quinta-feira, 18 de maio de 2017

Não rogo que os tires do mundo, mas que os livres do mal (Jo 17,15)


Este versículo da oração sacerdotal de Jesus (Jo 17,1-26) sintetiza a condição dos discípulos de Cristo no mundo. Recorde-se que os discípulos de Jesus têm desde os tempos da primeva Igreja de Antioquia a designação de cristãos. E é curioso que se possa notar que esta condição seja definida no quadro de uma oração sacerdotal.
E porque é “sacerdotal” a oração de Jesus que preenche o cap. 17 do Evangelho de João? Justamente por se enquadrar no ser e na missão do sacerdote, assumido de entre os homens para se relacionar com Deus – rezando e oferecendo o sacrifício – em nome e em favor dos mesmos homens. E tem obviamente também a missão profética de falar aos homens em nome de Deus, explicitando-lhes o desígnio divino, denunciando os erros dos homens – pessoais e estruturais – e mobilizando-os para a mudança de vida pessoal e comunitária.
Na verdade, esta oração surge depois da conversa de Jesus à mesa com os discípulos (Jo 13 – 16), durante a qual: lava os pés aos discípulos, em sinal de serviço e assume-se como exemplo de todos (13,1-20); anuncia a traição de Judas e declara o “agora” da glória do Filho e a do Pai no Filho (13,21-32); dá o novo mandamento amor, que será a marca dos discípulos (13,33-35); prediz a negação de Pedro, mas garantindo que este O seguirá mais tarde (13,36-38); fala sobre o céu, onde cada um tem o seu lugar (14,1-15); promete outro consolador e que ele próprio, Jesus, há de voltar (14,16-31); fala sobre a produtividade espiritual na unidade com Cristo, no amor fraterno e na docilidade ao Espírito Santo e sobre o testemunho que os discípulos darão, apesar do ódio do mundo (15,1-27); e fala sobre a missão do consolador – que instruirá os discípulos aquando das perseguições, mudará a tristeza em alegria – e garante a vitória sobre o mundo (16,1-33).
Agora, no capítulo 17, conclui-se o discurso do cenáculo com Jesus a entregar-Se para o sacrifício em que Ele é, simultaneamente, sacerdote e vítima. O sacerdote fazia sacrifícios pelo povo e intercedia por ele. Aqui vemos Jesus a interceder e a preparar-se para a morte.
É interessante vermos o Senhor a orar ao Pai, por Si próprio e pela sua Igreja (os discípulos). A este propósito, Philipp Malengthen diz:  
“Não há voz que jamais foi ouvida, nem no céu nem na terra, mais exaltada, mais santa, mais frutífera, mais sublime do que a oração feita pelo Filho do próprio Deus” (cf MAC’ARTHUR, JOHNS.  http://www.gty.org/Resources/Sermons/90-159_The-Most-Thrilling-Prayer-Ever-Prayed-Part-1).
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A base de sustentação da oração de Cristo pelos discípulos é a sua glorificação e, nela, a do Pai. E a glorificação de Cristo, que chegara, está conexa com a morte, ressurreição e entronização à direita do Pai. Jesus cumpriu o seu papel aqui na terra, o do Verbo encarnado, o Deus encarnado e agora, na sua crucifixão, inicia a glorificação, glorificação de que já tinha falado:
“Jesus respondeu-lhes: ‘Chegou a hora de se revelar a glória do Filho do Homem. Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto. Quem se ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste mundo, assegura para si a vida eterna. Se alguém me serve, que me siga, e onde Eu estiver, aí estará também o meu servo. Se alguém me servir, o Pai há de honrá-lo. Agora a minha alma está perturbada. E que hei de Eu dizer? Pai, salva-me desta hora? Mas precisamente para esta hora é que Eu vim! Pai, manifesta a tua glória!’. Veio, então, uma voz do Céu: ‘Já a manifestei e voltarei a manifestá-la’!” (Jo 12,23-28).
A glorificação de Jesus tem eficácia sobre os eleitos. É obra de Deus Pai e de Deus Filho no Espírito Consolador. Jesus foi enviado para salvar. E tem autoridade sobre todas as coisas, pelo que no texto fala da sua autoridade sobre toda carne, para conceder vida eterna a todos aqueles que o Pai lhe entregou. É a vida que Ele veio dar a todos e a cada um, anelando que a tenham e a tenham em abundância.
A Sua glorificação trará vida eterna aos eleitos. Na verdade, a obra de Cristo é completa, o Pai envia, o Filho redime e dá à vida. A vida consiste na comunhão com Deus, que nos criou para Si mesmo, mas a rebelião do homem quebrou esta união entre Deus e o homem. A vida consiste no conhecimento de Deus e no relacionamento com Ele. Assim, levaremos toda a eternidade a conhecer Deus, tendo com Ele a intimidade de filhos. E isto acontece porque Jesus é o mediador que nos veio reconciliar com o Pai. Deus estava em Cristo a reconciliar consigo o mundo (cf 2 Cor 5,18). Jesus mostra-se como aquele que é o caminho para o Pai, a Verdade e a Vida (Jo 14,6).
