quarta-feira, 31 de maio de 2017

O terrorismo está a tornar-se um mal crónico e um duro combate

O atentado terrorista desencadeado com um camião-cisterna armadilhado na manhã de hoje, 31 de maio, no bairro diplomático de Cabul, perto do Palácio Presidencial e junto das embaixadas da Alemanha, Turquia e Japão, fez 90 mortos e 463 feridos, como refere o centro de imprensa do Governo afegão e a própria ONU.
O mesmo centro de imprensa, já aludido, indica como fonte deste balanço, que aumenta os números veiculados por anteriores notícias do Ministério da Saúde Pública (80 mortos e 350 feridos), o Conselho Afegão de Ulemas, o principal órgão religioso do país, que inclui clérigos muçulmanos e académicos sobre Religião e Direito, e que, segundo a agência noticiosa norte-americana Associated Press, considera que “realizar tais ataques no mês sagrado do Ramadão é completamente contra a Humanidade”.
Testemunhas falam num carro armadilhado que estava estacionado junto da embaixada da Alemanha e que, ao explodir, destruiu janelas e portas num raio de centenas de quilómetros. Imagens divulgadas nas redes sociais mostram uma grande coluna de fumo negro sobre o centro da cidade e uma série de carros destruídos.
O atentado, um dos piores dos últimos anos no Afeganistão, sendo mesmo o mais mortífero, ainda não foi reivindicado, tendo indicado um porta-voz dos talibãs, na rede social Twitter, que este grupo rebelde “não está envolvido no ataque de Cabul e condena-o firmemente”, nomeadamente no atinente à população civil.
Em comunicado difundido pelo seu porta-voz Zabihulla Mujaid, os talibãs asseguram que “os mujhaedines não têm nada com a explosão” e declaram que os elementos do grupo não estão autorizados a preparar ataques “sem objetivos”, como o que se verificou em Cabul, neste dia 31.
O mesmo comunicado salienta que “o Emirato Islâmico (denominação dos talibãs) condena os ataques levados a cabo contra civis e em que se verificam baixas civis sem um objetivo claro”.
Na verdade, na última década só um atentado suicida em Kandahar (a segunda cidade afegã), a 17 de fevereiro de 2008, que fez mais de 100 mortos e várias dezenas de feridos, ultrapassou o número de vítimas mortais do ataque deste dia 31 em Cabul, a capital afegã.
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O porta-voz da polícia de Cabul, Basir Mujahid, citado pela BBC, disse à EFE que um camião armadilhado explodiu numa estrada muito movimentada ao início da manhã e perto da embaixada da Alemanha. E acrescentou que “é difícil dizer qual era o alvo exato do atentado”, visto que, naquela zona, se situam várias embaixadas, edifícios do governo e o Palácio Presidencial. Segundo este elemento policial, as primeiras investigações indicam que o veículo foi carregado com explosivos detonados numa zona onde se verifica sempre uma grande concentração de tráfego. Porém, apesar de o atentado ter sido perpetrado perto da embaixada alemã, o seu objetivo ainda não é conhecido, pelo que toda a zona foi isolada e as investigações ainda decorrem. A explosão, que se ouviu em várias zonas da capital, ocorreu a poucos dias depois do início do Ramadão.
Por seu turno, Najib Danish, porta-voz do Ministério do Interior afegão, informou, na sua conta oficial de Twitter, que a explosão decorrente do ataque aconteceu no distrito policial 10, perto da praça de Zanbaq, na área diplomática da capital.  
Como resultado do ataque – disse o Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Sigmar Gabriel – a predita explosão, além de ter provocado danos materiais, feriu funcionários da embaixada alemã e matou um guarda afegão no exterior. Porém, todos os trabalhadores da embaixada estão já em segurança, pois o Ministério ativou um gabinete de crise para lidar com a situação naquela zona e o Ministro já enviou condolências à família do guarda morto.
Sigmar Gabriel disse que os pensamentos do Governo alemão “estão com as famílias e amigos das vítimas”, desejando “aos feridos uma recuperação rápida” e prometendo que o ataque não abalará a determinação alemã em “apoiar o regime afegão com a estabilização do seu país”.
Por sua vez, a Ministra dos Assuntos Europeus francesa, Marielle de Sarnez, declarou à agência Reuters e à rádio Europe 1 que o edifício da embaixada de França ficou danificado, mas não há para já registo de vítimas entre os funcionários.
E a chefe da diplomacia da Índia, no seu Twitter, relata que a embaixada da Índia não registou vítimas nem feridos. Sushma Swaraj escreve que “Graças a Deus, o pessoal da embaixada indiana saiu ileso da enorme explosão de Cabul”. No entanto, segundo embaixador Manpreet Vohra, o edifício sofreu “danos consideráveis”, com “janelas partidas e portas rebentadas”.
A BBC relata que 4 jornalistas seus ficaram feridos, na sequência do ataque que atingiu a carrinha em que seguiam. No comunicado de Twitter, lamenta ainda a morte do condutor da carrinha. Mohammed Nazir – de origem afegã – trabalhava para a estação há mais de 4 anos. E o correspondente da BBC em Cabul descreve cenas caóticas, com dezenas de pessoas transferidas para o hospital.
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O ataque ainda não foi reivindicado, mas a explosão aconteceu depois do anúncio, no final de abril, da “ofensiva de primavera” dos talibãs (que até vieram condenar o atentado), contra as forças estrangeiras no país. Neste momento, os Estados Unidos têm cerca de 8400 tropas (reforço de Trump) destacadas no Afeganistão, a par de outros 5000 soldados de vários países da NATO.
Um ataque recente dos talibãs contra um campo de treino do exército afegão em Mazar-e Sharif provocou a morte a pelo menos 135 soldados, levando o Ministro da Defesa e o chefe de gabinete das Forças Armadas a resignarem aos seus cargos. E, a par dos talibãs, também o autoproclamado Estado Islâmico (Daesh) tem estado ativo no Afeganistão, tendo reivindicado um atentado bombista no início deste mês de maio que teve como alvo uma coluna de veículos da NATO de passagem pela embaixada dos EUA, tendo morrido pelo menos 8 civis no ataque.
Recorde-se que a 23 de julho de 2016, um ataque suicida também em Cabul contra uma manifestação da minoria étnica hazara (de origem mongol e maioritariamente xiita), reivindicado pelo Estado Islâmico (de linha sunita), fez 80 mortos e 231 feridos.
