terça-feira, 9 de maio de 2017

A hierofania fatimita

Muito se tem falado e escrito a propósito de Fátima e da peregrinação de Francisco ao Santuário em ano de centenário. As vozes e os escritos são de naturezas diferentes em conformidade com a complexidade do fenómeno fatimita e com a liberdade de investigação e de opinião sobre a matéria.  E, se tudo deveria ser entendido na perspetiva da justa hermenêutica, o certo é que alguns aproveitam o ensejo para disparar contra algumas distorções do aproveitamento do caso, dando a entender que estas configuram a essencialidade do acontecimento que ali decorreu e com as consequências do hoje e para o futuro – o que está longe de ser verdade.
É claro que Fátima tem de ser entendida no quadro da fé. Todavia, mesmo para lá deste quadro, a movimentação para o Santuário e a permanência nele podem interessar dos pontos de vista antropológico, sociológico e do turismo. Em todo o caso, esta reflexão tem a ver com aquilo que, em meu entender, deve ser retido em relação à hierofania fatimita.
Antes de mais, importa estabelecer que o caso “Fátima” constitui um exemplo de hierofania enquanto séria manifestação do sagrado. E isto é válido quer se considere o santuário e a peregrinação que se desenrola rumo ao Santuário, quer se considere a mensagem, quer se considere a visão ou visões que os videntes terão construído a partir das imagens fornecidas pela aparição ou aparições. Por outro lado, há que reafirmar o que é reconhecido por todos: Fátima, com as aparições e a mensagem com elas conexa não integra necessariamente o núcleo da revelação. A revelação pública terminou com a morte do último apóstolo e está compendiada na Sagrada Escritura, cuja formulação humana, inspirada por Deus, resulta da tradição que as comunidades foram construindo ao longo dos séculos e que, enquanto fator de interpretação da Escritura, continua na tradição eclesial (Não confundir com a tradição eclesiástica, que acumula um conjunto de descobertas e aquisições, úteis se fizerem o incremento da fé). Esta força eclesial encontra-se na doutrina dos Padres da Igreja e nas definições dogmáticas do Magistério extraordinário da Igreja: Concílios ecuménicos e Sumos Pontífices, quando definem solene e explicitamente matérias atinentes à fé e aos costumes. À revelação pública os crentes devem aceitação e obediência.
Quanto às revelações privadas, não se pode a ninguém impor a sua aceitação e a consequente obediência como condição para a integralidade do conteúdo da fé. Nem vale a pena argumentar com o facto de não bastar o dogma para a salvação, sendo necessário viver em conformidade com a verdade em que se crê. Não se pode, assim, impor a ninguém uma mensagem resultante de revelações privadas. Porém, como estas revelações privadas têm em vista acentuar um ou outro ponto específico da mensagem evangélica e acontecem para fomentar a intensificação da vivência da fé e das consequências que ela acarreta, os crentes deverão prestar-lhes a atenção que a prudência aconselhar. Por seu turno, os líderes da comunidade, designadamente os pastores, devem manter uma atitude contida, se não for de adesão, a não ser em sede de pesquisa e reflexão teológica, onde tem de se articular a sensata reflexão com o rigor da investigação.
É este o caso da mensagem de Fátima. Os crentes não são obrigados a aceitá-la por imperativo da revelação, mas são aconselhados a fazê-lo por força da prudência, uma vez que a autoridade da Igreja sujeitou a mensagem a um processo de credibilização, de que inferiu nada haver contrário ao Evangelho, mas antes a chamada a atenção para alguns dos seus pontos essenciais. Assim, o acento na penitência e oração radica no evangelho do Reino. Basta recordar como se inicia a pregação de Jesus segundo o Evangelho de Marcos: “Jesus foi para a Galileia, e proclamava o Evangelho de Deus, dizendo: ‘Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho’.” (Mc 1,14-15). Sobre a necessidade da oração, recorde-se, por exemplo, o que diz o Evangelho de Lucas enquadrado pelo versículo: “Depois, disse-lhes uma parábola sobre a obrigação de orar sempre, sem desfalecer” (Lc 18,1). Em relação à prevalência de Jesus Cristo, à conversão e remissão dos pecados, veja-se o que recomenda Pedro no fim do discurso pascal no dia de Pentecostes:
“Deus estabeleceu como Senhor e Messias a Jesus por vós crucificado. Convertei-vos e peça cada um o batismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados; recebereis, então, o dom do Espírito Santo.” (At 2,36.38; cf Lc 24,47; Jo 20,23).
No atinente à oração de intercessão, tenha-se em conta por exemplo, a recomendação de Paulo: Exorto, pois, antes de tudo, que se façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens(lTm 2,1); a recomendação de Jesus: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5,44); e a recomendação de Tiago:
Orai uns pelos outros para serdes curados. Meus irmãos, se algum de vós se extravia da verdade e alguém o converte, saiba que aquele que converte um pecador do seu erro salvará da morte a sua alma e obterá o perdão de muitos pecados.” (Tg 5,16.19-20).
