quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Fazer da Bíblia alimento diário do diálogo com o Senhor

 

Para assinalar o 16.º centenário da morte de São Jerónimo de Estridão (nome completo em latim: Eusebius Sophronius Hieronymus), Francisco assinou, neste dia 30 de setembro, a Carta Apostólica “Sacrae Scripturae affectus”. E, na Audiência Geral, apontou o exemplo do Padroeiro dos Biblistas, em diferentes momentos, um dos quais foi a saudação aos peregrinos de língua portuguesa, em que pediu que, “de bom grado”, façamos da Bíblia o alimento diário do diálogo pessoal com o Senhor, para nos tornarmos “colaboradores cada vez mais disponíveis para trabalhar pelo Reino que Jesus inaugurou neste mundo”.

Já aos fiéis de língua espanhola, o Papa saudando, de modo especial, um grupo de sacerdotes do Pontifício Colégio Mexicano que estava no Pátio São Dâmaso, no Vaticano, e que, segundo o Pontífice, seguem o caminho de São Jerónimo ao buscarem a formação integral permanente em Roma “para se conciliar cada dia mais a Cristo, Bom Pastor”, disse:

Hoje lembramo-nos de São Jerónimo, um apaixonado estudioso da Sagrada Escritura, que fez dela o motor e o alimento da sua vida. Que o seu exemplo também nos ajude a ler e a conhecer a Palavra de Deus, ‘porque ignorar as Escrituras é ignorar Cristo(São Jerónimo).”.

Na verdade, neste dia em que morreu o Santo no ano 420, praticamente, com 80 anos de idade, celebra-se a sua memória litúrgica e o seu legado do estudo bíblico e do amor à Palavra de Deus. Com efeito, estudou latim, grego e hebraico para melhor compreender as Escrituras e fazer traduções de muitos textos bíblicos, como a “Vulgata”, a primeira tradução da Bíblia para o latim, obra de um homem com um saber enciclopedêutico (filosófico, teológico, retórico, dialético...).

E o Papa formulou este voto:

Que o exemplo deste grande doutor e pai da Igreja, que colocou a Bíblia no centro da sua vida, desperte em todos um amor renovado pela Sagrada Escritura e o desejo de viver em diálogo pessoal com a Palavra de Deus”.

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A Carta Apostólica começa com a portada a sublinhar que a herança de Jerónimo – sintetizada nas expressões: “o afeto à Sagrada Escritura, um terno e vivo amor à Palavra de Deus escrita” – nos  dá uma chave de leitura indispensável para conhecermos hoje esta figura saliente na história da Igreja e o seu grande amor a Cristo, amor que ramifica “na sua obra de incansável estudioso, tradutor, exegeta, profundo conhecedor e apaixonado divulgador da Sagrada Escritura”, de “intérprete primoroso dos textos bíblicos”, de “defensor ardente e impetuoso da verdade cristã”, de “eremita asceta e intransigente”, bem como de “sábio guia espiritual”.

Na Introdução, em que se regista a visão do divino Juiz que o acusa de ciceroniano e não cristão e lhe provoca a viragem dos estudos clássicos para os estudos bíblicos (que Jerónimo considerava rudes e sem sintaxe), em parte mercê dos contactos com outros Padres da Igreja, o Papa situa-se na linha dos seus predecessores na atenção à Sagrada Escritura, mencionando Bento XV, que lhe dedicou a carta encíclica “Spiritus Paraclitus (15 de setembro de 1920), apresentando-o ao mundo como “doctor maximus explanandis Scripturis (doutor eminente na interpretação das Escrituras), e Bento XVI, que apresentou a personalidade e obras dele em duas catequeses sucessivas. Assim,

Francisco aponta o Santo “como guia seguro e testemunha privilegiada”, com a XII Assembleia do Sínodo dos Bispos, dedicada à Palavra de Deus, e com a exortação apostólica “Verbum Domini”, de Bento XVI, publicada na memória litúrgica, em 30 de setembro de 2010.

Depois, desenvolve os seguintes tópicos: De Roma a Belém; A chave sapiencial do seu retrato; Amor à Sagrada Escritura; O estudo da Sagrada Escritura; A Vulgata; A tradução como inculturação; Jerónimo e a Cátedra de Pedro; e Amar o que Jerónimo amou.

