sexta-feira, 12 de maio de 2017

Nossa Senhora dos Coletes e Nossa Senhora do Ar

A referência à invocação de Nossa Senhora com estes dois títulos, entre os muitos – que espelham os diversos rostos da Mãe de acordo com as necessidades dos seus filhos, no dizer do Papa Francisco – tem a ver com o gesto curioso de muitos peregrinos que rumam a pé a Fátima e com esta peregrinação do Pontífice argentino.
A historiazinha de Nossa Senhora dos Coletes resume-se num pequenino segmento discursivo, mas cheio de significado e revelador da idiossincrasia do peregrino português.
Com efeito, criou-se, na aldeia de Saramago, da freguesia da Caranguejeira, no concelho de Leiria, uma espécie de santuário popular onde se amontoam coletes refletores e outras dádivas. A imagem representa Nossa Senhora de Fátima e tem vulgarmente a designação de Nossa Senhora dos Coletes porque a maior parte das dádivas é constituída por coletes utilizados pelos peregrinos que vão a pé a Fátima. Porém, chegados ali, àquele sítio, entre o concelho de Pombal e o de Leiria, que marca o início da última etapa da caminhada, os milhares de peregrinos que vêm do Norte, veem ali o lugar de paragem obrigatória. E muitos, perante aquela imagem de Nossa Senhora de Fátima, como que sentindo ali já os odores do Santuário de Fátima, oferecem à Virgem o colete de peregrino tal como dantes se deixavam como ex-voto objetos de uso pessoal ou de devoção: vela, imagem de santo ou de santa, retrato de pessoa ou de animal, quadro que assinalava a cura ou a colmatação de necessidade premente…
O local, como explicou ao DN Joel Silva, que há vários anos ajuda um grupo de amigos de Valença, no alojamento e transporte de bagagens até Fátima, “é uma proximidade que lhes faz bem, numa altura em que já vêm muito cansados”. A imagem e o que a envolve impressionam: centenas de coletes amontoam-se em seu redor, juntamente com mochilas, lenços, T-shirts, fotografias e outros adereços. Uma placa em granito explica do que se trata – foi oferecida a Cabora Bassa, Moçambique, “mas devido aos acontecimentos de 25 de abril de 1974, não pôde chegar ao seu destino. Foi então oferecida para o Brasil por intermédio de uns jovens da T.F.P. que, tendo dificuldade no seu transporte, resolveram pô-la num local onde passassem os peregrinos a pé para Fátima”. Assim, Nossa Senhora dos Coletes é a imagem de Nossa Senhora de Fátima que nunca chegou a Cabora Bassa, mas ali presta o primeiro consolo ao peregrino.
A imagem terá sido ali colocada a 13 de agosto de 1990, data da peregrinação dos emigrantes a Fátima. Mais tarde, a 13 de maio de 1992, na comemoração dos 75 anos das aparições, foi colocada uma placa que explica a história da imagem.
E, quando, no final dos anos 90, foi aconselhado aos peregrinos o uso de coletes refletores, os grupos começaram a deixá-los como sinal de agradecimento. Assim, todos os anos, são deixados naquele local milhares de coletes. Luísa Ribeiro, 44 anos, vinda da Guarda, integrando um grupo de 20 pessoas (que todos os anos repete este caminho), questionada quando ali depositava o colete, explicou: “Agora também já estamos perto e é de dia, não me há de fazer falta”.
Parece que o cansaço se dissipa e os peregrinos reganham força para rumarem ao Santuário com mais alegria, maior sensação de paz interior e melhor disponibilidade para o interior.
***
Também hoje, ao verem a aterragem do Papa em Monte Real, comentavam o seu cansaço. Entretanto, o contacto com as pessoas, a estada em segurança, os cantares e a oração na capela da Base Aérea n.º 5, dedicada a Nossa Senhora do Ar e o contacto com as crianças, alguns doentes e deficientes parecem ter abolido o cansaço. Talvez também os cânticos marianos executados por crianças e por um grupo de cadetes da Academia da Força Aérea lhe tenham feito sentir por antecipação o toque da multidão fatimita e os esplendores do Santuário. Por outro lado, a Capela da Imaculada Senhora do Ar parece ter funcionado com a antecâmara do Santuário de Fátima, o da Virgem do Coração Imaculado, tal como a Senhora dos Coletes para os caminhantes.
Recorde-se a predita Capela foi edificada em 1941 sob a responsabilidade do Aeroclube de Leiria, que ocupava os terrenos que passaram depois a aeródromo militar até à inauguração da Base Aérea n.º 5. E a Capela, que servia a população da localidade de Serra do Porto de Urso, passou a servir a Força Aérea – militares e família. A capela era dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Entretanto, como ficou adstrita à Força Aérea, também a Virgem passou a ser ali invocada como Nossa Senhora do Ar, a designação da padroeira da Aviação.
O primeiro contacto de Francisco com a população portuguesa na sua visita apostólica decorreu efetivamente com militares e suas famílias, bem como funcionários da Base Aérea de Monte Real, onde aterrou, interagindo sobretudo com crianças e pessoas com deficiência.
Após o encontro com o Presidente da República, o Papa seguiu num carro elétrico aberto (ladeado pelo Ordinário Castrense, Dom Manuel Linda) até à Capela, em ritmo lento, recebendo flores, beijando crianças e bebés que algumas pessoas lhe iam apresentando, e abandonou mesmo a viatura para cumprimentar uma idosa de cadeira de rodas. Demorou-se, depois, a saudar crianças, algumas com necessidades especiais, que beijou e tocou nas faces com as suas mãos.
Uma das crianças, uma menina com um laço azul nos cabelos, tinha dois bonecos na mão, em que o papa pegou, simulando que os dois bebés de brincar davam beijos um ao outro.
Em seguida, Francisco deteve-se um pouco mais a falar a com um grupo de crianças que lhe pediram um autógrafo no livro “Querido Papa Francisco”.
O Papa deu alguns passos num tapete formado por flores preparado para a sua passagem à entrada da Capela de Nossa Senhora do Ar, onde tinham rezado Paulo VI e João Paulo II, e junto da qual cantava o Coro dos Cadetes da Academia da Força Aérea.
Logo no início deste trajeto, Francisco já tinha ouvido outro cantar entoado em português, por um grupo do Colégio de Nossa Senhora de Fátima, em Leiria, cujos versos dizem: “Francisco, tu és para nós / A aurora de um tempo novo / A força da tua voz / é a esperança do teu povo”.
***
Saramago e Monte Real fizeram-me lembrar a peregrinação dos israelitas ao Templo. No meio de perigos, fadiga e outras vicissitudes da caminhada, parecia-lhes que a Cidade do Templo nunca mais se tornava próxima. Porém, quando da última colina avistavam a Cidade e o Templo, a sensação de esquecimento e o cansaço cessavam e novo vigor e nova alegria se apoderava dos peregrinos e eles entoavam alegre e esperançosamente o seguinte salmo de peregrinação:
Alegrei-me quando me disseram:
“Vamos para a casa do Senhor”.
Detiveram-se os nossos passos,
Às tuas portas, Jerusalém.

