Fez
ontem, dia 24 de maio, 28 anos que ouvi o Professor Doutor Evaristo Fernandes,
da Universidade de Aveiro – creio que é de momento um professor jubilado – a
falar numa sessão formativa a professores e alunos da então Escola Secundária
de Moimenta da Beira (hoje Escola Secundária Dr. Joaquim Dias
Rebelo, sede do Agrupamento de Escolas de Moimenta da Beira).
No
âmbito da sua intervenção, o orador contou um episódio que, penso eu, pretendia
rebater a autossuficiência e a prosápia de muitos, incluindo pessoas que têm a
obrigação de abertura ao desconhecido e à ajuda interativa. Ninguém pode tudo,
ninguém sabe tudo!
Um
professor avisara os alunos de que não deviam utilizar na próxima prova escrita
(teste,
como se diz hoje)
qualquer dicionário e, se algum dos alunos tivesse uma dúvida, que lha
expusesse, porque “eu respondo, que eu sei tudo”.
No
momento da prova, um aluno pediu a palavra e perguntou: “Ó Professor, o que
significa a palavra ‘conterrâneo’?”.
Ao
que o professor, meio embasbacado, replicou: “Bem, conterrâneo significa, bom conterrâneo
quer dizer… (e
ganhou segurança)
conterrâneo é aquele que sabe tanto como eu”.
E,
coloco-me agora, não apenas na condição de quem lê as notícias de um
determinado dia no dia seguinte, que é quando recebe o jornal matutino do dia (Que
raio! Todos trazem só as notícias da véspera…), mas também na pele do pregador – que tratava os
seus ouvintes por conterrâneos, porque efetivamente o eram – e, não contente
com essa condição comum da conterraneidade, contou-lhes aquela historieta. E
explicava:
De
facto, vós sabeis tanto como eu, porque temos uns e outros a sabedoria haurida
na mesma terra que nos fez brotar das mesmas raízes; crescemos a par dos mesmos
troncos de árvore ou dos mesmos caules de ervas, arbustos e subarbustos; lidamos
com o mesmo tipo de animais, grandes ou minúsculos; bebemos das mesmas águas ou
do mesmo vinho; calcorreamos os mesmos caminhos; atravessamos pelas mesmas
pontes, os mesmos ribeiros e rios; pastoreamos igualmente os rebanhos e
elementos de manada; escondemo-nos nos mesmos vales e atrás dos mesmos montes;
fazemos trabalhos semelhantes; e temos a mesma tradição de fé, educação,
festejos e usos.
***
Nada em demasia. Mas é de questionar se a
mesma aprendizagem, a aquisição dos mesmos conhecimentos e de capacidades
similares nos tornam apenas condiscípulos (estudaram juntos, mas facilmente
perderam o contacto),
não fazendo de nós propriamente conterrâneos. Tudo depende do que entendamos
por “saber”, “conhecer”, “terra” e “ser da mesma terra”.