No primeiro tópico, De Roma a Belém, o Pontífice traça o percurso biográfico do escriturista desde o nascimento, estudos e batismo em idade adulta, passando pelo encargo da tradução da Bíblia (da Bíblia Hebraica e dos livros escritos somente em grego) para latim – obra necessária para o Ocidente ao tempo, o que lhe confere o múnus de ponte entre as duas faces geográficas da Igreja Católica – até à vida cenobítica, o contacto com os Lugares Santos e a conclusão da sua tarefa em união com O Senhor, que dele queria tudo, até os pecados para lhos perdoar, na disponibilidade de pôr ao serviço dos outros o saber que foi construindo em comunidade.  

Quanto à chave sapiencial do seu retrato, Francisco atém-se à combinação de duas dimensões caraterísticas: a consagração absoluta e rigorosa a Deus, renunciando a qualquer satisfação humana, por amor de Cristo crucificado; e o empenho assíduo no estudo, visando apenas uma compreensão cada vez maior do mistério do Senhor. É nisto que Jerónimo é modelo. E isto passou para o campo da história da arte, como o Papa ilustra com notável suficiência.

O Amor apaixonado à Palavra de Deus, transmitida à Igreja na Sagrada Escritura, é o traço peculiar da figura espiritual de Jerónimo. Com efeito, se todos os Doutores da Igreja “extraíram explicitamente da Bíblia os conteúdos do seu ensinamento, Jerónimo fê-lo de maneira mais sistemática e, de certa forma, única”. E a sua dedicação total à Escritura manifesta-se numa forma de expressão apaixonada, semelhante à dos antigos profetas, sendo deles que este Doutor “extrai o fogo interior, que se torna palavra impetuosa e explosiva necessária para expressar o zelo ardente do servidor pela causa de Deus”.

O estudo da Sagrada Escritura, fruto do seu amor apaixonado às divinas Escrituras está imbuído de obediência: a Deus, que Se comunicou em palavras que exigem escuta reverente; e, obediência a quantos na Igreja representam a tradição interpretativa viva da mensagem revelada. Porém, não se trata de mera receção passiva do que é conhecido, mas da postura que exige “o empenho ativo da investigação pessoal”. E, nisto, Jerónimo é um intérprete e “um ‘servidor’ da Palavra, fiel e diligente, inteiramente consagrado a favorecer nos seus irmãos de fé uma compreensão mais adequada do ‘depósito’ sagrado que lhes foi confiado”, constituindo-se em guia poderoso ao longo dos tempos e também hoje.

Sobre a Vulgata, diz o Santo Padre que o “fruto mais doce da árdua sementeira” que foi o estudo do grego e do hebraico, feito por Jerónimo, é a tradução do Antigo Testamento em latim a partir do original hebraico. Com efeito, até então, os cristãos do Império Romano podiam ler integralmente a Bíblia apenas em grego, sendo que os livros do Novo Testamento foram escritos em grego. Para os do Antigo, havia uma versão completa, a Septuaginta, mas, para os leitores de língua latina, não havia uma versão completa da Bíblia na sua língua. Coube, pois, a Jerónimo – e, depois dele, aos seus continuadores – o mérito de ter empreendido uma revisão e uma nova tradução de toda a Escritura. O texto final combinava a continuidade nas fórmulas já de uso comum com uma maior aderência ao ditame hebraico, sem sacrificar a elegância da língua latina. E, superada alguma repulsa inicial, “a tradução de Jerónimo tornou-se património comum tanto dos eruditos como do povo cristão: daí o nome de Vulgata.

No atinente à tradução como inculturação, é referido que Jerónimo, com a sua tradução, inculturou a Bíblia na língua e cultura latinas, tornando-se um paradigma permanente para a ação missionária da Igreja, pois, diz o Pontífice, “quando uma comunidade acolhe o anúncio da salvação, o Espírito Santo fecunda a sua cultura com a força transformadora do Evangelho”.

Sendo possível estabelecer uma analogia entre a tradução, enquanto ato de hospitalidade linguística, e outras formas de acolhimento, “a tradução não é um trabalho que tem a ver unicamente com a linguagem, mas corresponde verdadeiramente a uma decisão ética mais ampla, que está ligada com a visão inteira da vida”. E Jerónimo teve de se opor ao pensamento dominante do seu tempo. Se, nos alvores do Império Romano, era comum saber grego, no tempo dele isso era uma raridade. Não obstante, “tornou-se um dos melhores conhecedores da língua e literatura greco-cristãs e empreendeu viagem mais árdua quando, sozinho, se dedicou ao estudo do hebraico”, pelo que devemos ao seu poliglotismo “uma compreensão do cristianismo mais universal e, simultaneamente, mais coerente com as suas fontes”.

