terça-feira, 3 de agosto de 2021

Combater a desinformação em casa e na escola implica saber do que se trata

 

Segundo o n.º 2 do famigerado art.º 6.º da Lei n.º 27/2021, de 17 de maio (que aprova a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital), desinformação é “toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos. Porém, o fenómeno não se circunscreve ao digital.

O nosso léxico inclui os termos “informar” (no latim “informare”) e “informação” (no latim “informatio, onis”) atinentes à prestação do conhecimento de factos, acontecimentos, eventos, transmissão de ideias, sentimentos, opiniões, normas, doutrina, etc. Quando atrelamos àqueles termos os prefixos latinos “de” e “des”, estamos perante outros termos derivados a que está inerente a ideia de negação, derrube, descida, destruição, adulteração ou desfiguração. Assim, desinformação é o ato ou efeito de suprimir ou ocultar informação, minimizar-lhe a relevância ou modificar-lhe o sentido. Enfim, desinformação será sempre informação contrária à verdade, pelo menos na sua integridade, capaz de confundir ou de induzir em erro. Não é ato resultante de ignorância ou engano, pois são serve-se de técnicas de comunicação e informação para induzir a erro ou dar falsa imagem da realidade com o objetivo de influenciar a opinião pública de sorte a proteger interesses privados ou tidos como tais, tantas vezes em contexto de relações públicas, publicidade e propaganda.

À desinformação convêm procedimentos próprios. Pode operar através da publicidade pública dum regime político, organizada por um spin doctor por meio de mecanismos da engenharia social ou da publicidade privada, bem como por boatos, sondagens, estatísticas, filtragem de informações ou estudos ditos científicos e imparciais, mas pagos por empresas ou instituições económicas interessadas, por afirmações não autorizadas para inspecionar argumentos adversos que possam suscitar uma medida e antecipar respostas e uso de meios não independentes ou financiados em parte por quem divulga a notícia ou com jornalistas sem contrato fixo.

Lança-se mão de inúmeros elementos retóricos como: demonização, esoterismo, falácia, omissão, pressuposição, mentira, exagero, negativismo, ruído e sobreinformação, generalização, especificação fastidiosa, descontextualização, analogia, metáfora, eufemismo, desorganização do conteúdo, adjetivo dissuasivo, despeito, reserva da última palavra ou ordenação da informação preconizada sobre a oposta.

A demonização (ou satanização) consiste em identificar a opinião contrária com o mal, de modo a enobrecer e glorificar a própria opinião. Falar do outro como dum demónio converte-nos em anjos e as nossas guerras santas são menos injustas que as outras. Trata-se de convencer as pessoas com sentimentos e não com razões objetivas. Defendem-se interesses económicos ou encobre-se a intenção económica a que obedece o ponto de vista aparentemente bem-intencionado de a regular, por exemplo, quando se demoniza a Internet chamando-lhe refúgio de pederastas e piratas. Há palavras e expressões que não admitem réplica nem têm razoabilidade lógica: estão neste caso os adjetivos dissuasivos, contundentes e negativistas que obrigam a submeter-se a essas palavras e excluem o teor e qualquer forma de trâmite inteligente. A contundência emocional, o “pathos” emotivo da mensagem eclipsam qualquer dúvida ou ignorância. Tais são, por exemplo os adjetivos: irreversível, inquestionável, inquebrável, inexequível, insuspeitável, indeclinável e substancial. O seu maximalismo serve para rebaixar qualquer discurso de sentido oposto e criar uma atmosfera irrespirável de monologia. Para Noam Chomsky, muitas palavras atraem outros elementos em cadeia formando lexias (adesão inquebráveldever incontornávellegítimas aspiraçõesabsolutamente imprescindível) e lexias redundantes como “totalmente cheio ou absolutamente indiscutível, inaceitável ou inadmissível.

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Andreia Lobo, no passado dia 19 de julho, dá espaço, no “educare.pt”, ao tema do combate à desinformação infanto-juvenil, que, para a investigadora Sara Pereira, do MILObs (Observatório sobre Média, Informação e Literacia), passa, por explicar às crianças “a importância do valor da verdade”, devendo as empresas e os meios de comunicação participar no esforço social para educar as famílias a lidar com falsa informação. Com efeito, a desinformação está cada vez mais presente nos meios de comunicação, nomeadamente nas redes sociais, tendo-se tornado mais visível nos dois últimos anos, em que, a coberto da pandemia, circulou naquelas redes todo o tipo de informação sobre pretensas (e falsas) curas. E as fake news (notícias falsas) estão para ficar.

A Comissão Europeia (CE) combate desde 2018 as fake news no espaço digital seguindo um plano de ação contra a desinformação que já em 2020 se via reforçado e ampliado pelo Plano de Ação para a Democracia Europeia. Em abril passado, a CE deu outro passo nesta luta com a publicação de uma série de materiais e recursos pedagógicos (disponíveis em Português no Espaço Aprendizagem) dirigidos a alunos do 3.º ciclo e do Ensino Secundário.

