Este
versículo da oração sacerdotal de Jesus (Jo 17,1-26) sintetiza a condição dos
discípulos de Cristo no mundo. Recorde-se que os discípulos de Jesus têm desde
os tempos da primeva Igreja de Antioquia a designação de cristãos. E é curioso
que se possa notar que esta condição seja definida no quadro de uma oração
sacerdotal.
E
porque é “sacerdotal” a oração de Jesus que preenche o cap. 17 do Evangelho de
João? Justamente por se enquadrar no ser e na missão do sacerdote, assumido de
entre os homens para se relacionar com Deus – rezando e oferecendo o sacrifício
– em nome e em favor dos mesmos homens. E tem obviamente também a missão
profética de falar aos homens em nome de Deus, explicitando-lhes o desígnio
divino, denunciando os erros dos homens – pessoais e estruturais – e
mobilizando-os para a mudança de vida pessoal e comunitária.
Na
verdade, esta oração surge depois da conversa de Jesus à mesa com os discípulos
(Jo
13 – 16), durante a
qual: lava os pés aos discípulos, em sinal
de serviço e assume-se como exemplo de todos (13,1-20);
anuncia a traição de Judas e declara o
“agora” da glória do Filho e a do Pai no Filho (13,21-32);
dá o novo mandamento amor, que será
a marca dos discípulos (13,33-35); prediz a negação de Pedro, mas garantindo que este O seguirá mais tarde (13,36-38);
fala sobre o céu, onde cada um tem o
seu lugar (14,1-15); promete outro consolador e que ele próprio, Jesus, há de voltar (14,16-31);
fala sobre a produtividade espiritual
na unidade com Cristo, no amor fraterno e na docilidade ao Espírito Santo e
sobre o testemunho que os discípulos darão, apesar do ódio do mundo (15,1-27); e fala sobre a missão do consolador – que instruirá
os discípulos aquando das perseguições, mudará a tristeza em alegria – e
garante a vitória sobre o mundo (16,1-33).
Agora, no
capítulo 17, conclui-se o discurso do cenáculo com Jesus a entregar-Se para o
sacrifício em que Ele é, simultaneamente, sacerdote e vítima. O sacerdote fazia
sacrifícios pelo povo e intercedia por ele. Aqui vemos Jesus a interceder e a
preparar-se para a morte.
É
interessante vermos o Senhor a orar ao Pai, por Si próprio e pela sua Igreja (os
discípulos). A este propósito, Philipp Malengthen
diz:
“Não há voz
que jamais foi ouvida, nem no céu nem na terra, mais exaltada, mais santa, mais
frutífera, mais sublime do que a oração feita pelo Filho do próprio Deus” (cf MAC’ARTHUR, JOHNS. http://www.gty.org/Resources/Sermons/90-159_The-Most-Thrilling-Prayer-Ever-Prayed-Part-1).
***
A base de sustentação da oração de Cristo pelos discípulos é a sua
glorificação e, nela, a do Pai. E a
glorificação de Cristo, que chegara, está conexa com a morte, ressurreição e
entronização à direita do Pai. Jesus
cumpriu o seu papel aqui na terra, o do Verbo encarnado, o Deus encarnado e
agora, na sua crucifixão, inicia a glorificação, glorificação de que já tinha
falado:
“Jesus respondeu-lhes: ‘Chegou a hora
de se revelar a glória do Filho do Homem. Em
verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer,
fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto. Quem
se ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste mundo, assegura
para si a vida eterna. Se alguém me
serve, que me siga, e onde Eu estiver, aí estará também o meu servo. Se alguém
me servir, o Pai há de honrá-lo. Agora a minha alma está perturbada. E que hei
de Eu dizer? Pai, salva-me desta hora? Mas precisamente para esta hora é que Eu
vim! Pai, manifesta a tua glória!’.
Veio, então, uma voz do Céu: ‘Já a manifestei e voltarei a manifestá-la’!” (Jo
12,23-28).