Muitas
vezes confundem-se os termos “saber” e “conhecer”. No entanto, o significado
profundo de cada um distingue-se bem. A doutrina cristã estabelece a diferença,
nos dons do Espírito Santo, entre ciência como conhecimento e sapiência ou
sabedoria. “Ciência” vem do latim “scientia”, do verbo “scire”, que significa;
ciência, conhecimento, arte, habilidade, erudição, instrução e, por extensão,
saber, sabedoria. Por seu turno, “scire” significa: conhecer, ter conhecimento,
ser informado, ver, reconhecer, compreender, perceber, versar uma arte ou uma
ciência, decidir, decretar, etc. Porém, “sabedoria” vem do verbo latino
“sapere” a cuja família lexical pertence a palavra “sapientia”. E “sapere”
significa: ter gosto, ter sabor, ter bom paladar, (fig.:
ter senso, ter discernimento)
e, por extensão, saber, conhecer, compreender. Da sua família lexical é
“sapor”, que significa: gosto, sabor, paladar (fig.: sensatez, razão, gracejo delicado, dito
gracioso), o que tem
sabor, o que sabe bem, tempero, perfume, aroma. Então, “sapiência” ou
“sabedoria” será a capacidade, a aptidão e/ou a atitude de apreciar o que se
conhece, a degustação das boas coisas, a fruição, a aptidão pessoal, o bom
gosto, o bom paladar, o gosto do conhecimento, a prudência, a moderação, a
indulgência, a vontade de entrar gostosamente nos escaninhos duma arte ou duma
profissão. O sábio é um abismo de credibilidade, que tem o dom da atração
interior. A ciência está para a sabedoria com a cultura para a erudição. O cientista
é um especialista ou o detentor de um saber enciclopédico, ao passo que o sábio
tem um saber “enciclopedêutico”, interior, ruminado, reflexivo…
“Conhecimento”
dizia-se em latim “cognitio”, que significava: o ato de conhecer, a ideia, a
conceção, a instrução, a inquirição, o processo, a devassa judiciária, o
reconhecimento, a penetração no âmago da realidade e, no sentido bíblico
veterotestamentário, a relação conjugal. O nome “cognitio” tem uma relação
lexical com o verbo “cognoscere”, que significa: conhecer pelos sentidos ou por
experiência, ver, ser informado, saber, reconhecer, aceitar, aceitar alguém
como filho, julgar, investigar, passar revista (às tropas), ter relações íntimas, copular.
“Terra”
é um dos quatro elementos primordiais por oposição a “mare” (mar,
água), “aer” (ar) e “ignis” (fogo), a terra firme, continente, o
globo terrestre, a região, o país, a parte habitável do globo, a terra
divinizada como mãe comum. O nome “terra” no latim está relacionado com o verbo
“torrere”, que significa secar, enxugar, secar ao sol ou ao lume, assar, tostar.
Que seria da terra sem a luz e o calor do sol ou sem a humidade que lhe
transmite o mar, o rio ou a nuvem?
Então
“ser da mesma terra” significará ser o conteúdo do mesmo habitat, penetrar no
mesmo mundo, apoiar-se nas mesmas raízes, abrigar-se às mesmas sombras, cheirar
as mesmas fores, saborear os mesmos frutos, lidar com os mesmos animais, apreciar
o mesmo conhecimento, partilhar usos, costumes, angústias, alegrias e festas –
enfim relacionar-se, sentir as mesmas cumplicidades, ter a mesma sabedoria da
vida, sentir-se formado do mesmo pó através da ação amorosa de progenitores
semelhantes ou sentir-se acolhido por um mundo de semelhanças e participante nesse
numa relação de cumplicidade para lá e acima da relação biológica. O conterrâneo
é compatriota e luta pelos mesmos interesses e direitos que os seus vizinhos, próximos
ou semelhantes. Nunca se sente desenraizado ou deslocado.
***
Chegou
a pensar-se que o conterrâneo é aquele que nasceu na mesma terra e ali viveu
durante algum tempo. E é verdade. Mas a conterraneidade, sobretudo mos temos
que correm, ultrapassa as fronteiras da terra onde nascemos (até
porque hoje muitos nascem numa maternidade que pouco lhes ficará a dizer no
futuro) e/ou onde
vivemos com os pais ou com quem faz para nós as suas vezes. No entanto, cada
vez mais a conterraneidade se realiza no lugar onde moramos ou mesmo onde trabalhamos
– o que nos dá várias fontes e formas de conterraneidade.