No quadro da relação entre Jerónimo e a Cátedra de Pedro, Francisco observa que, no contexto dos diversos ambientes por que deambulou o Santo, “Roma é o porto espiritual aonde volta continuamente”, mantendo uma ligação forte com a cidade e a língua, mas, de forma muito peculiar, com a Igreja de Roma. E é de ler este apontamento do Papa:

Num período turbulento, em que a túnica inconsútil da Igreja muitas vezes acaba dilacerada pelas divisões entre os cristãos, Jerónimo olha para a Cátedra de Pedro como ponto de referência seguro: ‘Eu, que não sigo mais ninguém senão Cristo, uno-me em comunhão com a Cátedra de Pedro’. ‘Eu sei que sobre esta pedra está edificada a Igreja’.”.

E, considerando que “o nosso mundo precisa, mais do que nunca, do remédio da misericórdia e da comunhão”, Francisco apela à oferta de “um testemunho de comunhão fraterna, que se torne fascinante e luminoso”, já que, por isto, conhecerão todos que somos discípulos do Senhor.

Em relação ao tópico Amar o que Jerónimo amou, considera Bergoglio que não é tido como apenas um dos maiores cultores da ‘biblioteca’ de que se nutre o cristianismo, mas que se lhe aplica o que ele mesmo escreveu sobre Nepociano: “Com a leitura assídua e a meditação constante, fizera do seu coração uma biblioteca de Cristo”. E podemos dizer que “assimilou uma biblioteca inteira” e se tornou “dispensador de ciência para muitos outros”.

E, na verificação de que um dos problemas atuais (e não só da religião) é o analfabetismo, faltando as habilitações hermenêuticas que nos tornem intérpretes e tradutores credíveis da nossa própria tradição cultural, surge a exortação pontifical sobretudo aos jovens:

Parti à procura da vossa herança. O cristianismo torna-vos herdeiros dum património cultural insuperável, do qual deveis tomar posse. Apaixonai-vos por esta história, que é vossa. Tende a ousadia de fixar o olhar naquele jovem inquieto que foi Jerónimo; ele, como a personagem da parábola de Jesus, vendeu tudo quanto possuía para comprar a ‘pérola de grande valor’.” (Mt 13,46).

Tendo em conta que “verdadeiramente Jerónimo é a ‘Biblioteca de Cristo’, uma biblioteca perene que, passados 16 séculos, continua a ensinar-nos o que significa o amor de Cristo, um amor inseparável do encontro com a sua Palavra”, o Papa assegura:

O centenário atual constitui um apelo a amar o que Jerónimo amou, redescobrindo os seus escritos e deixando-se tocar pelo impacto duma espiritualidade que se pode descrever, no seu núcleo mais vital, como o desejo inquieto e apaixonado dum conhecimento maior do Deus da Revelação”.

Por fim, evoca o “exemplo luminoso” que é a Virgem Maria, evocada por Jerónimo na sua maternidade virginal e na sua atitude de leitora orante da Escritura. De facto, Ela meditava no seu coração (cf Lc 2,19.51) “porque era santa e lera a Sagrada Escritura, conhecia os profetas e lembrava-se do que o anjo Gabriel Lhe anunciara e fora vaticinado pelos profetas (...), via o recém-nascido que era seu filho, o seu único filho que jazia e chorava naquele presépio, mas verdadeiramente a quem Ela via ali deitado era o Filho de Deus”. Por isso, Ela pode ensinar-nos a ler, meditar, rezar e contemplar Deus que Se faz presente na nossa vida sem nunca Se cansar.

2020.09.30 – Louro de Carvalho

terça-feira, 29 de setembro de 2020

O Bispo jornalista e Papa “Sorriso de Deus”

 

Entre 28 e 29 de setembro de 2020, passa o 42.º aniversário do Papa Venerável João Paulo I, o primeiro a escolher um duplo nome papal – João Paulo (Ioannes Paulus, em latim), em homenagem aos seus predecessores imediatos –, o primeiro papa que nasceu no século XX, o primeiro papa a falar na 1.ª pessoa do singular e o primeiro Sumo Pontífice, desde Clemente V, a recusar a coroação, cerimónia não formalmente abolida, ficando a cargo do eleito escolher como quer iniciar o pontificado. Contudo, desde então, os papas têm optado por uma cerimónia de “início do pontificado”, com a respetiva entronização e o juramento de fidelidade.  