Para a investigadora do MILObs, criado em 2018 para promover a literacia mediática, “a desinformação deve começar a ser trabalhada a partir do momento em que as crianças começam a andar nas redes sociais”, o que sucede pelos 11 ou 12 anos, idades em que é preciso ter algum cuidado com “o que é verdadeiro ou falso”.

Sara Pereira entende que, já antes da entrada no mundo digital, é possível fazer entender às crianças um relevante aspeto ligado à informação: “a importância do valor da verdade”. E diz:

Sabemos sempre como se pode chegar à verdade, a importância de ser verdadeiro, de falar a verdade e de detetar a mentira”.

Segundo a investigadora, explicados estes conceitos, “as crianças começam já a desenvolver alguns mecanismos, nomeadamente a valorizar a informação verdadeira, para depois compreender qual é o problema da desinformação”.

O problema da desinformação consiste sobretudo em as pessoas não perceberem “porque é que a informação é problemática”, pois, “além de a receberem e de a poderem partilhar e da opinião que formam a partir daí, com uma base enganadora, a questão é se as pessoas percebem realmente a importância do ser verdade e do ser falso”.  Assim se compreende o motivo por que a desinformação “é um problema para a sociedade e para as democracias”, podendo trazer “visões completamente deturpadas da realidade”.

A experiência no MILOBs com jovens, público-alvo de diversas ações de educação para os media, tem mostrado que o caminho, “além de os ensinar a validar e verificar informação, é fazê-los compreender que a desinformação é um problema para a sociedade porque a verdade é um valor coletivo”, diz Sara Pereira, que adverte que, sendo a desinformação um fenómeno social, não há quem esteja 100% a salvo de ser mal informado. E avisa:

Mesmo as pessoas que não estão nas redes sociais e podem não ser tanto objeto dessa desinformação - não a encontrar, não a publicar, não a partilhar - são também vítimas da desinformação porque na sociedade em que estão vão ser vítimas em outros âmbitos”.

O combate à desinformação passa também pela promoção de competências de leitura crítica.

Como lembra Sara Pereira, importa “saber ler criticamente e analisar o que é lido”, pois, se “a pessoa lê e não reconhece os problemas do que está a ler ou não consegue compreender e interpretar o que está a ler, isto pode ser um problema”. Ora, atender apenas ao lado técnico ou tecnológico do problema da desinformação, não o resolve; e bloquear redes sociais ou deixar de participar nelas serão forma de resolver o problema a nível individual, mas não a nível social.

Sendo a desinformação um problema social, não são apenas os pais, nem a escola, os agentes responsáveis por esta matéria. Todavia, em casa, os pais podem ajudar os filhos a entender melhor a realidade que lhes chega dos media através do diálogo.

A mediação – explicar, dialogar, conversar – em diálogo permanente deve existir. Trata-se, como realça a investigadora, de ter o mesmo tipo de abordagem que os pais têm para compreender onde é que os filhos andaram ou que problemas têm, mas aplicada às questões da desinformação. A abertura para saber se eles receberam informação duvidosa “é que leva à conversa e ao alerta e até para se sentarem em conjunto e ver que informação chegou”. Mas, para isto acontecer ao nível da desinformação, “é preciso que as famílias saibam conversar sobre o tema”, o que, “nem todas saberão” fazer. Por isso, a escola é o agente capaz de ajudar crianças e jovens a distinguir a informação verdadeira da falsa e a saber lidar com elas.

Lê-se nos materiais da CE, dirigidos aos professores, que, para responder à desinformação, primeiro é necessário duvidar. Depois da dúvida sobre a informação que nos chega, é preciso dar o passo da verificação dos factos: perceber quem os emite, isto é, qual a sua proveniência, a sua fonte; ter visão crítica e analítica; observar as imagens que acompanham o texto, com a mesma dúvida; e pensar antes de partilhar. Urge proteger da desinformação o cidadão in fieri.

Em jogo estão também competências emocionais, como, em vez de envergonhar a pessoa que nos diz algo que sabemos não ser verdade, mostrar empatia e não entrar em discussões do género “Eu bem te aviso; ainda me hás de dar razão”. E é essencial não esperar por uma mudança imediata; é preciso ter paciência para travar alguém que partilha desinformação. Contudo, podemos ser ativos e reportar a falsa informação à plataforma que a publica.

A escola é o sítio onde todos os alunos podem ter a igualdade de aprender, pelo que todas as questões (incluindo a da desinformação) são remetidas para a escola, porque em casa o cenário é diferente. Não obstante, a responsabilidade de ajudar a sociedade a estar ciente dos problemas da desinformação, como propõe a investigadora, deve ser repartida por outros agentes, como as empresas e os meios de comunicação. E diz Sara Pereira:

Andamos sempre a pensar na educação para os media sem envolver os media. Os meios de comunicação e as empresas, em geral, poderiam contribuir para a tal formação/ informação sobre a desinformação que falta às famílias.”.

