Numa
história de almanaque conta-se que, enquanto o avô escrevia no seu caderno com
um lápis, o neto, que deixara os seus brinquedos, observava com muita atenção
aquele natural e intrigante ato de escrita e, a dada altura, aproximou-se um
pouco e perguntou se o ancião estava a escrever sobre si, criança curiosa e
intrigada.
O
avô respondeu que sim, que estava a escrever sobre o petiz. E, quando o neto se
aproximou ainda mais, o homem, animado da ternura da sabedoria e da paciência,
ensinou-lhe que mais importante que as palavras que estava a escrever, era o
lápis.
O
miúdo não se espantou, a não ser quando o avô atira o voto, mostrando o lápis
ao neto:
–
“Desejo e espero que tu sejas como ele, quando
fores grande”.
Aí,
o menino, olhando para o lápis, replicou que não era nada parecido com aquele
lápis, que este era exatamente igual aos outros lápis que tinha visto e, não
vendo nada nele de especial, perguntou ao avô o que tinha de importante aquele
lápis.
***
E
veio a lição de mestre: “tudo depende do modo como se olha para ele”. E, parando
de escrever, voltou-se para o neto e enunciou as cinco boas qualidades do lápis (a que correspondem outras tantas tentações) que uma pessoa deverá conseguir adquirir e viver para ser um agente do bem e da
paz no mundo – qualidades de que, a seguir, se faz perífrase.
***
Contra
a soberba e autossuficiência
Antes
de mais, deve advertir-se que o lápis pode escrever ou desenhar coisas muito
interessantes e belas, mas nada faria se a mão humana o não orientasse. Sem ela,
o lápis não tem qualquer utilidade.
Assim
acontece com o ser humano, se deixar fechar-se na sua autossuficiência ou se se
arrastar na sua soberba. Com efeito, a soberba da vida, mancomunada com a
vaidade e com o orgulho, constitui o primeiro dos pecados capitais e quebra a interdependência
em relação a Deus e aos outros ou afasta qualquer lampejo de transcendência e
abertura à cooperação. O homem que pensa que por si pode fazer coisas
grandiosas esquece que é conduzido por Deus, que precisa de ajudar os outros e de
receber a ajuda deles e de Deus. É o lápis a querer escrever sem que a mão o
guie. Quer ter e dominar e, se preciso for, leva tudo e todos à sua frente e até
destrói e mata.
***
Contra
a ação obsessiva e asfixiante
O
lápis, para continuar a exercer decentemente a sua função, precisa de parar de
escrever de vez em quando e sujeitar-se à ação do afiador. Aceita que se lhe
corte um pouco, que se lhe diminua o tamanho. Se é certo que perde alguma coisa
ou se sofre metaforicamente, também é verdade que fica mais apto para continuar
a escrever ou a desenhar, pois a acumulação de resíduos ou o embotamento não
permite continuar a desenvolver ação limpa.
Também
cada um de nós, se não aceita parar, fazer um pouco de deserto silencioso, purificar
o espírito, retemperar forças pela meditação, oração e frequência de meios de
reforço da alma ante Deus e a comunidade, sujeita-se a fazer ação atabalhoada,
por impulsos anárquicos e erráticos; cansa-se em demasia; e chega a um ponto em
que não faz nada de jeito, enterrando-se na sujidade criada pela ação sem arejamento.
Por isso, a dinâmica da vida se apoia no círculo vital da
reflexão-ação-reflexão ou, por outras palavras, alimentar-se, trabalhar, repousar,
alimentar-se, trabalhar e repousar. Contra a inatividade do angelismo excessivo
e a obsessão da ação asfixiante e sem a frescura da brisa que passa para agitar
os ares e as águas, postula-se o equilíbrio de vida na reflexão/ação, sabendo
que há tempo para tudo e um tempo para cada coisa.
***
Contra
a obstinação na mediocridade ou no erro
Imaginemos
que um lápis levava a mal que apagássemos o que tinha escrito de modo errado ou
medíocre. Tínhamos o caso da rebeldia, do amuo ou do não reconhecimento de que se
pode cometer um erro e que se deve melhorar sempre. Ora, se de vez em quando o lápis
vai ao encontro do afiador para se afinar, purificando-se, também deve eleger
como companheira a borracha para que esta apague o que estiver errado ou for medíocre.
Há até alguns lápis que vêm com uma das pontas munidas de uma borracha: o lápis
só tem de virar-se!
Também
as pessoas devem saber reconhecer os erros que cometem, as mediocridades em que
incorrem, as distrações de que são vítimas. E, por consequência, devem tomar a iniciativa
de apagar, corrigir, melhorar; e aceitar que, no limite, outros tomem essa
iniciativa. É o que se chama autocrítica e heterocrítica, autocorreção e
correção fraterna – sem amuos, rebeldias ou birras, sem soberba e orgulho e
também sem auto-humilhação ou hetero-humilhação.