A glorificação do Filho consuma a obra do Pai. De facto, a salvação é obra que o Pai confiou ao Filho. E Ele veio e consumou-a. Temos a salvação pela total obediência de Jesus e pelo seu sacrifício vicário. Jesus antecipa, na oração sacerdotal, o seu brado de vitória sobre a cruz, “Consumando a obra”. Na cruz, Jesus bradou: “Está consumado” (Tetélestai). Não resta mais nada a fazer. O que significa algo parecido com alguns usos coevos: quando um pai dava uma missão ao filho e este a cumpria, dizia ao pai, “Tetélestai”; quando se pagava uma nota promissória, batia-se o carimbo, “Tetélestai”; quando se recebia a escritura dum terreno, escrevia-se na escritura “Tetélestai”.
E a glorificação de Cristo finaliza-se com a sua ascensão aos céus para se sentar a direita do Pai. Na verdade, Jesus assume a mesma glória que tinha antes da encarnação e que nunca perdeu. Veio dos céus, onde desfrutava de glória inefável com o Pai desde toda a eternidade. Abriu mão da sua majestade, da sua condição divina, esvaziou-se e humilhou-se a ponto de ser chamado apenas o filho do carpinteiro. Agora, cumprida a sua missão no mundo, volta para o céu para o seu posto de glória, honra e majestade.
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O foco da oração de Jesus são os discípulos: todos aqueles que o pai lhe deu e os que haviam de crer em Jesus. E ora por eles porque:
- Os eleitos não são mais do mundo e o mundo odeia-os. Fazem parte da família divina, visto que Deus os ressuscitou juntamente com Cristo e os faz sentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus. Tal como Cristo não é do mundo, também os discípulos unidos a Ele não o são.
Por conseguinte, como dizia o Cardeal Ratzinger, é preciso “desmundanizar” a fé, entendendo-a à luz do evangelho e expurgando-a das categorias de entendimento segundo o espírito materialista do mundo. O que implica não a fuga do mundo, mas a inserção no meio do mundo para o desmundanizar e tornar verdadeiramente humano segundo o desígnio de Deus. De facto, quando entendemos a economia da salvação, passamos a não fazer parte do sistema do mundo, mas, centrando a fé no Evangelho, seremos candeias para a iluminação do mundo.
Jesus entregou aos discípulos a mensagem que o Pai lhe deu “dei-lhes a tua palavra”, e o mundo odiou-os – mensagem cujo núcleo fundamental diz que Jesus é o Salvador, que morreu pelos nossos pecados. E próprio Senhor Jesus disse que o mundo não conhece a Deus. É por isto que O massacram, que O odeiam e odeiam a quem O segue. Muitas vezes, estes ataques vêm da família, de amigos, dos meios de comunicação social e de tantos outros lugares. Mas Jesus ora ao Pai pedindo, não que nos tire do mundo, mas que nos guarde no mal.
- Jesus ora pela nossa capacitação para vivermos no mundo. Se não somos do mundo e ele nos odeia, como viveremos então aqui? A capacitação para estarmos no mundo é a santificação efetuada pela Palavra de Deus. Com efeito, a verdade é a Palavra de Deus, que os discípulos conheciam.
E, nas suas últimas instruções aos discípulos, o Senhor Jesus promete enviar o Espírito Santo, chamando-o de Espírito da verdade, que os havia de guiar em toda a verdade:
“Quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir” (Jo 16,13).
- Jesus ora pela missão dos discípulos de irem ao mundo, apesar de este os odiar. Do mesmo modo que Jesus foi enviado ao mundo com uma missão, assim Ele envia os discípulos ao mundo com uma missão. Não são do mundo, não são pertença deste mundo, mas têm nele uma missão. Por isso, a reação dos cristãos não deve ser a de retirar-se do mundo, mas a de viver no mundo motivados pelo amor de Deus, procurando imbuí-lo do espírito do Evangelho. Os discípulos devem continuar a missão de Jesus na terra. Para isso é que eles são enviados. O Senhor Jesus tirou-os do mundo, deu-lhes a salvação, capacita-os com a sua palavra para irem pelo mundo e cumprir a missão de serem e fazerem discípulos (Mt 28,19-20).
- Jesus ora pela Sua Igreja. De facto, os discípulos não vivem isolados, mas em fraternidade.
Acima de tudo, Ele reza pela unidade, pois será por ela que o mundo acreditará. Fazemos parte duma comunidade que se chama Igreja, pois a palavra “igreja” (ecklesía) significa comunidade dos “chamados para fora”, ou seja, para fora do sistema do mundo. Não somos mais deste mundo: somos chamados a viver uma vida em unidade como igreja. A unidade cristã fará com que cresçamos e nos aperfeiçoemos, sejamos completos, pois sozinhos não somos completos: precisamos de viver em unidade para sermos completos.