Os dois últimos ataques bombistas de grandes proporções em Cabul, o último no princípio de maio, foram reivindicados pelo Estado Islâmico, mas os talibãs também têm levado a cabo uma série de ataques que provocaram muitos mortos entre a população civil. Assim, em março, um ataque seu contra um posto da polícia de Cabul fez 29 mortos e 122 feridos, a maior parte civis. E, em janeiro, um duplo atentado perto do Parlamento, reivindicado pelos talibãs, causou 30 mortos e 80 feridos.
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O Presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani, condenou veementemente o atentado de Cabul que fez, neste dia 31, pelo menos 90 mortos segundo o último balanço provisório. Segundo as autoridades, o atentado, ainda não reivindicado, foi levado a cabo por um bombista suicida que fez explodir um carro armadilhado numa zona onde se situam várias representações diplomáticas da capital afegã. Uma nota emitida pelo gabinete do Chefe de Estado afegão refere que “os terroristas, mesmo no mês sagrado do Ramadão, no mês de Deus e de oração, não param a matança do nosso povo inocente”.
Também o Paquistão condenou “fortemente o atentado terrorista de Cabul”, acrescentando que a explosão causou a perda de vidas e provocou “muitos” feridos. A declaração do Paquistão refere que o ataque provocou danos em várias residências de diplomatas paquistaneses que sofreram ferimentos ligeiros.
Por seu turno, o Papa expressou suas condolências por este ataque terrorista. Com efeito, um comunicado enviado pelo Secretário de Estado do Vaticano, Cardeal Pietro Parolin, afirma que, “após tomar conhecimento, com tristeza, do abominável ataque em Cabul e dos muitos mortos e feridos graves, o Papa Francisco manifesta as suas sentidas condolências a todos os que foram afetados por este brutal ato de violência”, confiando “as almas dos falecidos à misericórdia do Todo-Poderoso” e assegurando “ao povo do Afeganistão as suas contínuas orações pela paz”.
Também o secretário-geral da ONU, António Guterres, condenou veementemente este atentado bombista, que fez pelo menos 90 mortos e 463 feridos, e pediu intensificação dos esforços na luta contra o terrorismo. O porta-voz do secretário-geral, Stéphane Dujarric, afirma em comunicado que “os ataques indiscriminados contra civis são graves violações dos direitos humanos e da lei humanitária internacional e nunca podem ser justificados”. Expressando repúdio pelo atentado, Guterres sublinhou a “necessidade de reforçar a luta contra o terrorismo e o extremismo violento” e de fazer os responsáveis responder perante a justiça.
Por sua vez, o Conselho de Segurança da ONU condenou igualmente o atentado, classificando-o como um ato “atroz e cobarde” e sublinhando que ocorreu durante a celebração do mês do Ramadão. Em nota enviada à imprensa, lê-se:
“Os membros do Conselho de Segurança reafirmam que o terrorismo em todas as suas formas e manifestações constitui uma das mais graves ameaças à paz e à segurança internacionais”.
O órgão executivo da ONU insistiu também na necessidade de levar diante da justiça os autores e organizadores do atentado, bem como os que o financiaram, e instou todos os Estados “a cooperarem ativamente com o Governo do Afeganistão e com todas as autoridades relevantes a este respeito”. E, por último, reiterou que “qualquer ato de terrorismo é criminoso e injustificável, independentemente do motivo ou do autor, lugar ou momento” em que ocorra.
Por causa do ataque, o Governo alemão anunciou a suspensão do programa de deportações de requerentes de asilo afegãos que viram os seus pedidos recusados. “Os funcionários [da embaixada] têm funções logísticas importantes na receção das pessoas deportadas”, justificou um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Porém, a política de deportações posta em curso pela chanceler Angela Merkel em dezembro não será terminada.
A Amnistia Internacional aproveitou para deixar um apelo a Berlim para que reconsidere a política de expulsões de volta ao Afeganistão de requerentes de asilo cujo pedido não foi atendido. “As deportações não são justificáveis perante estas condições de segurança”, segundo declarou aquela organização de defesa dos direitos humanos.
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Dada a multiplicidade de ataques desta ordem no Afeganistão e um pouco por todo o mundo – recordem-se os ataques recentes em Manchester, no Egito ou no Sudão do Sul, para lá de todos os numerosos e cruéis que se têm lamentado – parece que o terrorismo, revestido de novas cambiantes e refinada crueldade, se torna um mal crónico. Será que temos de aprender a viver com ele? E porque não tentar a eliminação ou a minoração das suas causas? É que, mesmo ante uma doença crónica, os pacientes não se limitam a conviver com ela: tentam minimizá-la pelo estilo de vida, pela adoção de comportamentos de vida saudáveis, pela medicação e pela esperança da eliminação da doença – sem perder a liberdade e o gosto de viver.
Assim se comportam as pessoas-pessoas: de pé face à doença, ao terrorismo e à morte!

2017.05.31 – Louro de Carvalho

terça-feira, 30 de maio de 2017

“Fátima, História e Memória”

A trilogia enunciada em epígrafe foi o tema geral do colóquio comemorativo dos 100 anos das aparições de Fátima que se realizou em Lisboa e em Fátima, respetivamente a 26 e 27 de maio – iniciativa conjunta da Academia Portuguesa de História (APH) e do Santuário de Fátima (SF).
O pano de fundo que revela o escopo do colóquio, constante do desdobrável de promoção do evento, é do seguinte teor:
No ano em que se completa um século sobre as aparições de Fátima, os membros da Academia Portuguesa da História e demais historiadores olham para Fátima como um acontecimento poliédrico, suscetível de ser analisado sob diversas perspetivas que permitem perceber, por um lado, o lugar do fenómeno na História de Portugal e na História do Mundo contemporâneo e, por outro, as diversas abordagens epistemológicas que os investigadores lhe têm votado”.
Assim, durante  e dias a Mensagem de Fátima foi evocada em diversas comunicações como uma “mensagem de paz” por académicos provindos quer do meio clerical quer do mundo dos leigos.
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Dada a diversidade de temas em torno do tema geral, deixa-se a panorâmica geral do evento coordenado pela Presidente da Academia Portuguesa de História, Prof. Doutora Manuela Mendonça, e pelo Diretor do Serviço de Estudos e Difusão do Santuário de Fátima, Doutor Marco Daniel:
A Sessão de Abertura, em Lisboa, a 26, contou com as intervenções do Secretário de Estado da Cultura, Dr. Miguel Honrado, e do Reitor do Santuário de Fátima, Padre Doutor Carlos Cabecinhas.