A glorificação de Jesus tem eficácia
sobre os eleitos. É obra de Deus Pai e de Deus Filho no Espírito Consolador. Jesus foi
enviado para salvar. E tem
autoridade sobre todas as coisas, pelo que no texto fala da sua autoridade
sobre toda carne, para conceder vida eterna a todos aqueles que o Pai lhe
entregou. É a vida que Ele veio dar a todos e a cada um, anelando que a tenham e
a tenham em abundância.
A Sua glorificação trará
vida eterna aos eleitos. Na verdade, a obra de
Cristo é completa, o Pai envia, o Filho redime e dá à vida. A vida consiste na
comunhão com Deus, que nos criou para Si mesmo, mas a rebelião do homem quebrou
esta união entre Deus e o homem. A vida consiste no conhecimento de Deus e no
relacionamento com Ele. Assim, levaremos toda a eternidade a conhecer Deus,
tendo com Ele a intimidade de filhos. E isto acontece porque Jesus é o mediador
que nos veio reconciliar com o Pai. Deus estava em Cristo a reconciliar consigo
o mundo (cf 2 Cor 5,18). Jesus mostra-se como aquele que é o caminho para o
Pai, a Verdade e a Vida (Jo 14,6).
A glorificação do Filho
consuma a obra do Pai. De facto, a salvação é obra que o Pai confiou ao
Filho. E Ele veio e consumou-a. Temos a salvação pela total obediência de Jesus
e pelo seu sacrifício vicário. Jesus antecipa, na oração sacerdotal, o seu
brado de vitória sobre a cruz, “Consumando a obra”. Na cruz, Jesus
bradou: “Está consumado” (Tetélestai). Não resta mais nada a fazer. O que significa algo
parecido com alguns usos coevos: quando um pai dava uma missão ao filho e este
a cumpria, dizia ao pai, “Tetélestai”;
quando se pagava uma nota promissória, batia-se o carimbo, “Tetélestai”; quando se recebia a
escritura dum terreno, escrevia-se na escritura “Tetélestai”.
E a glorificação de
Cristo finaliza-se com a sua ascensão aos céus para se sentar a direita do Pai. Na verdade, Jesus assume a mesma glória que tinha antes da encarnação
e que nunca perdeu. Veio dos céus, onde desfrutava de glória inefável com o Pai
desde toda a eternidade. Abriu mão da sua majestade, da sua condição divina, esvaziou-se
e humilhou-se a ponto de ser chamado apenas o filho do carpinteiro. Agora, cumprida
a sua missão no mundo, volta para o céu para o seu posto de glória, honra e
majestade.
***
O foco da oração de Jesus são os discípulos: todos aqueles que o pai lhe deu e os que haviam de
crer em Jesus. E ora por eles porque:
- Os eleitos não são mais do mundo
e o mundo odeia-os. Fazem parte
da família divina, visto que Deus os ressuscitou juntamente com Cristo e os faz
sentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus. Tal como Cristo não é do mundo, também
os discípulos unidos a Ele não o são.
Por conseguinte,
como dizia o Cardeal Ratzinger, é preciso “desmundanizar”
a fé, entendendo-a à luz do evangelho e expurgando-a das categorias de
entendimento segundo o espírito materialista do mundo. O que implica não a fuga
do mundo, mas a inserção no meio do mundo para o desmundanizar e tornar
verdadeiramente humano segundo o desígnio de Deus. De facto, quando entendemos
a economia da salvação, passamos a não fazer parte do sistema do mundo, mas,
centrando a fé no Evangelho, seremos candeias para a iluminação do mundo.
Jesus
entregou aos discípulos a mensagem que o Pai lhe deu “dei-lhes a tua palavra”,
e o mundo odiou-os – mensagem cujo núcleo fundamental diz que Jesus é o Salvador,
que morreu pelos nossos pecados. E próprio Senhor Jesus disse que o mundo não
conhece a Deus. É por isto que O massacram, que O odeiam e odeiam a quem O
segue. Muitas vezes, estes ataques vêm da família, de amigos, dos meios de
comunicação social e de tantos outros lugares. Mas Jesus ora ao Pai pedindo, não que nos tire do
mundo, mas que nos guarde no mal.
