Segundo o n.º 2 do famigerado art.º 6.º da Lei n.º
27/2021, de 17 de maio (que aprova a Carta
Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital), desinformação
é “toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e
divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o
público e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente
ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de
políticas públicas e a bens públicos. Porém, o fenómeno não se circunscreve ao
digital.
O nosso léxico
inclui os termos “informar” (no latim “informare”) e “informação” (no latim “informatio,
onis”) atinentes à prestação do conhecimento de factos, acontecimentos,
eventos, transmissão de ideias, sentimentos, opiniões, normas, doutrina, etc.
Quando atrelamos àqueles termos os prefixos latinos “de” e “des”, estamos
perante outros termos derivados a que está inerente a ideia de negação,
derrube, descida, destruição, adulteração ou desfiguração. Assim, desinformação
é o ato ou efeito de suprimir ou ocultar informação, minimizar-lhe a relevância
ou modificar-lhe o sentido. Enfim, desinformação será sempre informação
contrária à verdade, pelo menos na sua integridade, capaz de confundir ou de
induzir em erro. Não é ato resultante de ignorância ou engano, pois são serve-se de técnicas de comunicação e informação para
induzir a erro ou dar falsa imagem da realidade com o objetivo de influenciar
a opinião pública de sorte a proteger interesses privados ou tidos
como tais, tantas vezes em contexto de relações públicas, publicidade e
propaganda.
À
desinformação convêm procedimentos próprios. Pode operar através da publicidade pública
dum regime político, organizada por um spin doctor por meio de mecanismos da engenharia social
ou da publicidade privada, bem como por boatos, sondagens, estatísticas,
filtragem de informações ou estudos ditos científicos e imparciais, mas pagos
por empresas ou instituições económicas interessadas, por afirmações
não autorizadas para inspecionar argumentos adversos que possam suscitar uma
medida e antecipar respostas e uso de meios não independentes ou financiados em
parte por quem divulga a notícia ou com jornalistas sem contrato
fixo.
Lança-se mão
de inúmeros elementos retóricos como: demonização, esoterismo, falácia, omissão,
pressuposição, mentira, exagero, negativismo, ruído e sobreinformação, generalização,
especificação fastidiosa, descontextualização, analogia, metáfora, eufemismo,
desorganização do conteúdo, adjetivo dissuasivo, despeito, reserva da
última palavra ou ordenação da informação preconizada sobre a oposta.
A
demonização (ou satanização) consiste em
identificar a opinião contrária com o mal, de modo a enobrecer e
glorificar a própria opinião. Falar do outro como dum demónio converte-nos
em anjos e as nossas guerras santas são menos injustas que as outras.
Trata-se de convencer as pessoas com sentimentos e não com razões objetivas. Defendem-se
interesses económicos ou encobre-se a intenção económica a que obedece o ponto
de vista aparentemente bem-intencionado de a regular, por exemplo, quando se
demoniza a Internet chamando-lhe refúgio de pederastas e piratas.
Há palavras e expressões que não admitem réplica nem têm razoabilidade lógica:
estão neste caso os adjetivos
dissuasivos, contundentes e negativistas que obrigam a submeter-se
a essas palavras e excluem o teor e qualquer forma de trâmite inteligente. A contundência
emocional, o “pathos” emotivo
da mensagem eclipsam qualquer dúvida ou ignorância. Tais são, por exemplo os
adjetivos: irreversível, inquestionável, inquebrável, inexequível,
insuspeitável, indeclinável e substancial. O seu maximalismo
serve para rebaixar qualquer discurso de sentido oposto e criar uma
atmosfera irrespirável de monologia. Para Noam Chomsky, muitas palavras atraem
outros elementos em cadeia formando lexias (adesão inquebrável, dever
incontornável, legítimas aspirações, absolutamente
imprescindível) e lexias
redundantes como “totalmente cheio ou absolutamente
indiscutível, inaceitável ou inadmissível”.
***
Andreia Lobo, no passado dia
19 de julho, dá espaço, no “educare.pt”,
ao tema do combate à desinformação infanto-juvenil, que, para a investigadora Sara Pereira, do MILObs (Observatório
sobre Média, Informação e Literacia), passa, por explicar às crianças “a
importância do valor da verdade”, devendo as empresas e os meios de comunicação
participar no esforço social para educar as famílias a lidar com falsa
informação. Com efeito, a
desinformação está cada vez mais presente nos meios de comunicação,
nomeadamente nas redes sociais, tendo-se tornado mais visível nos dois últimos
anos, em que, a coberto da pandemia, circulou naquelas redes todo o tipo de
informação sobre pretensas (e falsas) curas. E as fake news (notícias falsas) estão para ficar.
A Comissão Europeia (CE) combate desde 2018 as fake news no
espaço digital seguindo um plano de ação contra a desinformação que já em 2020
se via reforçado e ampliado pelo Plano de Ação para a Democracia Europeia. Em
abril passado, a CE deu outro passo nesta luta com a publicação de uma série de
materiais e recursos pedagógicos (disponíveis em Português no Espaço
Aprendizagem) dirigidos a
alunos do 3.º ciclo e do Ensino Secundário.