O primeiro núcleo temático, “O Tempo e o Espaço de Fátima”, mereceu a intervenção, sob o título “Micro e macro-história do acontecimento Fátima’”, de Marco Daniel Duarte, APH e SESDI (Serviço de Estudos e Difusão do Santuário).
Fontes para o estudo de Fátima” foi o segundo núcleo temático que foi abordado na modalidade de painel com intervenções: de Dom Carlos Azevedo, APH e CPC (Conselho Pontifício para a Cultura), sobre “As fontes para a História de Fátima”; de Cristina Sobral, FLUL (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) sobre “As Memórias de Lúcia de Jesus”; e de Maria José Azevedo Santos, APH e FLUC (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), sobre “A escrita da Terceira Parte do Segredo de Fátima”. Seguiu-se o pertinente debate.
Depois do almoço, teve lugar o terceiro núcleo temático, “Fátima e a Primeira República”. António Ventura, APH e FLUL, abordou o tema “A questão religiosa ao tempo da Primeira República”, a que se seguiu o painel com intervenções: de Luís Filipe Torgal, CEIS20/UC (Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX), sobre “O Republicanismo e Fátima”; e de José Poças das Neves, CEF (Centro de Estudos de Fátima), sobre “Ação do poder central e local em Fátima durante a segunda década do século XX”. Depois, veio o conveniente debate.
A Sessão de Boas-Vindas, em Fátima, a 27, foi liderada, por Dom António Marto, Bispo de Leiria-Fátima.
Seguiu-se o desenvolvimento do quarto núcleo temático, “Fátima, o Estado Novo e o 25 de Abril”, com a intervenção de Adriano Moreira, APH, sob o título “Fátima e o tempo do Estado Novo”, a que se seguiu o painel temático com intervenções: de Sérgio Campos Matos, APH, FLUL, sobre “A questão religiosa ao tempo do Estado Novo”; de Paulo Fontes, CEHR/UCP (Centro de Estudos de História Religiosa / Universidade católica Portuguesa), sobre “Fátima, o catolicismo português e a Igreja Católica. Da Segunda Guerra Mundial ao fim da ‘Guerra Fria’”; e de Bruno Cardoso Reis, ICS/UL (Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa), sobre “Fátima, lugar sagrado nacional e global. Do Estado Novo ao 25 de Abril”. Seguiu-se o debate.
Após o almoço, coube o desenvolvimento do quinto núcleo temático, “Fátima e o Discurso Religioso Contemporâneo”, com as comunicações: de Maria Manuela Tavares Ribeiro, APH e FLUC, sob o título “Fátima e os discursos sobre a paz mundial”; e de Dom Manuel Clemente, cardeal patriarca de Lisboa, APH e UCP, sob o título “Fátima no contexto do catolicismo contemporâneo” – seguidas de debate.
A Sessão de Encerramento foi protagonizada pela Presidente da Academia Portuguesa de História e pelo Diretor do Serviço de Estudos e Difusão do Santuário de Fátima, tendo-se prolongado com a entrega da medalha comemorativa do Centenário das Aparições à Academia Portuguesa da História pelo Reitor do Santuário, e com a visita ao Santuário, nomeadamente a exposição temporária ‘As cores do Sol: a luz de Fátima no mundo contemporâneo’, patente ao público no Convivium de Santo Agostinho.
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Enquanto se aguarda a publicação dos trabalhos, ficam algumas considerações genéricas.
Dom António Marto sustenta que “Fátima é um acontecimento que se vai revelando ao longo da história” e “é um ponto incontornável para a história do século XX”.
O Bispo de Leiria-Fátima sublinhou a importância da investigação histórica para evitar “visões redutoras” sobre os acontecimentos de 1917 na Cova da Iria. Por isso, saudou o compromisso da Academia Portuguesa de História nesta organização conjunta com o Santuário, sublinhando que se trata de uma oportunidade “congregadora de diferentes escolas e visões” e que o colóquio possibilita “o cruzamento de olhares e o debate” sobre o fenómeno de Fátima, que, pela sua importância, gera “múltiplas leituras”. Para o prelado, as aparições são um facto incontornável na história da Igreja, de Portugal e do “século XX”, sendo vistas por alguns como a “mais política” de todas as aparições marianas. Por outro lado, Dom António Marto disse que a “significativa adesão” que o tema do colóquio suscitou mostra que “Fátima continua a estar na ordem do dia”.
Também Dom Carlos Azevedo apelou aos historiadores a que sujem as mãos na documentação de Fátima para apuramento da verdade e do rigor do fenómeno fatimita, visto que todos se enriquecem com o rigor da verdade.
O painel do tema “Fátima e o discurso religioso contemporâneo”, com as comunicações de Adriano Moreira e Manuel Clemente, é deveras importante e reveste-se de grande atualidade.
Adriano Moreira professor, académico e político, especialista em Relações Internacionais, apresentou o tema “Fátima e o tempo do Estado Novo”. Frisando que “a parcialidade e rigor da história não podem, todavia, deixar de aceitar valores religiosos”, o professor catedrático jubilado falou da “questão religiosa”, recordando que, durante o Estado Novo, o “receio crescente do avanço do sovietismo” levou ao reforço da “linha católica”.
O antigo Ministro falou da “influência determinante” da Igreja Católica na definição do Estado no Ocidente e dos valores “cristãos” nesta evolução política, em que a humanidade procura “uma nova ordem Internacional”. Neste sentido, assegurou que é importante compreender a progressiva importância de Fátima em relação com a situação internacional do século XX.
Por seu turno, Dom Manuel Clemente, especialista em História da Igreja, abordou o tema “Fátima no contexto do catolicismo contemporâneo”, advertindo que “as linhas que apresento aqui hoje são como uma tentativa de explicação que algo que nos foge, mas toca e perdura”.
Falou dos três pastorinhos, Francisco, Lúcia e Jacinta, da sua santidade, mas sobretudo da sua condição de “pessoas concretas de um país que era o seu”. E referiu que, entre o período de 1917-2017, se pode fazer um recorte temporal, desde “os testemunhos dos pastorinhos até ao que o Papa Francisco nos disse na sua recente visita a Fátima, o tema da paz qualifica a Mensagem de Fátima”.