Assim,
no meu caso concreto, não posso deixar de me afeiçoar à terra onde nasci e onde
viveram os meus pais e outros familiares. E, mesmo que já haja muitas pessoas
que já não conheço, ainda se lá reconhecem as velhas raízes e algumas vergônteas
vitais. Porém, não posso deixar de acolher a conterraneidade das terras onde
estudei (Resende
e Lamego), onde
trabalhei (Lamego, Vila Nova de Foz Coa, Vila Nova de Paiva, Viseu,
Moimenta da Beira e Sernancelhe),
onde servi ativamente a Igreja Católica (Sarzeda, Freixinho,
Vila da Ponte, Granjal, Regimento de Infantaria n.º 14, Ponte do Abade e Cunha). De tudo isto faço memória nas
alegrias e nalguns problemas e recordo as pessoas. Obviamente, agora vivo a
síndrome da conterraneidade na dupla Santa Maria da Feira – São João de Ver,
por razões profissionais e familiares, nesta diocese do Porto onde o
conterrâneo-mor é o Bispo do Porto, que, há três anos, se fixou a frente da
Igreja do Porto por disposição eclesial.
***
Evidentemente
que as recordações mais gratas vêm de Vila da Ponte onde vivi cerca de 21 anos
e de que, juntamente com Sernancelhe, Granjal, Ponte do Abade, Freixinho e Cunha,
retenho muitas cumplicidades.
E,
por isso, volto à historieta que o jubilado Professor da Universidade de Aveiro
contou a 24 de maio de 1989. É que nesse dia a conterraneidade em Vila da Ponte
foi altamente vergastada com o falecimento da Maria dos Remédios Soares. Talvez
tenha sido ela a pessoa, além da relação de consanguinidade por quem chorei
mais. Naquela terra, só se lhe igualou para mim a saudade pelo Cónego José Cardoso
e pelo Cónego Mário Augusto, pela Leonor, pelo Herménio e pelo Octávio Catarino.
Provavelmente
as celebrações a que presidia com maior dificuldade eram as exéquias. Todavia,
procurava manter a serenidade, promover o canto litúrgico do Oficio Divino e deixar
uma palavra homilética de fé, gratidão, esperança e solidariedade.
A
primeira vez que falei com a Maria dos Remédios foi uma tarde de domingo em que
ainda não pensava que havia de residir naquela freguesia. Tinha ido ao salão da
Casa do Povo a uma reunião de jovens (fora com os do Carregal). Como havia de tomar o autocarro,
vi uma senhora que varria a testada do seu café e perguntei-lhe onde parava o
autocarro para Lamego, tendo-me ela dito que era em frente da Capela que estava
à vista. Entretanto, inseguro, passados uns minutos, voltei para trás e perguntei
se o autocarro parava ali mesmo ao domingo. Ela reiterou a informação pela
positiva. No entanto, a alguém que passava atirou: “O homem é esquisito, não
confia nas pessoas!”. Fiquei contente com a crítica.
A
Maria dos Remédios e restante família sempre me acolheram como membro da
família. Sofreu muito e faleceu com 46 anos de idade, a 24 de maio de 1989, deixando
três filhas, um filho e o marido (que se debate com a
enfermidade e cujas melhoras desejo).
Todos nos tratamos por iguais, com fraternidade, sentido de família e desejo de
bem.
O
funeral foi na manhã do dia 26. A Maria confidenciava uma certa confusão quando
pensava que seria enterrada. Disso ninguém a livrou. Todavia, a perspetiva de
ter um funeral com o povo a rezar e a cantar por si foi concretizada apesar da consternação.
O dia entre o óbito e o funeral foi o da solenidade do Corpus Christi. Nesse dia,
após a missa, fez-se a procissão do Santíssimo Sacramento pelas ruas da
freguesia; e a bênção foi lançada no lugar do Pelourinho, em frente da Capela
de São Sebastião, em frente da Capela de Nosso Senhor dos Passos (aquela
onde parou o autocarro, mas que deixou de parar) e obviamente na igreja paroquial.
É
de justiça fazer-lhe esta memória no 28.º aniversário da sua passagem para o
Céu. E é uma forma de celebrar a conterraneidade ou a sabedoria comum e também
a minha gratidão pessoal.
2017.05.25 – Louro de Carvalho
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