sábado, 6 de maio de 2017

A rotina como o principal inimigo do sistema educativo

Sara Oliveira postou, a 4 de maio, no educare.pt, um texto de reflexão sobre o sistema educativo com base em declarações ao JL (Jornal de Letras) do ex-Ministro da Educação Roberto Carneiro, que se mostra simultaneamente otimista e preocupado com o estado atual da educação.
O ex-Ministro da Educação (com 9 filhos e 14 netos) é professor associado da UCP (Universidade Católica Portuguesa), consultor de várias organizações internacionais como o Banco Mundial, a OCDE, a UNESCO, a União Europeia. É Presidente da Escola Portuguesa de Macau, apoia o Governo de Timor-Leste no quadro de implementação das Cartas Educativas nos seus 13 distritos. Faz parte do conselho editorial do European Journal of Education e espera terminar uma dezena de livros que estão formatados na sua cabeça há muitas décadas.
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Recordo que a Roberto Carneiro coube a execução da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) aprovada pela Lei n.º 46/86, de 14 de outubro, na vigência do X Governo Constitucional, governo minoritário liderado por Cavaco Silva. E o Ministro da Educação do XI Governo Constitucional, um governo maioritário empossado em 17 de agosto de 1987 e também liderado por Cavaco Silva, provinha da área do CDS/PP, o único partido que não deu o seu aval à dita LBSE (votou contra). Todavia, uma das suas primeiras declarações públicas em resposta aos jornalistas foi que a Lei iria ser cumprida. Obviamente que o Ministro afastou-se cada vez mais do quadrante político donde provinha e passou a ser o obreiro da reforma do sistema.
Assim, criou a chamada Comissão de Reforma do Sistema Educativo (CRSE) cujo Grupo de Trabalho (GT), ao mesmo tempo que lançou um amplo debate nacional, preparou os conteúdos atinentes a cada um dos diplomas de desenvolvimento da LBSE que haviam de ser aprovados e publicados. E não foram poucos. Desses, podem referir-se: o Decreto-Lei n.º 26/89, de 21 de janeiro, que definiu os princípios e os procedimentos da criação das escolas profissionais no âmbito do ensino não superior; o Decreto-lei n.º 43/89, de 3 de fevereiro, que estabeleceu o regime jurídico da autonomia da escola (não aplicável à educação pré-escolar e ao 1.º CEB); o Decreto-lei n.º 286/89, de 29 de agosto, que estabeleceu os princípios gerais da reestruturação curricular; o Decreto-lei n.º 139-A/90, de 28 de abril, que aprovou o estatuto da carreira dos educadores de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário (ECD); o Decreto-lei n.º 74/91, de 9 de fevereiro, que estabeleceu o quadro geral de organização e desenvolvimento da educação de adultos nas suas vertentes de ensino recorrente e de educação extraescolar; e o Decreto-lei n.º 172/91, de 10 de maio, que definiu o regime de autonomia, direção, administração e gestão dos estabelecimentos de educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário (cuja aplicação se circunscreveu a um reduzido número de estabelecimentos); e a respetiva legislação complementar.