Também o painel composto por Paulo Fontes, Bruno Reis e Sérgio Campos Matos, que abordaram temas relacionados com “Fátima, o Estado Novo e o 25 de abril”, se revelou de grande interesse. Paulo Fontes, diretor e investigador do Centro de Estudos de História Religiosa na UCP, falou sobre “Fátima, o catolicismo português e a Igreja Católica. Da Segunda Guerra Mundial ao fim da ‘Guerra Fria’”, referindo que “há uma necessidade de a história se debruçar sobre Fátima”, pois “Fátima é também um lugar da modernidade portuguesa” e sublinhando que “Fátima tornou-se um fenómeno de massas, e essa é uma das caraterísticas da sociedade moderna”. Além disso, o investigador acentuou que “a temática da paz afirmava-se, desde do início, como um eixo interpretativo da Mensagem de Fátima”. Com efeito, “no contexto da nova guerra que se desencadeia (II Guerra Mundial), os acontecimentos de Fátima ganham nova ressonância a nível mundial”.

E Bruno Cardoso Reis, mestre em história contemporânea, abordou o tema “Fátima, lugar sagrado nacional e global. Do Estado Novo ao pós-25 de abril”. Começando por referir a importância deste Colóquio “para o reconhecimento de Fátima na História de Portugal”, disse que, “em Fátima, temos um processo interessante e relevante para a história não só do catolicismo, mas também em termos globais”.
Também Sérgio Campos Matos, professor associado com agregação da FLUL, abordou o tema “A questão religiosa ao tempo do Estado Novo”, conjecturando que “podemos falar neste tempo numa questão interior com um certo sentimento de crise e uma perplexidade perante os desafios duma nova modernidade”. Na verdade, no Estado Novo a “relação entre o Estado e a Igreja não foi isenta de conflitos”. E, “se observarmos o comportamento religioso português no século XX, encontramos dois lados divididos em Portugal: há um grande contraste entre o norte e o sul”.
Por sua vez, Maria Manuela Ribeiro, professora catedrática na FLUC, apresentou uma comunicação sobre o tema “Fátima e os discursos sobre a paz mundial”. Segundo o que referiu, “em 1917, um ano difícil para todos os países, reforçam-se os desejos da paz, uma paz imediata”, tendo Fátima constituído “uma mensagem e um reforço dessa paz”.
E conseguiu-se o que o Diretor do Serviço de Estudos e Difusão do Santuário de Fátima afirmou à Sala de Imprensa do Santuário de Fátima e à agência Ecclesia, a 23 de maio:
O colóquio trará abordagens diversificadas e de diversos quadrantes, provavelmente até com conclusões divergentes que merecem um debate científico em ordem a uma problematização de um acontecimento histórico que é complexo. As formações e as investigações que os diferentes autores que intervirão têm levado a cabo fazem prever que este colóquio seja um fórum muito frutífero para a historiografia de Fátima.”.
Em suma, pede-se para Fátima rigor histórico, apuramento da mensagem e ardor de Santuário.

2017.05.30 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Há 91 anos, a 28 de maio, abriu-se a via para o Estado Novo

O movimento de 28 de maio de 1926 começou por ser um levantamento militar iniciado no norte do país, mais propriamente em Braga, a que rapidamente aderiu a maioria das unidades do país. Ao constituir-se em golpe de Estado, retirou o poder aos partidos republicanos e foi o primeiro passo para o regime do Estado Novo, que depois veio a denominar de “Revolução Nacional” este acontecimento.
Os anos anteriores foram de instabilidade num país profundamente dividido em termos políticos e sociais, que esteve continuamente à beira da guerra civil e na barra da bancarrota financeira. O 28 de maio abriu caminho à ditadura militar, que sucessivamente deu lugar à ditadura nacional e ao Estado Novo, sendo que este apenas se distinguiu da ditadura por dispor duma Constituição (plebiscitada e não elaborada por Assembleia Constituinte) e dos órgãos formais da democracia: o Presidente da República, o Governo chefiado pelo todo-poderoso Presidente do Conselho de Ministros, a Assembleia Legislativa (não emanada de partidos e que funcionava três meses por ano). Este regime, cuja vigência durou 48 anos, foi derrubado a 25 de abril de 1974.
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O ambiente que levou ao 28 de maio
Cedo a I República (implantada a 5 de outubro de 1910) evidenciou sinais de fragilidade. No horizonte temporal de quase 16 anos, que terminou a 28 de maio de 1926, a República teve 7 parlamentos, 8 Presidentes da República, 39 Governos, 40 chefes de Governo, uma junta constitucional e uma junta revolucionária. Foi um período de instabilidade constante, repleto de agitação social e de ameaças de golpe.
No início dos anos 20 do século XX, depois da I Guerra Mundial, a instabilidade aumentou: além dos graves problemas financeiros (que se agravaram com a participação de Portugal na guerra), os Governos caíam constantemente (foram 23, entre 1920 e 1926) e a agitação social cresceu, com ameaças de atentados e forte atividade anarco-sindicalista. A instabilidade política quase chegou a uma situação de guerra civil (com confrontos entre diferentes unidades militares). Referem-se dois exemplos do ambiente que se vivia e que são prenúncios da revolução de 1926:
Em Lisboa, a 19 de outubro de 1921, no seguimento da demissão do 28.º Governo Republicano, encabeçado por Liberato Pinto, uma milícia de marinheiros e arsenalistas montou uma revolta militar, a Noite Sangrenta,  de que resultou o assassinato, entre outros, de António Granjo, Presidente do Ministério (Governo), Machado Santos e Carlos da Maia (personalidades históricas da Implantação da República).
Depois, eclodiu a revolta de 18 de abril de 1925, contra as instituições da I República, organizada pelo capitão-de-fragata Filomeno da Câmara, pelo general João José Sinel de Cordes, pelo coronel Raul Augusto Esteves e pelo capitão Jaime Baptista. Foi a 1.ª vez, desde 1870, que uma revolta militar foi liderada por um grupo de oficiais com um general no ativo. Estiveram envolvidos 61 oficiais. A revolta foi considerada o primeiro ensaio geral do que foi o 28 de maio, um ano depois.
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O movimento
No meio da evocada instabilidade política, soaram muitos rumores de golpes que corriam. O general Manuel Gomes da Costa foi desde sempre o principal apontado para liderar a revolução.
