quinta-feira, 25 de maio de 2017

O que significa ser conterrâneo

Fez ontem, dia 24 de maio, 28 anos que ouvi o Professor Doutor Evaristo Fernandes, da Universidade de Aveiro – creio que é de momento um professor jubilado – a falar numa sessão formativa a professores e alunos da então Escola Secundária de Moimenta da Beira (hoje Escola Secundária Dr. Joaquim Dias Rebelo, sede do Agrupamento de Escolas de Moimenta da Beira).
No âmbito da sua intervenção, o orador contou um episódio que, penso eu, pretendia rebater a autossuficiência e a prosápia de muitos, incluindo pessoas que têm a obrigação de abertura ao desconhecido e à ajuda interativa. Ninguém pode tudo, ninguém sabe tudo!
Um professor avisara os alunos de que não deviam utilizar na próxima prova escrita (teste, como se diz hoje) qualquer dicionário e, se algum dos alunos tivesse uma dúvida, que lha expusesse, porque “eu respondo, que eu sei tudo”.
No momento da prova, um aluno pediu a palavra e perguntou: “Ó Professor, o que significa a palavra ‘conterrâneo’?”.
Ao que o professor, meio embasbacado, replicou: “Bem, conterrâneo significa, bom conterrâneo quer dizer… (e ganhou segurança) conterrâneo é aquele que sabe tanto como eu”.
E, coloco-me agora, não apenas na condição de quem lê as notícias de um determinado dia no dia seguinte, que é quando recebe o jornal matutino do dia (Que raio! Todos trazem só as notícias da véspera…), mas também na pele do pregador – que tratava os seus ouvintes por conterrâneos, porque efetivamente o eram – e, não contente com essa condição comum da conterraneidade, contou-lhes aquela historieta. E explicava:
De facto, vós sabeis tanto como eu, porque temos uns e outros a sabedoria haurida na mesma terra que nos fez brotar das mesmas raízes; crescemos a par dos mesmos troncos de árvore ou dos mesmos caules de ervas, arbustos e subarbustos; lidamos com o mesmo tipo de animais, grandes ou minúsculos; bebemos das mesmas águas ou do mesmo vinho; calcorreamos os mesmos caminhos; atravessamos pelas mesmas pontes, os mesmos ribeiros e rios; pastoreamos igualmente os rebanhos e elementos de manada; escondemo-nos nos mesmos vales e atrás dos mesmos montes; fazemos trabalhos semelhantes; e temos a mesma tradição de fé, educação, festejos e usos.
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 Nada em demasia. Mas é de questionar se a mesma aprendizagem, a aquisição dos mesmos conhecimentos e de capacidades similares nos tornam apenas condiscípulos (estudaram juntos, mas facilmente perderam o contacto), não fazendo de nós propriamente conterrâneos. Tudo depende do que entendamos por “saber”, “conhecer”, “terra” e “ser da mesma terra”. 
Muitas vezes confundem-se os termos “saber” e “conhecer”. No entanto, o significado profundo de cada um distingue-se bem. A doutrina cristã estabelece a diferença, nos dons do Espírito Santo, entre ciência como conhecimento e sapiência ou sabedoria. “Ciência” vem do latim “scientia”, do verbo “scire”, que significa; ciência, conhecimento, arte, habilidade, erudição, instrução e, por extensão, saber, sabedoria. Por seu turno, “scire” significa: conhecer, ter conhecimento, ser informado, ver, reconhecer, compreender, perceber, versar uma arte ou uma ciência, decidir, decretar, etc. Porém, “sabedoria” vem do verbo latino “sapere” a cuja família lexical pertence a palavra “sapientia”. E “sapere” significa: ter gosto, ter sabor, ter bom paladar, (fig.: ter senso, ter discernimento) e, por extensão, saber, conhecer, compreender. Da sua família lexical é “sapor”, que significa: gosto, sabor, paladar (fig.: sensatez, razão, gracejo delicado, dito gracioso), o que tem sabor, o que sabe bem, tempero, perfume, aroma. Então, “sapiência” ou “sabedoria” será a capacidade, a aptidão e/ou a atitude de apreciar o que se conhece, a degustação das boas coisas, a fruição, a aptidão pessoal, o bom gosto, o bom paladar, o gosto do conhecimento, a prudência, a moderação, a indulgência, a vontade de entrar gostosamente nos escaninhos duma arte ou duma profissão. O sábio é um abismo de credibilidade, que tem o dom da atração interior. A ciência está para a sabedoria com a cultura para a erudição. O cientista é um especialista ou o detentor de um saber enciclopédico, ao passo que o sábio tem um saber “enciclopedêutico”, interior, ruminado, reflexivo…
“Conhecimento” dizia-se em latim “cognitio”, que significava: o ato de conhecer, a ideia, a conceção, a instrução, a inquirição, o processo, a devassa judiciária, o reconhecimento, a penetração no âmago da realidade e, no sentido bíblico veterotestamentário, a relação conjugal. O nome “cognitio” tem uma relação lexical com o verbo “cognoscere”, que significa: conhecer pelos sentidos ou por experiência, ver, ser informado, saber, reconhecer, aceitar, aceitar alguém como filho, julgar, investigar, passar revista (às tropas), ter relações íntimas, copular.  
“Terra” é um dos quatro elementos primordiais por oposição a “mare” (mar, água), “aer” (ar) e “ignis” (fogo), a terra firme, continente, o globo terrestre, a região, o país, a parte habitável do globo, a terra divinizada como mãe comum. O nome “terra” no latim está relacionado com o verbo “torrere”, que significa secar, enxugar, secar ao sol ou ao lume, assar, tostar. Que seria da terra sem a luz e o calor do sol ou sem a humidade que lhe transmite o mar, o rio ou a nuvem?