Obviamente que a experiência, as ambições pedagógicas e sociais e, sobretudo, as constrições financeiras, motivaram profundas alterações legislativas, nem sempre no melhor sentido. Por exemplo, da área-escola e formação complementar, de Roberto Carneiro, passou-se às áreas curriculares não disciplinares (estudo acompanhado, área de projeto e formação cívica), do Ministério inspirado por Ana Benavente, de que resta um pequeno espécime para as escolas que o inscrevam no seu projeto curricular; a disciplina de desenvolvimento pessoal e social, como alternativa à de Educação Moral e Religiosa Católica (ou de outras Confissões) – e para a qual se formaram professores – deu passos ténues e nunca abrangeu as pluralidade das escolas, não sendo hoje sequer mencionada. O ensino profissional entrou de chusma nas escolas secundárias perdendo a identidade na mediocridade da massificação e conteúdos e na assimilação ao ensino dito regular, com exceção da conversão das horas (de 60 minutos) em tempos letivos, resultando daqui um aumento significativo do somatório de tempos letivos. O ECD metamorfoseou-se com a Ministra Rodrigues num documento insuportável, embora mitigado pela Ministra Alçada. E os diplomas da definição dos regimes jurídicos da autonomia e da direção, administração e gestão dos estabelecimentos de educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário tardaram a generalizar-se: só o Decreto-lei n.º 115-A/98, de 4 de maio é que generalizou o novo modelo, mas o conselho de escola deu lugar à assembleia de escola e o diretor passou a constituir uma alternativa, pouco selecionada, ao diretor executivo – e um e outro passaram a ser eleitos por um colégio alargado de eleitores (professores, pessoal não doente, pais e alunos do secundário). Foi Rodrigues quem impôs o figurino único de diretor escolhido, através de procedimento concursal, pelo conselho geral (sucedâneo da assembleia).
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Voltando a Roberto Carneiro, o político e académico, que só foi ministro durante um mandato (Já lá vão 26 anos!) assegura que “um sistema educativo sem chama está condenado à rotina”, que é, do meu ponto de vista, o grande inimigo da escola, da educação, da pessoa e da sociedade. Em entrevista ao JL, sustenta que a educação não pode viver fechada num compartimento político e defende que a sociedade deve ser ouvida. Diz ele ao JL:
“Um sistema educativo sem anima, sem chama interior, está condenado ao funcionamento rotineiro, sob ‘dictats’ ministeriais, e ao progressivo esmorecimento da sua força primeira – o potencial da mola humana que arregimenta – que compete a todo e qualquer responsável político acarinhar e fazer brotar no máximo para a tarefa inacabada de propiciar o surgimento de um mundo novo a partir da instância social mais decisiva a seguir à família: a escola”.
O seu professado otimismo estriba-se no facto de os indicadores internacionais demonstrarem que as competências dos alunos portugueses não são inferiores às dos seus pares internacionais, no percurso educativo das últimas décadas, na reputação dos portugueses lá fora, nos empregos que ocupam, nos lugares que conquistam, nos elogios que recebem e por sentir que as políticas de longo prazo começam a ser olhadas como prioridades.
Não obstante, mostra-se preocupado com o atual estado da educação no país, em razão do desânimo vivido nas escolas, sobretudo no que afeta a classe docente, advertindo que “esse estado de alma é o fator mais corrosivo de qualquer esforço de modernização ou de melhoria educacional”. Mas também o preocupa o descontinuar do programa Novas Oportunidades, sem qualquer substituição válida no sistema, bem como o discurso recorrente de que o investimento em educação já é suficiente, pelos cálculos que tentam demonstrar que a rentabilidade nesta área não será positiva com mais reforços financeiros. 
E aquele que foi Secretário de Estado da Educação em 1980 e 1981 e Ministro da Educação de 1987 a 1991 está preocupado com a sucessão de ministros que pensam apenas em levar por diante “projetos” ou “vagas ideias”, sem escutar o que a sociedade quer e ambiciona. Neste aspeto, afirma:
“Assisto, constrangido, ao irresponsável aniquilamento de décadas de trabalho através de medidas impensadas, esquecendo-se de que mais difícil e demorada é a reconstrução por inteiro do que a fácil e instantânea demolição de um edifício”.
E lamenta:
“Instalou-se uma certa ideia de que é inútil continuarmos a pugnar por um alargamento a 100% da escolaridade secundária, com a consequente massificação do 1.º ciclo de estudos superiores ou por um reforço de investimento na qualificação da população ativa e adulta”. 