Estava marcado para o dia 28 de maio, o Congresso Mariano, em Braga, cidade conhecida como a cidade dos arcebispos, pela sua ligação à religião, e uma das mais populosas do país. O evento reunia as principais figuras do conservadorismo católico, descontentes com as medidas anticlericais dos republicanos, entre as quais se destacava Francisco Cunha Leal, na altura líder da União Liberal Republicana. E, Às 6 horas do dia 28, eclodiu a revolução pela mão de Gomes da Costa, que, a par dos militares, logo ganhou o apoio dos civis do Minho. O movimento alastrou rapidamente a outras unidades militares. Aderiram expressa e ativamente as seguintes unidades militares: 1.ª Divisão (Lisboa), 2.ª Divisão (Viseu), 3.ª Divisão (Porto), 4.ª Divisão (Évora), 5.ª Divisão (Coimbra), 6.ª Divisão (Vila Real), 7.ª Divisão (Tomar) e  8.ª Divisão (Braga).
Tendo o golpe começado na ‘cidade dos arcebispos’, em Lisboa, 400 quilómetros a sul, muitos não acreditavam que o pronunciamento militar marcava o início do regime que duraria 48 anos. O vespertino “Diário de Lisboa” (DL) dedicou toda a 1.ª página ao movimento que eclodira e reportava que “à hora que escrevemos estas linhas − 2 da tarde − sabe-se que o movimento está circunscrito à divisão de Braga, que foi revoltada pelo general sr. Gomes da Costa”.
O Governo, garantindo que o movimento não teve repercussão, tomou medidas e declarou ao mencionado vespertino que “não decretaria nenhumas medidas excecionais, para Lisboa, pelo menos, e que a vida normal da cidade não se alterará”. Ademais, o jornal informava que “o conselho de ministros reuniu às 13 horas, no Governo Civil, onde se conservaram desde madrugada o sr. António Maria da Silva e o sr. dr. Barbosa Viana”. E António Maria da Silva, o chefe do Governo, avistou-se com os jornalistas às 13 horas. Estava “sereno e declarou que o movimento será asfixiado em breves horas, não tendo no país repercussão alguma”. Mas não. O golpe militar conduziu à queda da I República.
Afinal, o plano era ambicioso, e a primeira etapa era marchar sobre o Porto, apesar de o destino final ser Lisboa. Gomes da Costa decidiu-se pela reunião de tropas em Santarém; outras, em Mafra, seriam comandadas por Mendes Cabeçadas. Óscar Carmona, que fora Ministro da Guerra em 1923, tinha por missão concentrar forças em Évora. Depois, todos juntos e coordenados seguiriam para Lisboa.
Entretanto, ainda no dia 28, formou-se, em Lisboa, a Junta de Salvação Pública, presidida pelo almirante José Mendes Cabeçadas, que entregou um manifesto a Bernardino Machado, então Presidente da República. A 29 de maio, depois de a guarnição de Lisboa aderir em massa ao movimento e de o general Óscar Carmona assumir o comando da 4.ª divisão do Exército, em Elvas, o Governo de António Maria da Silva apresentou a demissão a Bernardino Machado, após o que Mendes Cabeçadas aceitou o convite do ainda Presidente para formar um Executivo, convite que fez com que Gomes da Costa ordenasse a todas as unidades militares envolvidas no golpe que se retirassem. E, a 31 de maio, Bernardino Machado resignou e preparou-se para um novo exílio.
Mendes Cabeçadas, a 3 de junho, distribuiu funções no Governo. Assim, entregou a Gomes da Costa as pastas da Guerra, Marinha e Colónias; a Ezequiel Pereira de Campos, a da Agricultura; a António de Oliveira Salazar, a das Finanças; a Joaquim Mendes dos Remédios, a da Instrução Pública; e a Manuel Rodrigues Júnior, a da Justiça. Os três últimos ministros, por serem todos professores da Universidade de Coimbra, ficaram conhecidos por “Tuna de Coimbra”.
No dia seguinte, após encontro com Gomes da Costa na Amadora para clarificar o propósito do Governo, Mendes dos Remédios e Manuel Rodrigues voltaram a Lisboa para tomar posse, ao passo que Salazar regressou a Coimbra. O movimento terminou a 6 de junho de 1926, na Avenida da Liberdade (Lisboa,) onde, após tomar posse, Gomes da Costa comandou um desfile militar de 15 mil homens para celebrar a vitória. Começa agora a ditadura militar, que suspende a Constituição de 1911, dissolve o Parlamento e estabelece a censura. Mas um rodopio de lideranças marca os primeiros 40 dias do regime: os destinos do país que estavam confiados a Mendes Cabeçadas veem-no rapidamente destituído por Gomes da Costa. Nova destituição e, às 15 horas de 9 de julho, já existe um novo governo, chefiado por Óscar Carmona. Seguem-se tempos de grande instabilidade e, um ano mais tarde, o Governo publica um manifesto onde faz o balanço da sua ação.
Em 1927, celebrou-se o 1.º aniversário do 28 de maio com feriado nacional, decretado pelo líder máximo do país, Óscar Carmona, que “usando da faculdade” que lhe confere a lei, instituiu o feriado para esse ano pelo decreto n.º 13 665, e ordenou aos “ Ministros de todas as Repartições [que] o façam imprimir, publicar e correr”.
Em 1928, torna-se na ditadura nacional. Óscar Carmona é eleito Presidente da República por sufrágio universal e António de Oliveira Salazar é novamente convidado para a pasta das Finanças, para equilibrar as finanças públicas do país. Salazar tomou posse como Ministro das Finanças no dia 27 de abril e, como referia o DL, “neste momento é a chave não só da vida financeira, mas de toda a vida governativa do país”. E este vespertino perguntava:
“Ninguém o acusará de buscar uma satisfação para a sua vaidade, porque raros homens se têm mostrado mais modestos do que ele − talvez pelo facto de ser um espírito culto, especializado nos problemas da sua pasta (...) Será bem sucedido na sua tentativa para restabelecer a ordem, a moralidade, e a verdade nas nossas finanças?”.
Desta vez, o professor de Coimbra, que em 1926 tutelara a pasta das Finanças por escassos 13 dias, instalou-se em Lisboa com o intuito de ficar. E surge o ditador que moldou o país nas décadas seguintes, com mão de ferro, mas cujo perfil foi perfeitamente construído, sobretudo pelo modernista António Ferro, na imagem messiânica de salvador dum país que persistia na sua ruralidade, na sua ética e no seu imperialismo caseiro.
Em 1932, Salazar foi nomeado presidente do Conselho de Ministros e em 1933 foi referendada uma Constituição, documento fundador do Estado Novo, regime que acabou por se manter até novo pronunciamento militar, a 25 de abril de 1974.