Então “ser da mesma terra” significará ser o conteúdo do mesmo habitat, penetrar no mesmo mundo, apoiar-se nas mesmas raízes, abrigar-se às mesmas sombras, cheirar as mesmas fores, saborear os mesmos frutos, lidar com os mesmos animais, apreciar o mesmo conhecimento, partilhar usos, costumes, angústias, alegrias e festas – enfim relacionar-se, sentir as mesmas cumplicidades, ter a mesma sabedoria da vida, sentir-se formado do mesmo pó através da ação amorosa de progenitores semelhantes ou sentir-se acolhido por um mundo de semelhanças e participante nesse numa relação de cumplicidade para lá e acima da relação biológica. O conterrâneo é compatriota e luta pelos mesmos interesses e direitos que os seus vizinhos, próximos ou semelhantes. Nunca se sente desenraizado ou deslocado.
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Chegou a pensar-se que o conterrâneo é aquele que nasceu na mesma terra e ali viveu durante algum tempo. E é verdade. Mas a conterraneidade, sobretudo mos temos que correm, ultrapassa as fronteiras da terra onde nascemos (até porque hoje muitos nascem numa maternidade que pouco lhes ficará a dizer no futuro) e/ou onde vivemos com os pais ou com quem faz para nós as suas vezes. No entanto, cada vez mais a conterraneidade se realiza no lugar onde moramos ou mesmo onde trabalhamos – o que nos dá várias fontes e formas de conterraneidade.
Assim, no meu caso concreto, não posso deixar de me afeiçoar à terra onde nasci e onde viveram os meus pais e outros familiares. E, mesmo que já haja muitas pessoas que já não conheço, ainda se lá reconhecem as velhas raízes e algumas vergônteas vitais. Porém, não posso deixar de acolher a conterraneidade das terras onde estudei (Resende e Lamego), onde trabalhei (Lamego, Vila Nova de Foz Coa, Vila Nova de Paiva, Viseu, Moimenta da Beira e Sernancelhe), onde servi ativamente a Igreja Católica (Sarzeda, Freixinho, Vila da Ponte, Granjal, Regimento de Infantaria n.º 14, Ponte do Abade e Cunha). De tudo isto faço memória nas alegrias e nalguns problemas e recordo as pessoas. Obviamente, agora vivo a síndrome da conterraneidade na dupla Santa Maria da Feira – São João de Ver, por razões profissionais e familiares, nesta diocese do Porto onde o conterrâneo-mor é o Bispo do Porto, que, há três anos, se fixou a frente da Igreja do Porto por disposição eclesial.
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Evidentemente que as recordações mais gratas vêm de Vila da Ponte onde vivi cerca de 21 anos e de que, juntamente com Sernancelhe, Granjal, Ponte do Abade, Freixinho e Cunha, retenho muitas cumplicidades.
E, por isso, volto à historieta que o jubilado Professor da Universidade de Aveiro contou a 24 de maio de 1989. É que nesse dia a conterraneidade em Vila da Ponte foi altamente vergastada com o falecimento da Maria dos Remédios Soares. Talvez tenha sido ela a pessoa, além da relação de consanguinidade por quem chorei mais. Naquela terra, só se lhe igualou para mim a saudade pelo Cónego José Cardoso e pelo Cónego Mário Augusto, pela Leonor, pelo Herménio e pelo Octávio Catarino.
Provavelmente as celebrações a que presidia com maior dificuldade eram as exéquias. Todavia, procurava manter a serenidade, promover o canto litúrgico do Oficio Divino e deixar uma palavra homilética de fé, gratidão, esperança e solidariedade.
A primeira vez que falei com a Maria dos Remédios foi uma tarde de domingo em que ainda não pensava que havia de residir naquela freguesia. Tinha ido ao salão da Casa do Povo a uma reunião de jovens (fora com os do Carregal). Como havia de tomar o autocarro, vi uma senhora que varria a testada do seu café e perguntei-lhe onde parava o autocarro para Lamego, tendo-me ela dito que era em frente da Capela que estava à vista. Entretanto, inseguro, passados uns minutos, voltei para trás e perguntei se o autocarro parava ali mesmo ao domingo. Ela reiterou a informação pela positiva. No entanto, a alguém que passava atirou: “O homem é esquisito, não confia nas pessoas!”. Fiquei contente com a crítica.
A Maria dos Remédios e restante família sempre me acolheram como membro da família. Sofreu muito e faleceu com 46 anos de idade, a 24 de maio de 1989, deixando três filhas, um filho e o marido (que se debate com a enfermidade e cujas melhoras desejo). Todos nos tratamos por iguais, com fraternidade, sentido de família e desejo de bem.
O funeral foi na manhã do dia 26. A Maria confidenciava uma certa confusão quando pensava que seria enterrada. Disso ninguém a livrou. Todavia, a perspetiva de ter um funeral com o povo a rezar e a cantar por si foi concretizada apesar da consternação. O dia entre o óbito e o funeral foi o da solenidade do Corpus Christi. Nesse dia, após a missa, fez-se a procissão do Santíssimo Sacramento pelas ruas da freguesia; e a bênção foi lançada no lugar do Pelourinho, em frente da Capela de São Sebastião, em frente da Capela de Nosso Senhor dos Passos (aquela onde parou o autocarro, mas que deixou de parar) e obviamente na igreja paroquial.
É de justiça fazer-lhe esta memória no 28.º aniversário da sua passagem para o Céu. E é uma forma de celebrar a conterraneidade ou a sabedoria comum e também a minha gratidão pessoal.

2017.05.25 – Louro de Carvalho

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