Jerusalém, cidade bem edificada,  
Que forma tão belo conjunto!
Para lá sobem as tribos,
As tribos do Senhor,
Segundo o costume de Israel,  
Para celebrar o nome do Senhor;
Ali estão os tribunais da justiça,  
Os tribunais da casa de David.
Pedi a paz para Jerusalém:
Vivam seguros quantos te amam.
Haja paz dentro dos teus muros,
Tranquilidade em teus palácios.

Por amor de meus irmãos e amigos,
Pedirei a paz para ti.
Por amor da casa do Senhor nosso Deus,
Pedirei para ti todos os bens.
   
Sl 122/121

Ficava a Cidade assim envolvida pela ternura dos peregrinos que suspiravam pelo santuário.

***
Dias antes da chegada do Papa, o ambiente do santuário, habitualmente pacato e calmo, parecia respirar alguma tensão e agitação. Na verdade, a confluência e complexidade das circunstâncias – a celebração centenária das Aparições e a visita papal – sob o signo de eventual ameaça terrorista pesam de forma visível sobre os responsáveis políticos e religiosos. Depois, é grande, muito grande a ansiedade com que tantos querem estar presentes naquele lugar nestes dias que não é fácil congraçar a segurança com a liberdade do acesso de todos à celebração do mistério e à concretização dos desígnios da peregrinação.
Por outro lado, é de urgir o equilíbrio entre o lugar proeminente de Maria na economia da salvação e na religiosidade – iluminada pela fé cristã – dos crentes que visitam o seu Santuário e o papel primacial do Sucessor de Pedro. Nem me digam que este Papa não tem o mesmo poder de atração que o Papa polaco ou a sua devoção mariana. Será menos teatral… Mas quem não estranhou o silêncio profundo e prolongado que ele criou e manteve ante a imagem da Virgem das Aparições – silêncio por si e pela multidão? A tensão dos dias anteriores deu hoje lugar à aclamação, aos cantares, ao silêncio, à oração (Que terá dito a Senhora a Francisco naquele dialogo silencioso e vice-versa?), à ovação!  
Nem se diga que não tem a riquíssima intelectualidade de Bento XVI ou a sua profundidade teológica, aliás por quem tenho a máxima consideração. De outro modo, como é que se compreenderia que o Papa Francisco se tenha tornado, para crentes e não crentes, cristãos ou não cristãos, “um fenómeno de liderança global e uma influência moral e ética inultrapassável com efetiva capacidade de influência, como assegura Cristina Azevedo no JN de ontem, dia 11? Pena é que o aplaudam sem o seguirem.
Bem diz Anselmo Borges ao afirmar que este Papa combina o melhor do jesuitismo com o melhor do franciscanismo: organizador e líder como jesuíta e simples, próximo e apaixonado pelos outros como o Pobrezinho de Assis; apostado na quebrada da excessiva hierarquização da veneranda soberania católica, tentando ‘impor’ a “reorganização sinodal onde o pensamento das comunidades, muito mais próximo da realidade tenha um eco real”, numa “dinâmica de regresso ao espírito que nos mostram as primeiras comunidades cristãs” em alívio, alegria e esperança; portador de sinais concretos de relevo do sentido de ternura e proximidade ao abrir o caminho a um acolhimento a todos; sem medo de ruturas; a mostrar uma imagem de despojamento e simplicidade; a querer uma Igreja em saída.
No mundo impante de escuridão, a figura branca e bondosa de Francisco, similar da imagem branca da Imaculada Mãe de Deus, impõe-se muito para lá das ovelhas que ele apascenta e que Ela conforta.
Por isso, em vez da tentativa de comercialização do “ar engarrafado” de Fátima ou das garrafas de água de Fátima, é urgente que respiremos o ar livre e aromático do Santuário e cheiremos a doutrina, peregrinação, genuíno Evangelho repartido por todos, em especial pelos pobres e desprotegidos; e nos purifiquemos na fonte da água lustral e nos dessedentemos a sério.
***E que, enquanto Senhora dos Coletes, Maria receba, em vez do colete, receba o nosso coração; e, como Senhora do Ar, nos ajude a definir rotas de divulgação ágil do evangelho da justiça, da fraternidade e da paz.   

2017.05.12 – Louro de Carvalho


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