Para a investigadora do MILObs, criado em 2018 para
promover a literacia mediática, “a desinformação deve começar a ser trabalhada
a partir do momento em que as crianças começam a andar nas redes sociais”, o
que sucede pelos 11 ou 12 anos, idades em que é preciso ter algum cuidado com “o
que é verdadeiro ou falso”.
Sara Pereira entende que, já antes da entrada no mundo
digital, é possível fazer entender às crianças um relevante aspeto ligado à
informação: “a importância do valor da verdade”. E diz:
“Sabemos sempre como se pode chegar à verdade, a importância de ser
verdadeiro, de falar a verdade e de detetar a mentira”.
Segundo a investigadora, explicados estes conceitos, “as crianças começam já a desenvolver alguns
mecanismos, nomeadamente a valorizar a informação verdadeira, para depois
compreender qual é o problema da desinformação”.
O problema da desinformação consiste sobretudo em as
pessoas não perceberem “porque é que a informação é problemática”, pois, “além
de a receberem e de a poderem partilhar e da opinião que formam a partir daí,
com uma base enganadora, a questão é se as pessoas percebem realmente a
importância do ser verdade e do ser falso”. Assim se compreende o motivo
por que a desinformação “é um problema para a sociedade e para as democracias”,
podendo trazer “visões completamente deturpadas da realidade”.
A experiência no MILOBs com jovens, público-alvo de
diversas ações de educação para os media, tem mostrado que o
caminho, “além de os ensinar a validar e verificar informação, é fazê-los
compreender que a desinformação é um problema para a sociedade porque a verdade
é um valor coletivo”, diz Sara Pereira, que adverte que, sendo a desinformação
um fenómeno social, não há quem esteja 100% a salvo de ser mal informado. E
avisa:
“Mesmo as pessoas que não estão nas redes sociais e podem não ser tanto
objeto dessa desinformação - não a encontrar, não a publicar, não a partilhar -
são também vítimas da desinformação porque na sociedade em que estão vão ser
vítimas em outros âmbitos”.
O combate à desinformação passa também pela promoção
de competências de leitura crítica.
Como lembra Sara Pereira, importa “saber ler criticamente
e analisar o que é lido”, pois, se “a pessoa lê e não reconhece os problemas do
que está a ler ou não consegue compreender e interpretar o que está a ler, isto
pode ser um problema”. Ora, atender apenas ao lado técnico ou tecnológico do
problema da desinformação, não o resolve; e bloquear redes sociais ou deixar de
participar nelas serão forma de resolver o problema a nível individual, mas não
a nível social.
Sendo a desinformação um problema social, não são
apenas os pais, nem a escola, os agentes responsáveis por esta matéria.
Todavia, em casa, os pais podem ajudar os filhos a entender melhor a realidade
que lhes chega dos media através
do diálogo.
A mediação – explicar, dialogar, conversar – em
diálogo permanente deve existir. Trata-se, como realça a investigadora, de ter
o mesmo tipo de abordagem que os pais têm para compreender onde é que os filhos
andaram ou que problemas têm, mas aplicada às questões da desinformação. A
abertura para saber se eles receberam informação duvidosa “é que leva à
conversa e ao alerta e até para se sentarem em conjunto e ver que informação
chegou”. Mas, para isto acontecer ao nível da desinformação, “é preciso que as
famílias saibam conversar sobre o tema”, o que, “nem todas saberão” fazer. Por
isso, a escola é o agente capaz de ajudar crianças e jovens a distinguir a
informação verdadeira da falsa e a saber lidar com elas.
Lê-se nos materiais da CE, dirigidos aos professores,
que, para responder à desinformação, primeiro é necessário duvidar. Depois da
dúvida sobre a informação que nos chega, é preciso dar o passo da verificação dos
factos: perceber quem os emite, isto é, qual a sua proveniência, a sua fonte; ter
visão crítica e analítica; observar as imagens que acompanham o texto, com a
mesma dúvida; e pensar antes de partilhar. Urge proteger da desinformação o
cidadão in fieri.
Em jogo estão também competências emocionais, como, em
vez de envergonhar a pessoa que nos diz algo que sabemos não ser verdade, mostrar
empatia e não entrar em discussões do género “Eu bem te aviso; ainda me hás de dar razão”. E é essencial não esperar
por uma mudança imediata; é preciso ter paciência para travar alguém que
partilha desinformação. Contudo, podemos ser ativos e reportar a falsa
informação à plataforma que a publica.
A escola é o sítio onde todos os alunos podem ter a
igualdade de aprender, pelo que todas as questões (incluindo a
da desinformação) são
remetidas para a escola, porque em casa o cenário é diferente. Não obstante, a
responsabilidade de ajudar a sociedade a estar ciente dos problemas da
desinformação, como propõe a investigadora, deve ser repartida por outros
agentes, como as empresas e os meios de comunicação. E diz Sara Pereira:
“Andamos sempre a pensar na educação para os media sem envolver os media. Os meios de comunicação e as empresas, em geral,
poderiam contribuir para a tal formação/ informação sobre a desinformação que
falta às famílias.”.