No referente à adoração ao Pai, considere-se o que diz Jesus segundo o Evangelho de João:
“Chegou a hora em que, nem neste monte, nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. Mas chega a hora – e é já – em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são assim os adoradores que o Pai pretende. Deus é espírito; por isso, os que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade.” (Jo 4,21.24).
Em relação à Eucaristia, atente-se nos relatos que atestam a entrega de Jesus, em corpo e sangue, no mistério do pão e do vinho e no mandato da ação em sua memória (vd Mt 26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,14-20; Jo 6,51-59; 1Cor 11,23-27).
No que diz respeito ao Espírito Santo, veja-se, por exemplo, o referido em Jo 20,20 (ou At 2,1-13).
Sobre a devoção ao Papa, sucessor de Pedro, veja-se o que fez a Igreja primeva: “Enquanto Pedro estava encerrado na prisão, a Igreja orava a Deus, instantemente, por ele” (At 12,5).
Quanto à oração a Maria, com Maria e por Maria, tenha-se em conta o modo como o Anjo a saudou (vd Lc 1,28), o que lhe disse Isabel (vd Lc 1,42), como Ela rezou (vd Lc 1,46-55), como Ela pediu (“Não têm vinho” – Jo 2,3) e mandou (“Fazei o que Ele disser” – Jo 2,5) e como permaneceu com os discípulos em oração (At 1,14).
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Há entretanto, outra perspetiva a considerar. Independentemente do que ali tenha acontecido, Fátima apresenta um santuário centenário. Ora, há muitos santuários no mundo, a que rumam os peregrinos de forma regular ou extraordinária. E muitos deles nem têm uma origem baseada em aparições nem em mensagens. Alguns até são estribados em lendas que resultaram da devoção que levou a criá-los ou a reconhecê-los. É a devoção que se tornou também culto público em muitos lugares, em referência a Cristo, sob várias invocações, a Maria sob várias designações (decorrentes de mistérios, prerrogativas, lugares, circunstâncias, necessidades – os tais rostos de mãe diversos conforme as necessidades dos filhos, como diz o Papa Francisco), a anjos, mártires, apóstolos e outros santos e santas.
E, como refere a Carta Apostólica Sanctuarium in Ecclesia, “tornar-se peregrinos é uma genuína profissão de fé” e o santuário é o espaço privilegiado para a oração pessoal e grupal, o silêncio reflexivo, a sensação de retiro provisório do mundo, a sensação psicológica de maior proximidade de Deus. Depois, neste local de entrosamento entre a fé simples do povo e a fé esclarecida dos que se deixam guiar pela reflexão teológica e pelo magistério da Igreja, encontra-se o palco propício à ação evangelizadora e catequética – até porque ali convergem, a par de peregrinos com a noção de pertença institucional e prática da vida cristã, muitos e muitas que se deixam seduzir pela curiosidade e pela singeleza do santuário –, à vivência dos sacramentos, sobretudo o da Reconciliação e o da Eucaristia, e ao propósito de vida solidária na justiça e na caridade e no compromisso para com os que mais precisam. Assim, além da oração de agradecimento por benefícios concedidos, súplica para a resolução de problemas existenciais, devem os agentes da pastoral promover a rendibilização do anúncio evangélico, da promoção da formação catequética, artística e cultural, e da reflexão sobre os grandes problemas e necessidades da Igreja e do Mundo.
Seria, pois, uma postura de imprudência pastoral e de desatenção à sensibilidade e às necessidades dos crentes desprezar ou minimizar estes locais de afluência de pessoas – mesmo que os mecanismos comerciais extrapolem especulativamente as necessidades de acolhimento e retemperação de forças dos viandantes ou mesmo que entidades estranhas ao santuário e à peregrinação se aproveitem abusivamente da situação – aspetos que são de corrigir e não podem ser entendidos como óbice à ação pastoral e humanitária.
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Porém, o dado que mais tem aflorado nos últimos tempos, é a natureza do suporte originário do culto no Santuário de Fátima e que, a partir deste, se disseminou por todo o mundo.
Para dizer que as ditas aparições de Nossa Senhora – pouco se fala das do Anjo – ultrapassam o mundo da fisicidade conforme estamos habituados a encará-lo, dizem-se inexatidões, entre as quais se contam as seguintes: “É evidente que Nossa Senhora não apareceu em Fátima”, ou “que o Cardeal Ratzinger, então Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé e ora Papa emérito, no comentário teológico sobre o Segredo de Fátima, não fala em aparições, mas em visões”.
Em relação à primeira asserção, talvez se esteja a incorrer num filosofismo semelhante ao cientificismo positivista do século XIX. Com efeito, o corpo glorioso (de Cristo Ressuscitado ou da Virgem Maria ou dos Santos) não se prende a esta fisicidade, de tal modo que se lhe atribuíram os dotes da impassibilidade, claridade, agilidade e subtilidade. Assim é que Jesus entrou na casa onde eles estavam de portas fechadas, falou com eles e, depois, desapareceu (vd Jo 20,19-23.26-27). Ou, como sucedeu com os discípulos de Emaús, surgiu, acompanhou-os, fez-lhes perguntas, explicou-lhes as Escrituras, sentou-se com eles à mesa e eles reconheceram-no na bênção e na fração do pão, após o que desapareceu (vd Lc 24,13-35). E deu-lhes ordens de pesca, preparou comida e distribui e comeu com eles, deu-lhes instruções sobre o Reino, entregou a Pedro a missão pastoral e desapareceu (cf Jo 21,4-23; Lc 24,36-51; Mc 16,9-19; Mt 28,16-20; At 1,3-9; 1Cor 15,3-8).