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Nos alvores do Estado Novo
Salazar aceitou integrar a governação desde que lhe garantissem a liberdade de ação e tomada de medidas, ou seja, a capacidade de definir a política geral do país e a chamada supremacia (ditadura das Finanças) sobre as demais pastas. Como contrapartida, o doutor coimbrão não mexeria com poderosos interesses instalados. E surgiu como o demiurgo e o salvador do país que emergia a ruína, dando-lhe voz altissonante com a Exposição do Mundo Português, em 1940, 8.º centenário da Fundação da nacionalidade e 3.º centenário da Restauração da Independência.
Um dos mais célebres discursos doutrinários do salazarismo – “Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Família e a sua moral...” – foi proferido num feriado ocasional, a 28 de maio de 1928. O Estado Novo durou quase meio século, mas relacionou-se ambiguamente com o dia do seu alvor, ou por motivos economicistas ou porque o 28 de maio não celebrava a ascensão de Salazar. Nesse ano, o 28 de maio não foi feriado, nem o seria nos 7 anos subsequentes. Não obstante, Salazar discursou e enunciou algumas bases programáticas de defesa da ditadura:
“Se não fizermos a revolução de cima para baixo, ela virá de baixo para cima, contra tudo o estabelecido”.
Mussolini, o ditador italiano que tinha admiradores em apoiantes da ditadura portuguesa, discursou na Câmara dos Deputados e prometeu manter-se no “poder mais dez ou quinze anos”, como referia “O Século” a 28 de maio de 1927. Para tanto garantiu:
As deportações de políticos, cujo número é muito inferior ao propalado pelos inimigos no regime serão mantidas, pelo menos, até ao ano de 1932”.
Apesar de o 28 de maio não ser habitualmente feriado (foi-o apenas em 1927, 1.º aniversário, e 1936, 10.º aniversário), as realizações aniversárias apresentavam a efeméride como o início duma nova era de ressurgimento nacional que tinha cortado definitivamente com “a anarquia”.
Em 1936, o 10.º aniversário do 28 de Maio foi celebrado com pompa e circunstância e constituiu um marco simbólico da verbalização doutrinária do salazarismo, do Portugal temente a Deus, que não discute, nem questiona os líderes. Carmona decretara o feriado ao abrigo das disposições constitucionais.  
Estas comemorações tiveram o seu momento áureo em Braga, cidade onde 10 anos antes começara o pronunciamento militar. O enviado especial do DL ditou a notícia “pelo telefone” para a redação na capital, dizendo que a cidade de Braga
“Está em festa (...) Por toda a parte flutuam bandeiras e galhardetes e  (...) na Praça da República, junto às arcadas, veem-se dois grandes retratos do Presidente da República e do sr. dr. Oliveira Salazar”.
Às 10,58 horas, o comboio presidencial chegou à estação. O Chefe de Estado, Óscar Carmona, “entrou na cidade sob uma autêntica chuva de flores”. O Presidente do Conselho, que viera de Lisboa com ele, seguia também no “automóvel aberto”. Ambos foram obsequiados com as flores e a costumeira salva de 21 tiros. “O cortejo desfilou numa verdadeira apoteose (...) os sinos das igrejas tocaram ‘A Portuguesa’ e o entusiasmo popular aumentava de instante a instante”. Houve parada militar, cortejo cívico, sacadas e janelas enfeitadas com “ricas colchas de seda e de damasco”. Discursaram: o general Schiapa, o coronel Albino Rodrigues, o capitão Lucínio Presa, o deputado Aberto Cruz. O general Carmona e o Presidente do Conselho abraçaram-se demoradamente, enquanto a multidão os vitoriava em frenesim. E, num discurso transmitido em direto pela Emissora Nacional, um Salazar empolgado e seguro da mensagem que pretendia transmitir aos portugueses que o veneravam ou temiam enunciou a mensagem sobre “as grandes certezas da Revolução Nacional” com estas palavras que marcaram a doutrina moral do regime e a putativa pacificação da Pátria:
“Às almas dilaceradas pela dúvida e pelo negativismo, procurámos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua História; não discutimos a Autoridade e o seu prestígio; não discutimos a Família e a sua moral; não discutimos a glória do Trabalho e o seu dever.”.
As comemorações passaram pelo Porto e encerraram em Lisboa, com a inauguração da exposição documental “Dez anos de Revolução Nacional”. E, em 1937, o SNI (Secretariado Nacional de Propaganda), dirigido pelo ativista António Ferro, ora convertido ao conservadorismo e à tradição, financiou o 1.º filme de António Lopes Ribeiro, “A Revolução de Maio”, com vários registos filmados, nomeadamente o famoso que Salazar proferira sobre as certezas do regime. A trama alertava para as manobras oposicionistas, com António Martinez a encarnar o papel de César Valente, comunista conspirador contra o regime. César era vigiado pela polícia, mas, tendo conhecido Maria Clara, que mantém o nome e a voz na película, cedeu aos ideários políticos, porque a paixão por Maria Clara, menina da ‘situação’, prevaleceu sobre o marxismo.
E o regime avançou apoiando a guerra civil de Espanha, transpondo a II Guerra Mundial numa neutralidade colaborante, ganhando foros aparentes de democracia corporativa e aguentando a guerra colonial – até que o 25 de abril o fez ruir, visando a liberdade e a democracia.

2017.05.29 – Louro de Carvalho

Legislação sobre descentralização estará pronta antes das autárquicas

Desfazendo o equívoco que passara para a comunicação social de que a propalada reforma descentralizadora estaria pronta só depois das eleições para as autarquias locais, António Costa, Secretário-Geral do PS e Primeiro-Ministro, comunicou, ao encerrar em Bragança as jornadas parlamentares do seu partido, que o Governo já fez chegar à ANMP (Associação Nacional de Municípios) onze diplomas, num total de quinze.
Assim, Costa garante que a reforma legal estará pronta a tempo do novo mandato autárquico. Aliás, eu achava estranho que, sendo esta matéria de tal importância, o Governo estivesse a fazer um desnecessário compasso de espera alegadamente para não perturbar a dinâmica eleitoral autárquica. E, sim, o Secretário-Geral do PS, no discurso com que fechou as jornadas parlamentares do PS, assegurou que os autarcas que forem eleitos nas próximas eleições autárquicas (a 1 de outubro) serão a “primeira geração” a governar os municípios e as freguesias com um quadro legal completamente diferente.