A investigadora (também professora na Universidade
do Minho) aponta uma ação de informação ao
público sobre proteção de dados desenvolvida pela Apple. E resume o roteiro em
inglês intitulado “Um dia na vida dos
seus dados”, que a investigadora traduziu para uso em aula:
“Um pai e uma menina pequena vão ao parque e o roteiro vai relatando
todos os dados que várias empresas recolhem deles desde que saem até que
regressam. O pai consulta o telemóvel tira uma selfie com a filha e dados são
capturados, depois vão comer um gelado, ele paga com o cartão e mais dados são
capturados.”.
Sobre este roteiro e considerando os interesses
publicitários da empresa, Sara Pereira reconhece que acaba por fazer serviço
público, porque “é um documento escrito numa linguagem acessível e baseada no
quotidiano que qualquer pai vai entender”. E conclui:
“Se a empresas criassem este tipo de narrativas (…) poderíamos ter
famílias mais bem informadas a partir de situações do quotidiano delas. Isto é
responsabilidade social das empresas que a têm mas nem sempre a cumprem.”.
***
A retórica da desinformação está presente em muitos momentos e discursos.
O espantalho do medo garante a recetividade do público à indoutrinação ou a
qualquer ideia que que se queira incutir, para o que se recorre a sentimentos
instalados na psicologia do cidadão por preconceitos escolares e de educação,
mas sem razões de fundo nem provas. O argumento da autoridade leva a
citar personalidades de renome para sustentar uma ideia, um argumento ou
uma linha de conduta e negligenciar as opiniões de outrem. E o recurso ao testemunho leva a mencionar (dentro ou fora de contexto) casos em vez de situações gerais para sustentar uma opção.
A acumulação leva a persuadir o auditório,
por insinuação, por exemplo de que um movimento de massas irresistível e
implacável está comprometido no seu apoio, embora tal seja falso.
O revisionismo redefine palavras, falsifica parcialmente
a história para criar ilusão de coerência.
A procura de desaprovação (ou pôr palavras na boca de alguém) consiste em sugerir uma ideia ou ação
que seja adotada por um grupo adverso sem a estudar a sério, pois afirmar que
um grupo tem uma opinião e que os indivíduos indesejáveis, subversivos ou
reprováveis também a têm predispõe os demais a mudar de opinião. O uso de generalidades e palavras virtuosas cria emoção
no auditório (amor à pátria e desejo de paz, liberdade e
justiça) destruindo o espírito
crítico do auditório. E a
adulação leva a usar qualificativos
agradáveis e sem moderação para convencer o recetor (v. g: “Você, que é muito inteligente, deveria estar de acordo com o que
lhe digo”).
A imprecisão intencional,
que dá para referir factos deformando-os ou citar estatísticas sem
indicar as fontes ou todos os dados, pretende imprimir ao discurso um conteúdo
de aparência científica sem permitir a análise da sua validade ou aplicabilidade.
A técnica de transferência
projeta qualidades positivas ou negativas de pessoa, entidade, objeto ou valor (indivíduo, grupo, organização, nação, raça...) sobre algo aceitável mediante cargas
emotivas.
A simplificação
exagerada usa generalidades para contextualizar complexos.
Na técnica do quidam, o propagandista usa o nível de linguagem e as maneiras e aparências da
pessoa comum, pois o mecanismo psicológico de projeção induz o auditório a
inclinar-se mais a aceitar as ideias que se apresentam assim, já que quem as
presenta lhe parece semelhante.
A técnica da estereotipagem usa preconceitos e estereótipos do
auditório para o fazer aderir a algo que à partida não era aceitável (e o inverso). E o recurso ao bode expiatório anatematiza
indivíduos ou grupos como responsáveis por um problema real ou suposto.
Usam-se chavões
(slogans) ou frases curtas, fáceis de memorizar que permitem deixar um traço em
todos os espíritos, de forma positiva ou irónica, v. g: “Bruto é
um homem honrado”.
O eufemismo (ou deslize semântico) substitui uma expressão por outra
retirando-lhe o conteúdo emocional e esvaziando-a de sentido. Por exemplo: “interrupção
voluntária da gravidez”, por indução de aborto; “solução
habitacional”, por habitação; “limpeza étnica”, por matança racista;
“danos colaterais”, por vítimas civis; “liberalismo”, por capitalismo; “lei da selva”, por liberalismo;
“reajuste laboral” e “restruturação”,
por despedimento e supressão de serviços; “solidariedade”, por imposto;
“pessoa com orientação sexual diferente”, por homossexual; “pessoa
com capacidades diferentes”, por deficiente; “relações impróprias”,
por adultério; “inverdade”, por
falsidade e mentira; e “ter má relação
com a verdade”, por ser mentiroso.
***
Para desmontar todas as situações de desinformação, é preciso renunciar ao
politicamente e/ou economicisticamente correto e levar os casos graves de
desinformação à barra dos tribunais.
2021.08.02 – Louro de Carvalho
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