para a educação”, sendo de “convocar todas as partes interessadas
para um processo aberto e construtivo de debate dessas matérias”, em que todos estejam
disponíveis para “fazer cedências e construir compromissos”.
Sobre a solidez dos
alicerces da Escola Pública, o investigador entende que “nunca como hoje foi tão importante reforçar a solidez
desses alicerces, assentes nos valores da justiça social enquanto concretização
democrática”, já que desapareceram das vivências das crianças e jovens, cujas
existências estão hiper-reguladas, a rua e as relações de vizinhança. Assim,
emerge a escola como “grande espaço público de encontro da diversidade, onde
todos aprendem a respeitar-se, a cooperar e trabalhar juntos, a partilhar
sonhos, ideais e projetos, de forma solidária e tolerante”, o que nunca foi tão
importante como na atualidade.
E Patacho, enquanto sustenta que “os espaços públicos de
escolarização são a melhor apólice de seguro do nosso modo de vida democrático
e o maior instrumento para construir uma sociedade mais justa”, diz que “também
nunca foram tão fortes como hoje as ameaças conservadoras e neoliberais a este
modelo de escolarização”. Porém sublinha que “este é um debate que tem sido
constantemente minado por preconceitos ideológicos, quer à esquerda, quer à
direita, que apenas lançam confusão onde deveria reinar a serenidade”. E crê
que “é possível promover a integração das redes pública e privada de ensino sem
beliscar os valores da justiça social que estão na base do ideal público de
escolarização”.
Considera que a pandemia não resolveu nada, só mostrou
é que a educação escolar não dispensa a interação presencial profundamente
humana em que os professores têm papel decisivo, mas trouxe para o espaço
público o debate da educação escolar, não podendo nós perder o ensejo para
criar uma plataforma de entendimento que permita construir um pacto social e
político para um novo movimento de reforma estrutural da educação amplamente
participado.
Por fim, quanto aos
professores, diz que precisam,
desde logo, de conquistar mais autonomia escolar e profissional, mas,
sobretudo, de ter como recurso normal a participação, pois “a escola não mudará
enquanto se mantiver fechada sobre si e submersa nas culturas escolares
seculares que moldam a sua vida organizacional e as vidas profissionais dos
professores”. E sustenta que participação de outros atores é a chave da mudança,
mas essa participação tem de ser liderada pelos professores, que, ao fazê-lo,
como líderes e organizadores de novos contextos escolares, retomarão o
prestígio social e a autoridade profissional que tem vindo a esboroar-se.
***
Para quando o debate e a ação tão necessários sobre
esta momentosa matéria? Porque manter na escola o órgão de gestão estratégica
composto maioritariamente por não professores? Porque não reconhecer a
autonomia científica e pedagógica do professor?
2021.08.11 – Louro de Carvalho
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