A sua simplicidade obstava a que fosse transportado na sede gestatória, andor com a cadeira papal, que São Paulo VI abandonara. Pela brevidade do seu pontificado e pela sua afabilidade, tornou-se conhecido na Cúria Romana pelo apelido de “Papa do Sorriso”. Com a proclamação de “Venerável” na sessão ordinária da Congregação para a Causa dos Santos a 7 de novembro de 2017, estará prestes a sua beatificação, almejando-se a sua canonização.  

De nascimento e batismo, o seu nome era Albino Luciani, em homenagem a um amigo da família, que morrera numa explosão numa mina de carvão na Alemanha. Nasceu a 17 de outubro de 1912, em Canale d’Agordo (então Forno di Canale), província de Belluno (norte de Itália). Era o irmão mais velho de Federico (1915-1916), Edoardo (1917-2008) e Antonia (1920-2010).

De origem humilde, viu Giovanni Luciani, seu pai, que era socialista, inúmeras vezes forçado a buscar trabalho em outros países, por ocasião da I Guerra Mundial. E a mãe, Bortola Tancon, católica fervorosa, incentivou-o a seguir a formação religiosa, no que foi bem-sucedida.

Iniciou os estudos no seminário Menor, em Murano, tendo-os concluído no Seminário Georgiano em Belluno. E foi ordenado sacerdote a 7 de setembro de 1935, assumindo a posição paroquial que tanto desejara.

Embora, segundo consta, não tivesse grandes ambições, foi nomeado Bispo de Vittorio Veneto, a 15 de dezembro de 1958, por São João XXIII e Patriarca de Veneza, a 1 de fevereiro de 1970, por São Paulo VI, que o fez cardeal com o título de São Marcos, a 5 de março de 1973. Participou no Concílio Vaticano II, convocado por São João XXIII em 25 de dezembro de 1961, pela Constituição Apostólica “Humanae Salutis”, e iniciado a  11 de outubro de 1962, nos termos da Carta Apostólica “Consilium”.

Albino Luciani era, pois, o Patriarca de Veneza quando, com 65 anos, foi eleito Papa, a 26 de agosto de 1978, na terceira votação do conclave que se seguiu à morte do Papa São Paulo VI – superando o cardeal Giuseppe Siri, considerado “ultraconservador”, mas favorito ao trono de São Pedro, de acordo com a imprensa – por 99 votos a 11. Segundo se conta, a princípio, um atónito Luciani teria declinado a aceitação do pontificado, com que nunca sonhara, mas fora persuadido do contrário pelo cardeal holandês Johannes Willebrands, que estava sentado a seu lado na Capela Sistina. Para isso, ter-lhe-á dito: “Coragem. O Senhor dá o fardo, mas também a força para carregá-lo” – estímulo atribuído por outros ao cardeal português Dom António Ribeiro, Patriarca de Lisboa. Por ocasião do conclave, o cardeal britânico Basil Hume, um dos seus eleitores, chamou João Paulo I “o candidato de Deus”.

Sobre a brevidade do seu pontificado – apenas 33 dias, entre 26 de agosto de 1978 até a data da sua morte na madrugada 27 para 28 de setembro do mesmo ano, entre 23,30 horas e as 4,30 horas da manhã, no Palácio Apostólico do Vaticano –, a revista italiana “30 Giorni” revela, com base em declarações de um dos irmãos de João Paulo I, que a Irmã Lúcia, durante a visita que o então Patriarca de Veneza lhe fez no Carmelo de Santa Teresa, em Coimbra, sempre o tratou por “Santo Padre”. O Cardeal Luciani, impressionado, perguntou “porquê”, ao que Lúcia respondeu: “Vossa Eminência um dia será eleito Papa”. E ele disse: “Sabe-se lá, irmã…”. E a Irmã retorquiu: Será, sim, mas o seu pontificado será muito breve”. Por outro lado, uma lenda reza que o Papa Luciani teria feito uma premonição sobre a sua morte ao afirmar a conhecidos que “alguém mais forte que eu, e que merece estar neste lugar, estava sentado à minha frente durante o conclave”. Um cardeal presente na ocasião – que se escudou no anonimato – confirmou que esse homem era, de facto, o polaco Karol Wojtyla. “Ele virá, porque eu me vou”, prosseguiu o “Papa Breve”. Na verdade, Wojtyla realmente votara em Luciani naquele conclave e, logo depois, tornou-se João Paulo II. Ora, o que há de concreto é que João Paulo I teria falado da sua morte um dia antes dela ao Bispo John Magee.