Por isso, Carneiro advoga para o país um pacto educativo. Mas, porque o pacto não surge de um dia para o outro, é preciso, na sua perspetiva, atender a vários fatores, a diferentes realidades, sendo fundamental perceber que a educação não pode estar confinada a forças políticas e partidárias e que a sociedade tem uma palavra a dizer nesta área. Além disso, é preciso avaliar seriamente, através de entidades idóneas, nacionais e estrangeiras, as políticas públicas antes de acabar com elas ou propor a sua modificação nas escolas. E, para um pacto educativo, têm que debater-se exaustivamente os temas para que a comunidade se consciencialize do bem público educacional e da necessidade de definir estratégias de fundo. Contudo, o ex-Ministro vê neste caminho muitas etapas e desafios. Antes de mais, importa não parar a modernização do sistema educativo, estar na dianteira da Europa, não abrandar o investimento em educação; depois, há que alterar, nas próximas duas décadas, o atual paradigma educativo que, a seu ver, é ainda semelhante ao importado da produção industrial do século XIX. A este respeito, explicita:
“Isto significa libertar a escola da síndroma unificadora preferida pelos sistemas centralizados de perfil napoleónico e de gestão burocrática, evoluindo para escolas autónomas, restituídas às respetivas comunidades de pertença e dominadas pelo modelo da abertura à vida e ao meio envolvente, marcadas pela inovação constante como fator diferenciador e de mais-valia institucional”. 
Por outro lado, assegura que é fundamental abrir as portas às novas tecnologias, exemplificando com Singapura, Finlândia, Coreia do Sul – países bem posicionados nos resultados do PISA, que aceitam naturalmente a geração tecnológica em contexto educativo. E afirma:
“Tal leva à modificação radical dos comportamentos docentes que passam a estar comprometidos com o ‘ajudar a aprender’ muito mais do que com o ‘ensinar’ aulas repetitivas em que o aluno é votado à passividade”. 
Da Finlândia, destaca o facto de permitir às escolas deixar o currículo de disciplinas e enveredar por aprendizagens multi e transdisciplinares em torno de grandes temáticas da vida real. 
E referindo que, na sua perspetiva, é uma tolice querer deixar o nome associado a uma grande reforma, adverte:
“Na realidade, nem a megarreforma é necessária hoje, nem o sistema educativo tolera mais mudanças ditadas do topo por decreto governamental, nem as comunidades educativas – pais, professores, autarcas, empresários, sindicatos, etc. – devem continuar a ser paternalisticamente tratadas pelo poder central como se de destituídos ou incapazes se tratassem”. 
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Também é notícia que apenas 6 agrupamentos de escolas – por três anos – têm “luz verde” para testar medidas pedagógicas a partir do próximo ano letivo, no âmbito da tão propalada flexibilização curricular e tendo em conta as 10 competências-chave e os demais pressupostos do “Perfil do Aluno para o Século XXI”. Podem dividir turmas, fazer menos testes, redistribuir conteúdos das disciplinas, acabar com os três períodos escolares.
O Projeto-Piloto de Inovação Pedagógica (PPIP), criado pela tutela, permite várias alterações redistribuir os conteúdos das disciplinas por ciclos, dividir turmas, criar áreas curriculares, ter dois e não três períodos no calendário escolar, diminuir o número de testes, apostar numa avaliação contínua e qualitativa e investir na inovação pedagógica. O objetivo maior é eliminar, de forma gradual, as retenções e reprovações, dado que Portugal continua a ser um dos países da OCDE com mais alunos que já chumbaram pelo menos uma vez antes dos 15 anos. 
Pedro Cunha, Subdiretor da Direção-Geral da Educação (DGE), entidade que coordena este projeto-piloto, em declarações ao Expresso, explica o que se pretende:
“As escolas podem optar por fazer a sua gestão na distribuição dos tempos, dos programas e das metas, desde que garantam que os alunos adquirem as competências previstas em cada final de ciclo. Ou podem criar áreas curriculares próprias”. 