- Jesus ora
pela nossa capacitação para vivermos no mundo. Se não somos do mundo e ele nos odeia, como viveremos
então aqui? A capacitação para estarmos no mundo é a santificação efetuada pela
Palavra de Deus. Com efeito, a verdade é a Palavra de Deus, que os discípulos
conheciam.
E, nas suas
últimas instruções aos discípulos, o Senhor Jesus promete enviar o Espírito
Santo, chamando-o de Espírito da verdade, que os havia de guiar em toda a
verdade:
“Quando
vier, porém, o Espírito da verdade,
ele vos guiará a toda a verdade;
porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos
anunciará as coisas que hão de vir” (Jo 16,13).
- Jesus ora
pela missão dos discípulos de irem ao mundo, apesar de este os odiar. Do mesmo modo que Jesus foi enviado ao mundo com uma
missão, assim Ele envia os discípulos ao mundo com uma missão. Não são do
mundo, não são pertença deste mundo, mas têm nele uma missão. Por isso, a
reação dos cristãos não deve ser a de retirar-se do mundo, mas a de viver no
mundo motivados pelo amor de Deus, procurando imbuí-lo do espírito do Evangelho.
Os discípulos devem continuar a missão de Jesus na terra. Para isso é que eles
são enviados. O Senhor Jesus tirou-os do mundo,
deu-lhes a salvação, capacita-os com a sua palavra para irem pelo mundo e
cumprir a missão de serem e fazerem discípulos (Mt 28,19-20).
- Jesus ora pela Sua Igreja. De facto, os
discípulos não vivem isolados, mas em fraternidade.
Acima de tudo, Ele reza pela unidade, pois será por ela que o mundo
acreditará. Fazemos parte duma comunidade que se
chama Igreja, pois a palavra “igreja” (ecklesía) significa comunidade dos “chamados para fora”,
ou seja, para fora do sistema do mundo. Não somos mais deste mundo: somos
chamados a viver uma vida em unidade como igreja. A unidade cristã fará com que cresçamos e nos aperfeiçoemos, sejamos
completos, pois sozinhos não somos completos: precisamos de viver em unidade
para sermos completos.
Depois, ora com vista à glorificação futura.
Jesus roga ao Pai para que os seus discípulos vejam a sua glória e estejam no
céu com ele. Assim, a nossa salvação está segura, o nosso destino está seguro e
a obra de Cristo é completa. Já não somos deste mundo, mas estamos no mundo; a
capacitação é a palavra do Senhor; temos que viver em unidade; e o nosso
destino é certo. E vivemos aqui como estrangeiros aguardando em jubilosa
esperança a última vinda de Cristo Salvador. Um dia estaremos face a face com o
Senhor, contemplando a sua glória.
***
A realização
concreta do desígnio expresso na oração
sacerdotal de Jesus vem espelhada na carta de Mathetes a Diagoneto (em grego: Πρὸς
Διόγνητον Ἐπιστολή), que é provavelmente o exemplo mais antigo de apologética cristã, defendendo o Cristianismo dos seus acusadores. Deste documento do século II (pelo menos) se transcrevem os capítulos V (os
mistérios cristãos) e VI (a
alma do mundo).
Os
mistérios cristãos
Os cristãos, de facto, não se distinguem
dos outros homens, nem pela pátria, nem por sua língua ou costumes. Com efeito,
não moram em cidades próprias, nem falam uma língua estranha, nem têm algum
modo especial de viver. A sua doutrina não foi inventada por eles graças ao
talento e a especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum
ensinamento humano.