E é esta a forma que Jesus, Maria, Anjos e Santos encontram para se tornarem visíveis aos que têm a graça duma revelação particular. Obviamente que Nossa Senhora não teve necessidades de estudar português para falar com Lúcia, mas apontou-lhe a necessidade de ela ir à escola, nem teve que descer por ali abaixo, mas apareceu ou foi vista. E a descida ou a subida configuram um sentido figurado e o modo como a perceção da experiência religiosa o permite.
Em bom rigor, não é verdade que Ratzinger não tenha utilizado a palavra aparição ou aparições. Utilizou o vocábulo duas vezes no mencionado documento.
Todavia, os termos que mais utiliza são visão/visões (creio que 11 vezes), imagem/imagens (creio que 7 vezes) e recorrentemente vidente/videntes. E refere, como é óbvio, a perspetiva teológica da revelação pública e das revelações privadas. Também não foi Ratzinger quem utilizou a palavra visão pela primeira vez, neste contexto. Sempre se falou de aparição em relação à figuração de quem supostamente aparece e de vidente em relação à pessoa (ou pessoas) a quem essa figuração se dirige, que obviamente se chama vidente. Ainda que Ratzinger nunca tivesse utilizado a palavra aparição, porque o teólogo, na sua prudência, prefere a palavra visão, não se pode expurgar do glossário fatimita o termo aparição, pois outros, que são teólogos como Ratzinger, não tiveram pejo em o utilizar. Recordo Paulo VI, na sua homilia em Fátima (1967) ou o Cardeal Bertone, que na introdução ao predito comentário de Ratzinger fala em aparições e sinais e em aparecer. E Bento XVI (o anterior Ratzinger), na sua homilia em 13 de maio de 2010 (dez anos depois do seu comentário teológico), em Fátima, utiliza a palavra visita:
“Mais sete anos e voltareis aqui para celebrar o centenário da primeira visita feita pela Senhora ‘vinda do Céu’, como Mestra que introduz os pequenos videntes no conhecimento íntimo do Amor Trinitário e os leva a saborear o próprio Deus como o mais belo da existência humana”. 
E, no voo de Roma para Fátima, em colóquio com os jornalistas tinha falado em aparição ou impulso sobrenatural.
No entanto, os vocábulos aparição/aparições e visita não podem ser retirados do respetivo contexto, sem o qual o seu sentido não será subscrito nem pelos teólogos nem pelas figuras do magistério eclesiástico. O próprio Bispo de Leiria, Dom José Correia da Silva, autorizou o culto de Nossa Senhora de Fátima e declarou dignos de crédito os testemunhos das três crianças. Nem o devoto Papa Wojtyla – o do Totus Tuus", Maria – arriscou passar além dos sinais.
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Mas Ratzinger, aliás como os demais fatimólogos, segurando-se na primazia da revelação pública sobre as revelações privadas, insiste prudencialmente na palavra visão e cognatas. No entanto, clarifica o sentido de visão nestes contextos. Não é a visão fisicista, de toques, como apertos de mão, beijos ou abraços; não é a visão intelectual, das ideias e raciocínios; mas a visão imaginativa, porque baseada em imagens que levam à doutrina, ao mistério e à mensagem. Não se trata, não obstante, de criação imaginária, sonho ou ficção. Como quase toda a dinâmica bíblica se apoia em imagens, visões e parábolas (e o magistério de Jesus apoiou-se muito em parábolas e imagens), também a mensagem fatimita, partindo do contexto formativo da época e das notícias de conflito, perseguição e guerra, se estriba em imagens (a imagem do inferno como braseiro – ausência de Deus - é tão eloquente e simbólica como a do banquete para significar céu, estado de felicidade plena). Depois, de modo similar ao dos apóstolos em relação à fé no Ressuscitado, também os videntes de Fátima se dispunham a dar a vida pela verdade da mensagem (recorde-se a cena dos sequestro da parte do administrador de Ourém para interrogatório), que atesta o mal no mundo e o martírio da Igreja.
E mais do que a letra da mensagem fatimita ou do segredo (ora totalmente revelado), importa atentar na sua função de incremento da conversão e vivência da fé, com a preocupação pela sorte dos outros. Obviamente, as promessas ameaçadoras e simbólicas (não muito apocalípticas) valem se as pessoas não atenderem aos pedidos da Senhora da Mensagem, que lê na sua perspicácia os sinais dos tempos. Ademais, a mensagem é profética, porque traz, em nome de Deus o apelo à metanoia, à paz e a garantia esperançosa do triunfo do coração e da imaculabilidade.

2017.05.08 – Louro de Carvalho

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