Os onze diplomas que chegaram à ANMP devem ser aprovados na Assembleia da República (AR) ainda antes das férias de verão. Com efeito, Costa declarou ao DN a sua intenção de ter todo o pacote legislativo aprovado quando o novo ciclo autárquico se iniciar, incluindo nesse pacote uma nova lei das finanças locais – a qual, porém, só chegará a São Bento depois das férias de verão. E aproveitou o ensejo para confirmar que, a partir do próximo dia 1 de junho, serão revogados todos os cortes de 10% no subsídio de desemprego que fazem com que milhares de beneficiários recebam essa prestação num valor abaixo do IAS (Indexante dos Apoios Sociais), medida que beneficiará cerca de 140 mil pessoas que estavam sob esse risco.
O líder dos socialistas aproveitou ainda a ocasião para – sem se referir aos partidos parceiros do PS na maioria parlamentar de esquerda – se congratular com os resultados da governação, que foram alcançados através de políticas opostas às do Governo PSD/CDS, explicitando:
“Provamos que é possível outro caminho, haver uma alternativa, que produz melhores resultados. Provamos que é possível fazer diferente e fazer melhor. Temos de provar que este resultado pode ser melhorado, beneficiar mais portugueses e mais regiões.”.
Depois, acrescentou:
“Temos de estar ansiosos para resolver os problemas que ainda afetam muitos portugueses. O trabalho não está acabado é preciso continuar com muita ambição. Fingir que os problemas não existem ou adiar soluções não resolve nada.”.
Por outro lado, no discurso de encerramento da Convenção Nacional Autárquica do PS, em Lisboa, a 6 de maio, o Secretário-Geral do PS desafiou os líderes dos restantes partidos com assento parlamentar a esclarecer se acompanham o Governo na proposta da descentralização e se têm vontade política para concretizar esta reforma. Disse:
“Aquilo que eu quero saber, agora que vejo todos os líderes partidários a percorrerem o país, tecendo loas ao poder local democrático, elogiando o excelente trabalho dos autarcas e dizendo que os autarcas são a maior maravilha do mundo, eu quero saber se na Assembleia da República acompanharão ou não acompanharão o Governo para fazermos uma reforma que seja para todo o poder local democrático”.
Costa quer saber, porque tem isso como fundamental, se os partidos têm vontade política para concretizar” a descentralização, em que o executivo tem trabalhado intensamente com a ANMP e a ANAFRE (Associação Nacional de Freguesias) e sobre a qual tem dito, na AR, “que quer o mais amplo consenso possível na aprovação desta reforma”. E, neste sentido, sublinhou:
“Nós queremos concretizar esta reforma, queremos que ela seja concretizada antes das eleições autárquicas para que não seja para o A nem para o B, mas que seja para todos aqueles que, com a total liberdade, os portugueses venham a eleger no próximo dia 1 de outubro”.
Considerando que esta “não pode ser a reforma do PS”, mas que tem que ser uma reforma de todos” por estar seguro de que “juntos fazemos melhor”, entende que deve “entrar em vigor no próximo 1 de janeiro de 2018” para que o seja, “simultaneamente, para todos os municípios e todas as freguesias e não negociado com contratos-programa de acordo com os olhos ou a vontade deste ou daquele” titular do poder autárquico. E, apelando a que não se criem “debates artificiais” na que pensa ser a principal reforma que temos que fazer no nosso Estado, referiu:
“Vai ser na Assembleia da República, onde temos toda a abertura para estudar os projetos-lei que queiram apresentar, para que introduzam alterações às nossas propostas, para que as possam melhorar, para que exijam os estudos que entendam necessário”.
António Costa quer que os municípios e as freguesias “tenham mais e melhores competências” e “mais e melhores meios” que beneficiem todos os que vivem em Portugal, recusando que o Estado se esteja a querer desresponsabilizar. E, embora manifeste um “enorme orgulho no trabalho dos 150 presidentes de câmara e dos 1282 presidentes de junta” socialistas, o líder do PS sabe “que há excelentes autarcas em todos os outros partidos”, pelo que “não se trata de dar mais poder e mais dinheiro às câmaras e freguesias do PS, mas a todas de todo o país”.
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Sobre o desafio lançado aos outros partidos pelo Primeiro-Ministro, o PSD fez saber que a sua postura em sede parlamentar de acompanhamento das intenções do Governo depende do facto de este concitar o consenso dos autarcas em relação à transferência de mais competências para as autarquias.  
Por seu turno, o secretário-geral do PCP defendeu em Peniche, na apresentação do cabeça de lista à câmara municipal, Rogério Cação, uma descentralização para as autarquias diferente da do PS. Para Jerónimo de Sousa, a descentralização do PS “vezes sem conta anunciada, mas tão pouco consagrada, tem servido de pretexto para adiar e inviabilizar a efetiva descentralização que se impunha realizar no país”. Assim, o líder comunista pretende, em alternativa, uma descentralização que “envolva não apenas o poder de executar e pagar, mas também o poder de decidir”, sustentando que “competências sem meios são novos encargos inaceitáveis”.
Nesse sentido, Jerónimo de Sousa defende uma “lei-quadro, que defina com rigor as condições para a transferência de competências para as autarquias, um regime de financiamento baseado numa nova lei das finanças locais, que recupere os níveis de financiamento negados por sucessivos cortes e a criação de regiões administrativas”.
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Uma das áreas mais sensíveis e problemáticas da descentralização é a referente à matéria educativa. A proposta do Governo é para 2018, neste caso para 2018/2019 (respeitando o horizonte dos anos letivos). Porém, deixa alguns setores de fora da descentralização, como se verá adiante.
Competências que a maioria das câmaras municipais só detinham a nível da educação pré-escolar e do 1.º ciclo do ensino básico – por exemplo, a propriedade física das escolas, a tutela do pessoal não docente e a responsabilidade pela Ação Social Escolar, refeições, pequenas e grandes obras nos estabelecimentos, segurança e até a contratação de serviços como a água e eletricidade – vão ser integralmente entregues aos municípios, abrangendo agora todos os ciclos do ensino básico e do ensino secundário. É, pelo menos, este o teor da proposta do governo para a descentralização de competências na educação, documento que o Governo entregou à ANMP.
Nos termos do projeto de diploma legislativo, que prevê a implementação destas medidas a partir do ano letivo de 2018-19, apenas a tutela dos professores e de parte das escolas – algumas escolas agrárias, mas sobretudo as secundárias ora pertencentes à “Parque Escolar” (PE) – ficam fora da lista de recursos físicos e humanos a entregar às autarquias. Isto, apesar de o texto adiantar pouco sobre o modelo e os montantes desta enorme operação de descentralização.