Depois, ora com vista à glorificação futura. Jesus roga ao Pai para que os seus discípulos vejam a sua glória e estejam no céu com ele. Assim, a nossa salvação está segura, o nosso destino está seguro e a obra de Cristo é completa. Já não somos deste mundo, mas estamos no mundo; a capacitação é a palavra do Senhor; temos que viver em unidade; e o nosso destino é certo. E vivemos aqui como estrangeiros aguardando em jubilosa esperança a última vinda de Cristo Salvador. Um dia estaremos face a face com o Senhor, contemplando a sua glória.
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A realização concreta do desígnio expresso na oração sacerdotal de Jesus vem espelhada na carta de Mathetes a Diagoneto (em grego: Πρὸς Διόγνητον Ἐπιστολή), que é provavelmente o exemplo mais antigo de apologética cristã, defendendo o Cristianismo dos seus acusadores. Deste documento do século II (pelo menos) se transcrevem os capítulos V (os mistérios cristãos) e VI (a alma do mundo).
Os mistérios cristãos
Os cristãos, de facto, não se distinguem dos outros homens, nem pela pátria, nem por sua língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam uma língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. A sua doutrina não foi inventada por eles graças ao talento e a especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum ensinamento humano.
Pelo contrário, vivendo em casas gregas e bárbaras, conforme a condição de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida admirável e até paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam em tudo como os outros e suportam tudo como estrangeiros. Toda a pátria estrangeira é pátria deles, e a pátria de cada um é estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põem a mesa em comum, mas não o leito.
Estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm a cidadania no céu; obedecem às leis estabelecidas, mas com a sua vida ultrapassam as leis; amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, apesar disso, condenados; são mortos e, deste modo, é-lhes dada a vida; são pobres e enriquecem a muitos; carecem de tudo e têm abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, tornam-se glorificados; são amaldiçoados e, depois, proclamados justos; são injuriados, e bendizem; são maltratados, e honram; fazem o bem, e são punidos como malfeitores; são condenados, e alegram-se como se recebessem a vida. Pelos judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos; ma aqueles que os odeiam nem sabem dizer o motivo do seu ódio.
A alma do mundo
Em poucas palavras, assim como a alma está no corpo, assim estão os cristãos no mundo. A alma está espalhada por todas as partes do corpo, e os cristãos estão em todas as partes do mundo. A alma habita no corpo, mas não procede do corpo; os cristãos habitam no mundo, mas não são do mundo. A alma invisível está contida num corpo visível; os cristãos são vistos no mundo, mas sua religião é invisível. A carne odeia e combate a alma, embora não tenha recebido nenhuma ofensa dela, porque esta a impede de gozar dos prazeres; embora não tenha recebido injustiça dos cristãos, o mundo odeia-os, porque estes se opõem aos prazeres.
A alma ama a carne e os membros que a odeiam; também os cristãos amam aqueles que os odeiam. A alma está contida no corpo, mas é ela que sustenta o corpo; também os cristãos estão no mundo como numa prisão, mas são eles que sustentam o mundo. A alma imortal habita numa tenda mortal; também os cristãos habitam como estrangeiros em moradas que se corrompem, esperando a incorruptibilidade nos céus. Maltratada em comidas e bebidas, a alma torna-se melhor; também os cristãos, maltratados, a cada dia mais se multiplicam. Tal é o posto que Deus lhes determinou, e não lhes é lícito dele desertar.
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Resta questionar os discípulos de Cristo de hoje – e são tantos os batizados! – sobre se também se reconhecem como os beneficiários da oração sacerdotal do Senhor. Não estarão antes emaranhados no sistema do mundo em vez de respirarem a liberdade do Evangelho, a alegria do Ressuscitado, o mandamento do amor? Em vez da unidade, parece terem cavado a contenda e erigido muros; em vez do amor, fazem a guerra e tiram os outros do mundo, às vezes em nome de Deus; em vez de estarem no mundo e se preocuparem com ele, fogem dele ou mandam-se de barriga para a frente, alienando e alienando-se; em vez da missão, persistem na acomodação; em vez de aceitarem a pureza da mensagem evangélica, acalentam a relação comercial, curandeira  e supersticiosa da religião; em vez do ardor da profecia, caem na rotina, na indiferença e na ridicularização da fé, na perseguição sem razões válidas, mas acomodatícias; e, em vez do zelo pelos pobres e deserdados da sorte e da sociedade, aliam-se ao poder, à riqueza e à visibilidade.
Para onde vai o pequeno rebanho que se quis massificar e perdeu massa e fermento?
Talvez nos reste esperar e acompanhar a força do que rezam constante profundamente e insistem em ser sinal, luz, sal e fermento de Evangelho e contrapõem à podridão do sistema e dos corações empedernidos a força da caridade, da justiça e da paz, a ternura da misericórdia e a entrega na dedicação - em dinamismo sinodal e ecuménico. 

2017.05.17 – Louro de Carvalho

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