A investigadora (também professora na Universidade do Minho) aponta uma ação de informação ao público sobre proteção de dados desenvolvida pela Apple. E resume o roteiro em inglês intitulado “Um dia na vida dos seus dados”, que a investigadora traduziu para uso em aula:

Um pai e uma menina pequena vão ao parque e o roteiro vai relatando todos os dados que várias empresas recolhem deles desde que saem até que regressam. O pai consulta o telemóvel tira uma selfie com a filha e dados são capturados, depois vão comer um gelado, ele paga com o cartão e mais dados são capturados.”.

Sobre este roteiro e considerando os interesses publicitários da empresa, Sara Pereira reconhece que acaba por fazer serviço público, porque “é um documento escrito numa linguagem acessível e baseada no quotidiano que qualquer pai vai entender”. E conclui:

Se a empresas criassem este tipo de narrativas (…) poderíamos ter famílias mais bem informadas a partir de situações do quotidiano delas. Isto é responsabilidade social das empresas que a têm mas nem sempre a cumprem.”.

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A retórica da desinformação está presente em muitos momentos e discursos.

O espantalho do medo garante a recetividade do público à indoutrinação ou a qualquer ideia que que se queira incutir, para o que se recorre a sentimentos instalados na psicologia do cidadão por preconceitos escolares e de educação, mas sem razões de fundo nem provas. O argumento da autoridade leva a citar personalidades de renome para sustentar uma ideia, um argumento ou uma linha de conduta e negligenciar as opiniões de outrem. E o recurso ao testemunho leva a mencionar (dentro ou fora de contexto) casos em vez de situações gerais para sustentar uma opção.

A acumulação leva a persuadir o auditório, por insinuação, por exemplo de que um movimento de massas irresistível e implacável está comprometido no seu apoio, embora tal seja falso. 

O revisionismo redefine palavras, falsifica parcialmente a história para criar ilusão de coerência.

A procura de desaprovação (ou pôr palavras na boca de alguém) consiste em sugerir uma ideia ou ação que seja adotada por um grupo adverso sem a estudar a sério, pois afirmar que um grupo tem uma opinião e que os indivíduos indesejáveis, subversivos ou reprováveis também a têm predispõe os demais a mudar de opinião. O uso de generalidades e palavras virtuosas cria emoção no auditório (amor à pátria e desejo de paz, liberdade e justiça) destruindo o espírito crítico do auditório. E a adulação leva a usar qualificativos agradáveis e sem moderação para convencer o recetor (v. g: “Você, que é muito inteligente, deveria estar de acordo com o que lhe digo”).

A imprecisão intencional, que dá para referir factos deformando-os ou citar estatísticas sem indicar as fontes ou todos os dados, pretende imprimir ao discurso um conteúdo de aparência científica sem permitir a análise da sua validade ou aplicabilidade.

A técnica de transferência projeta qualidades positivas ou negativas de pessoa, entidade, objeto ou valor (indivíduo, grupo, organização, nação, raça...) sobre algo aceitável mediante cargas emotivas.

A simplificação exagerada usa generalidades para contextualizar complexos.

Na técnica do quidam, o propagandista usa o nível de linguagem e as maneiras e aparências da pessoa comum, pois o mecanismo psicológico de projeção induz o auditório a inclinar-se mais a aceitar as ideias que se apresentam assim, já que quem as presenta lhe parece semelhante.

A técnica da estereotipagem usa preconceitos e estereótipos do auditório para o fazer aderir a algo que à partida não era aceitável (e o inverso). E o recurso ao bode expiatório anatematiza indivíduos ou grupos como responsáveis por um problema real ou suposto.

Usam-se chavões (slogans) ou frases curtas, fáceis de memorizar que permitem deixar um traço em todos os espíritos, de forma positiva ou irónica, v. g: “Bruto é um homem honrado”.

O eufemismo (ou deslize semântico) substitui uma expressão por outra retirando-lhe o conteúdo emocional e esvaziando-a de sentido. Por exemplo: “interrupção voluntária da gravidez”, por indução de aborto; “solução habitacional”, por habitação; “limpeza étnica”, por matança racista; “danos colaterais”, por vítimas civis; “liberalismo”, por capitalismo; “lei da selva”, por liberalismo; “reajuste laboral” e “restruturação”, por despedimento e supressão de serviços; “solidariedade”, por imposto; “pessoa com orientação sexual diferente”, por homossexual; “pessoa com capacidades diferentes”, por deficiente; “relações impróprias”, por adultério; “inverdade”, por falsidade e mentira; e “ter má relação com a verdade”, por ser mentiroso.

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Para desmontar todas as situações de desinformação, é preciso renunciar ao politicamente e/ou economicisticamente correto e levar os casos graves de desinformação à barra dos tribunais.

2021.08.02 – Louro de Carvalho

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