É, porém, de referir que já existe um grupo de autarquias (ronda a centena) com boa parte das competências que o governo quer generalizar. São municípios que, em 2009, assinaram contratos de delegação de competências com o ME (Ministério da Educação), então liderado por Maria de Lurdes Rodrigues, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 144/2008, de 28 de julho, que desenvolve o quadro de transferência de competências para os municípios em matéria de educação, de acordo com o previsto no artigo 19.º da Lei n.º 159/99, de 14 de setembro. 
E há um segundo grupo que abrange um conjunto de 15 concelhos que, em 2015, integraram um projeto-piloto do governo PSD/CDS, assinando contratos interadministrativos com os ministérios da Educação e da Administração Interna, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 30/2015, de 12 de fevereiro, que estabelece o regime de delegação de competências do Estado nos Municípios nas áreas sociais, nomeadamente da educação, com base na Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, que prevê a delegação de competências através de contratos interadministrativos a celebrar entre o Governo e cada um dos municípios. Estão nesta situação os municípios de Águeda, Amadora, Batalha, Cascais, Crato, Maia, Matosinhos, Mealhada, Óbidos, Oeiras, Oliveira de Azeméis, Oliveira do Bairro, Sousel, Vila Nova de Famalicão e Vila de Rei.
Acresce dizer que, nos últimos anos, aquando da construção de novo edifício escolar ou centro escolar, se tem utilizado muitas vezes o figurino do contrato-programa, de que resulta que o município se candidata aos fundos comunitários, oferece a sua comparticipação em dinheiro e/ou em espécie e se assume como dono da obra perante terceiros, entregando-a depois às entidades escolares.
Em termos de modelo, o projeto de proposta do Governo assemelha-se mais aos contratos de 2009 do que aos de 2015, desde logo por deixar a tutela dos professores fora da equação. O anterior governo ainda tentou dar aos municípios competências em matéria de recrutamento de professores e de gestão dos quadros das escolas, mas a medida enfrentou forte rejeição da classe docente. Além disso, os referidos projetos-piloto contemplavam o envolvimento dos municípios na definição de parte dos currículos, uma ideia que não é contemplada neste projeto de decreto governamental, o qual, no entanto, quer que sejam os municípios, mediante o envolvimento dos conselhos municipais de educação, a definir as políticas de combate ao abandono e insucesso escolar. E certamente no quadro da autonomia das escolas, em que pontifica o conselho geral, com a participação de representantes da autarquia respetiva, será descentralizada a flexibilização curricular e organizacional, sendo que 25% do currículo poderá ser definido a nível local.
A exclusão das escolas da PE (cerca de 200) dever-se-á às dificuldades burocráticas e orçamentais que envolveriam a entrega destas escolas às autarquias. A legislação que criou a empresa com o objetivo de requalificação dessas escolas prevê que a mesma fique proprietária dos espaços após as intervenções. O ME paga, através dos estabelecimentos, uma renda anual à PE, sendo a verba usada para amortizar e assegurar o serviço da dívida que, em 2015, excedia os mil milhões de euros. Para se tornarem donas das escolas, as autarquias teriam de assumir tais dívidas.
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No passado dia 15 de maio, decorreu, em Coimbra, uma conferência sobre descentralização, em que estiveram e intervieram diretores de escolas, que não chegaram a ser confrontados com qualquer versão do documento. Entre os diretores, uma das preocupações é que a transferência acabe por retirar às escolas parte da autonomia de que dispõem, nomeadamente a nível da gestão da disponibilidade do pessoal não docente. Com efeito, o diploma aponta para a centralização da gestão de todas as decisões a esse nível nas autarquias, desde o recrutamento à aprovação de mapas de férias. E, no que toca à gestão corrente de recursos humanos, de duas, uma: ou a autarquia ficará com a obrigação de ouvir o diretor de escola/agrupamento ou delega competências no respetivo diretor, não podendo refugiar-se no princípio abstruso de que quem paga manda. Por outro lado, a proposta do Governo entregará às câmaras a gestão de todos os não docentes, incluindo não só o pessoal auxiliar e administrativo, mas também os próprios técnicos, nomeadamente os da educação especial. E esta é uma questão que dificilmente será aceite pelos sindicatos de professores. Uma das exigências destas é que, por exemplo os professores de Língua Gestual Portuguesa, muitos dos quais estão há décadas nas escolas, integrem um grupo de recrutamento próprio enquanto docentes. Atualmente, para efeitos de contratação, são encarados como técnicos superiores. Não se pode nunca deixar de considerar os professores dos grupos de educação especial – os dos grupos 910 (educação especial 1), 920 (educação especial 2) e 930 (educação especial 3) – como professores.
Para os municípios passa também a ação social escolar, mas fora da descentralização de competências para as autarquias fica a distribuição de manuais escolares gratuitos, que se mantém na esfera do ME.
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A proposta para o setor da educação é um dos 11 diplomas setoriais referidos – de um total de 15 previstos – que já foram remetidos à ANMP pelo governo. Além deste, chegaram, entretanto, à ANMP duas propostas relativas à proteção civil, cultura, policiamento de proximidade, estacionamento público, captação de investimento, áreas protegidas, áreas portuárias e praias. E há diplomas que vão já numa 2.ª versão pelo facto de o texto inicial ter merecido reparos da ANMP, vindo o Governo a apresentar a proposta reformulada. É o caso, por exemplo, da segurança contra incêndios.
A ANMP vai apreciar todos os projetos dos novos decretos setoriais. Em paralelo com a negociação que decorre entre o Governo e as Autarquias, a AR está também a discutir na especialidade a proposta de lei-quadro para a descentralização (uma espécie de “lei-chapéu” para a transferência de competências setor a setor). E, para completar o pacote da legislação descentralizadora falta a revisão da Lei das Finanças Locais, que deverá ser o ponto mais difícil da negociação. Costa declarou que a nova lei, que vai enquadrar financeiramente a transferência de novas competências para as autarquias, só chegará ao Parlamento depois do verão.
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Apesar de não ser adepto da descentralização educativa, considero essencial o recrutamento de todos os que desempenham funções docentes ou equiparadas por concurso público nacional e geridos pela escola e pelo ME. Já a questão da autonomia (que se reforça em rede), apenas se desloca da escola para o município e desde que se mantenha intacto o teor do art.º 35.º do ECD, nada há a opor. Porém, pergunto-me: “ No quadro da escolaridade obrigatória de 12 anos, universal e gratuita, quem paga e quem gere a situação dos municípios que não têm oferta de ensino secundário ou têm uma oferta diminuta deste nível de ensino”?

2017.05.28 – Louro de Carvalho