Pelo contrário, vivendo em casas gregas
e bárbaras, conforme a condição de cada um, e adaptando-se aos costumes do
lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida
admirável e até paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros;
participam em tudo como os outros e suportam tudo como estrangeiros. Toda a pátria
estrangeira é pátria deles, e a pátria de cada um é estrangeira. Casam-se como
todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põem a mesa em
comum, mas não o leito.
Estão na carne, mas não vivem segundo a
carne; moram na terra, mas têm a cidadania no céu; obedecem às leis
estabelecidas, mas com a sua vida ultrapassam as leis; amam a todos e são
perseguidos por todos; são desconhecidos e, apesar disso, condenados; são
mortos e, deste modo, é-lhes dada a vida; são pobres e enriquecem a muitos;
carecem de tudo e têm abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo,
tornam-se glorificados; são amaldiçoados e, depois, proclamados justos; são
injuriados, e bendizem; são maltratados, e honram; fazem o bem, e são punidos
como malfeitores; são condenados, e alegram-se como se recebessem a vida. Pelos
judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos; ma
aqueles que os odeiam nem sabem dizer o motivo do seu ódio.
A
alma do mundo
Em poucas palavras, assim como a alma
está no corpo, assim estão os cristãos no mundo. A alma está espalhada por
todas as partes do corpo, e os cristãos estão em todas as partes do mundo. A
alma habita no corpo, mas não procede do corpo; os cristãos habitam no mundo,
mas não são do mundo. A alma invisível está contida num corpo visível; os
cristãos são vistos no mundo, mas sua religião é invisível. A carne odeia e
combate a alma, embora não tenha recebido nenhuma ofensa dela, porque esta a
impede de gozar dos prazeres; embora não tenha recebido injustiça dos cristãos,
o mundo odeia-os, porque estes se opõem aos prazeres.
A alma ama a carne e os membros que a
odeiam; também os cristãos amam aqueles que os odeiam. A alma está contida no
corpo, mas é ela que sustenta o corpo; também os cristãos estão no mundo como
numa prisão, mas são eles que sustentam o mundo. A alma imortal habita numa
tenda mortal; também os cristãos habitam como estrangeiros em moradas que se
corrompem, esperando a incorruptibilidade nos céus. Maltratada em comidas e
bebidas, a alma torna-se melhor; também os cristãos, maltratados, a cada dia
mais se multiplicam. Tal é o posto que Deus lhes determinou, e não lhes é
lícito dele desertar.
***
Resta
questionar os discípulos de Cristo de hoje – e são tantos os batizados! – sobre
se também se reconhecem como os beneficiários da oração sacerdotal do Senhor.
Não estarão antes emaranhados no sistema do mundo em vez de respirarem a
liberdade do Evangelho, a alegria do Ressuscitado, o mandamento do amor? Em vez
da unidade, parece terem cavado a contenda e erigido muros; em vez do amor,
fazem a guerra e tiram os outros do mundo, às vezes em nome de Deus; em vez de
estarem no mundo e se preocuparem com ele, fogem dele ou mandam-se de barriga
para a frente, alienando e alienando-se; em vez da missão, persistem na
acomodação; em vez de aceitarem a pureza da mensagem evangélica, acalentam a
relação comercial, curandeira e
supersticiosa da religião; em vez do ardor da profecia, caem na rotina, na
indiferença e na ridicularização da fé, na perseguição sem razões válidas, mas
acomodatícias; e, em vez do zelo pelos pobres e deserdados da sorte e da
sociedade, aliam-se ao poder, à riqueza e à visibilidade.
Para
onde vai o pequeno rebanho que se quis massificar e perdeu massa e fermento?
Talvez
nos reste esperar e acompanhar a força do que rezam constante profundamente e
insistem em ser sinal, luz, sal e fermento de Evangelho e contrapõem à podridão
do sistema e dos corações empedernidos a força da caridade, da justiça e da
paz, a ternura da misericórdia e a entrega na dedicação - em dinamismo sinodal e ecuménico.
2017.05.17 – Louro de Carvalho
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