***
Contra
o exclusivo da exterioridade e contra a ostentação
No
lápis, o que realmente mais importa não é a madeira ou outro material que se vê
exteriormente, mas a grafite ou mina que está por dentro.
Assim
deve considerar-se na pessoa humana. Não é a aparência que conta mais, a beleza
física, mas o que se passa por dentro, no íntimo, na mente, no coração, no
espírito. O caráter é bem mais importante que o aspeto exterior.
No
entanto, repare-se que a grafite sem o revestimento exterior – madeira,
estrutura metálica (carregável ou não) – o material de escrita ou de
desenho não se aguenta, não está protegido. Por isso, deve cuidar-se dele, mas
tendo a certeza de que, embora necessário, não é o mais determinante na ação do
lápis. Por isso, se pode ver como é feio roer o lápis.
Também
no ser humano, a par do interior, deve cuidar-se do exterior pela higiene,
asseio, boa aparência – para que as outras pessoas não tenham receio de se
aproximarem e para que se tenha permanentemente a noção de que a alma e o espírito
estão protegidos pelo corpo, que não é o burro teimoso de que falam alguns
padres espirituais, mas um meio de subsistência do homem no mundo e, para os cristãos,
um templo do Espírito Santo. Porém, tenha-se a certeza de que se alguma
deficiência o invadir, nem por isso o homem fica diminuído no todo do seu ser. O
essencial é o que não é visível. Não obstante, não se pode autoinfligir
mutilação no corpo nem se deve tolerar que se use o ferimento ou a mutilação
alheia para conseguir os nossos objetivos sou delimitar o nosso território.
Por
outro lado, tudo o que o íntimo pensa, delibera e decreta tem de extravasar em postura
e ação positiva no exterior – corpo e contexto humano e ecológico em que
estamos inseridos. O lápis realiza-se agindo, mas não age para si, mas para outrem.
***
Contra
a presença anódina, que não deixa marca
Não
há lápis que não deixe a sua marca, seja ela mais vincada ou menos reconhecida.
Ainda que a visualização ou a palpação não as topem, as marcas ficam gravadas e
indeléveis.
Do
mesmo modo, todo o ser humano deixa a sua marca – boa ou má – na vida deste mundo.
E é pena que não nos interroguemos de vez em quando que tipo de marca ou traço estamos
a deixar ou que tipo de marca ou traço este ou aquele estão a escrever na
pantalha da vida.
Ao
invés, somos fáceis a julgar-nos inúteis ou a julgar inúteis os outros. Em contrapartida,
muitos há que muitas vezes atribuem a si próprios tudo o que de bom acontece à
sua volta; e aos outros todo o mal de que se dão conta.
Ora,
além da marca genérica de cada um no mundo, convém anotar que tudo o que
fizermos na vida deixará traços e marcas nas outras pessoas – que doem ou que
aliviam, que ferem ou que saram, que beliscam ou que afagam. E convém saber que
isto não é tudo a preto ou tudo a branco: muitas vezes, temos uma intervenção ou
sofremos uma ação positiva; outras, temos uma intervenção ou sofremos uma ação bem
negativa; e a mesma intervenção/ação pode ter marca de bipolaridade.
Portanto,
devemos procurar estar conscientes de que cada ação deixa um legado, marcando
positivamente ou negativamente a vida das pessoas (de
si mesmas e das outras).
Só temos uma vida: esta. Por isso, é preciso vivê-la bem!
***
Conta
o narrador da história alamanaquista que o neto nem pestanejara enquanto o avô
falava. Percebeu a lição e guardou-a para futuro. Deu um abraço ao avô e ficou
a pensar que o lápis deve ser tratado com cuidado, não pode ser roído nem
autodesfazer-se.
Enfim,
as lições devem ser tão aceites como dadas e têm de resultar numa conclusão: mudar
a postura, as atitudes e os comportamentos das pessoas (de
quem aprende e de quem faz aprender),
além de garantir a aquisição de conhecimentos e o desenvolvimento das
capacidades.
Como
é avara a atitude de quem não quer dar lições, a insensatez de quem as não quer
receber e a ingratidão de quem as não reconhece e agradece!
Quanto
se perde daquilo que se ensina sem que tal avaliação algum dia seja feita. É a
vida de quem não reconhece o valor daquilo que faz ou daquilo que recebe. É não
ver as marcas e traços que deixa ou que lhe deixaram. Diria Camões: Mísera sorte, estranha condição!
2017.05.02 – Louro de Carvalho
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