Os agrupamentos escolares do Freixo, em Ponte de Lima, do Cristelo, em Paredes, da Marinha Grande Poente, em Leiria, Fernando Casimiro Pereira da Silva, em Rio Maior, de Vila Nova da Barquinha, em Santarém, e de Boa Água, em Sesimbra – todos com mais de 7500 alunos – são as unidades orgânicas selecionadas para testar as medidas pedagógicas e modelos de organização escolar diferentes do que estão a ser aplicados neste momento. Terão liberdade e autonomia, mas todos os passos terão de ser devidamente fundamentados e caminhar no sentido da eliminação progressiva das retenções. E Pedro Cunha avisa:
“Não se trata de decretar a transição obrigatória dos alunos, nem de decretar a erradicação da retenção. Trata-se de dar a estas escolas todas as opções de que precisem para agir preventivamente e assim eliminar, de forma progressiva, a retenção e o abandono escolar, garantindo que todos os alunos aprendem.”. 
Este programa de autonomia reforçada leva os agrupamentos selecionados a definir e propor os projetos que julguem mais adequados para eliminar as retenções e estancar o abandono escolar. São escolas com problemas distintos, localizadas em meios urbanos e rurais, com taxas de insucesso diferentes. E os projetos que se revelarem eficazes poderão ser replicados noutros estabelecimentos de ensino. E, porque as realidades não são iguais e os agrupamentos podem propor vários caminhos e alternativas, Pedro Cunha dá um exemplo de reorganização de conteúdos, uma das matérias que as escolas escolhidas podem trabalhar:
“Atualmente, a Revolução Industrial é tratada em várias disciplinas, em anos diferentes, em ciclos diferentes. Estas escolas podem condensar o tema num determinado momento e colocar várias disciplinas e trabalhá-lo de forma integrada, evitando repetições.”. 
Mais: as alterações são extensíveis à constituição das turmas, dado que a atual configuração tem debilidades. Por isso, o predito Subdiretor-Geral diz:
“A unidade turma é algo completamente burocrático. Nada nos diz que aquele grupo de alunos é o melhor possível e que deve trabalhar junto ao longo de todo um ano letivo ou de um ciclo. Se os alunos têm interesses e necessidades diferentes, pode ser útil desconstruir essa organização e partir as turmas em vários grupos.”. 
De modo similar pode suceder ao calendário escolar. Cunha diz que é possível repensar a avaliação com base em 3 períodos escolares – com 2 testes cada um e a classificação final. Podem os agrupamentos criar mais momentos de avaliação formativa ao longo do ano e não tanto quantitativa.
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Posto isto, pergunto-me se é nisto que consiste o propalado regime de transição, alegadamente imposto pela Presidência e a que o ME se terá acocorado – só seis agrupamentos. Depois, interrogo-me sobre quanto tempo demorará a generalização do regime de flexibilização curricular. Recordo que a generalização do Decreto-lei n.º 192/91, de 10 de maio, nunca foi levada a cabo. E mantém-se a preocupação do ME em manter o ‘dictat’ diário a acompanhar a dita autonomia, censurado por Carneiro (É o medo da autonomia que tira poder à tutela e que dá muito trabalho à escola!). Além disso, é legítimo questionar se e quem impôs às escolas dois testes por período. Não terá sido, antes, a pressão dos encarregados de educação e da sociedade? Recordo que, em tempos, se lia nas informações sobre avaliação, no site do ME, que não era obrigatória a avaliação através de testes, cabendo à escola determinar como proceder na avaliação. Mas todos gostam da quantificação escrita… Naturalmente que a avaliação deve aferir e melhorar as aprendizagens, não devendo as aprendizagens ser desenvolvidas em função da avaliação. Deve pôr-se a tónica na ajuda a aprender e não adestrar para o teste!
Quanto ao exemplo apresentado pelo referido Subdiretor-Geral, dá-me a impressão de que esquece o caráter cíclico e ampliante da aprendizagem – o que leva a alguma repetição em conformidade com os contextos. Nada na educação é só a preto e branco!

2017.05.06 – Louro de Carvalho

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