A versão oficial é a de que o Papa estivera a beber um chá durante a tarde do dia 27 de setembro de 1978. E, quando rezava na capela papal acompanhado pelo seu secretário, o irlandês John Magee, João Paulo teve uma forte dor no peito, mas recusou chamar o médico. Jantou, deitou-se e acabaria por morrer nessa noite, tendo sido encontrado morto pela manhã.

Embora tenha sido encontrado morto por uma freira que trabalhava para ele e o acordava havia muitos anos, a versão oficial do Vaticano é de que o corpo de João Paulo I teria sido encontrado pelo Padre Diego Lorenzi, um dos seus secretários, enunciando a morte como “possivelmente associada com enfarte do miocárdio”. Para alguns, o Papa teria sido vítima das terríveis pressões caraterísticas do seu cargo e que, não as tendo suportado, veio a perecer. A mencionada freira, após a morte deste, fez voto de silêncio. Outra hipótese levantada foi a de que o Papa “Sorriso de Deus” teria sido vítima de embolia pulmonar.

Fosse como fosse, a sua morte provocou enorme consternação entre os católicos: mesmo sob chuva torrencial, a Praça de São Pedro esteve totalmente lotada aquando dos seus funerais. E, em sua homenagem, Karol Wojtyla, seu sucessor, adotaria o seu nome papal ao ser eleito, a 16 de outubro de 1978 , tornando-se o Papa João Paulo II, que agora é São João Paulo II.

Várias teorias da conspiração foram alimentadas pela sua morte, 33 dias após a sua eleição para o papado, e pelas alegadas dificuldades do Vaticano com os procedimentos legais e cerimoniais, a par de declarações inconsistentes feitas após a sua morte. O britânico David Yallop escreveu extensivamente sobre crimes não resolvidos e teorias da conspiração e, no livro de 1984 “In God’s Name sugeriu que João Paulo I morrera por estar prestes a descobrir escândalos financeiros supostamente envolvendo o Vaticano, bem como a tomar uma postura diferente da de Paulo VI exposta na encíclica “Humanae Vitae”. John Cornwell respondeu Yallop em 1987, com “A Thief In The Night, em que analisou as várias alegações e negou a conspiração. Para Eugene Kennedy, no “The New York Times”, o livro de Cornwell “ajuda a purificar o ar de paranoia e teorias da conspiração, mostrando como a verdade, cuidadosamente escavada por um jornalista num volume, pode refrescar-nos, fazer-nos livres”.

Seja como for, a figura de João Paulo I na Igreja Católica sempre foi a de um papa afável, tendo recebido, por isso, a alcunha de “O Papa Sorriso”.

No 40.º ano do seu falecimento, o mafioso Antoni Raimondi conta nas suas memórias ter sido ele o assassino do Papa.

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No 42.º aniversário do seu falecimento, que ocorre alguns meses após o anúncio da criação da Fundação Vaticana dedicada a ele, a sua sobrinha Lina Petri admite que as especulações sobre a morte de Luciani lhe ofuscaram a figura. E Mauro Velati sustenta que o Papa Luciani tem de ser redescoberto, pois aplicou o Concílio colocando na realidade os conteúdos de fé.

Fabio Colagrande referiu ao “Vatican News” que o Papa Francisco instituiu uma Fundação Vaticana para aprofundar a figura, o pensamento e os ensinamentos do Venerável João Paulo I. A Fundação é presidida pelo Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado do Vaticano, que descreveu João Paulo I como “um ponto de referência na história da Igreja universal, cuja importância é inversamente proporcional à duração do seu breve pontificado”. Nas palavras de Parolin, Luciani foi “um bispo que viveu a experiência do Concílio Vaticano II, a aplicou e fez avançar a Igreja pelos caminhos indicados por ele”.

Lina Petri, filha de Antonia Luciani, irmã do Papa Luciani e membro do conselho de administração da Fundação, imagina, em declarações ao Vatican News, como o tio acolheria a notícia desta Fundação: confuso, visto que qualquer coisa referível à sua pessoa “era demais para ele”. Todavia, apesar de ser “uma pessoa extremamente humilde”, teria compreendido “a seriedade desta iniciativa”. Com efeito, passados tantos anos, era útil e necessário “colocar um ponto firme e tentar delinear bem a sua figura, o seu pensamento e as suas obras”.

Sobre o risco de a personalidade de Luciani “ter ficado um pouco obscurecida” pelas palavras “ditas e publicadas sobre a sua morte súbita”, Lina Petri pensa que a utilidade da Fundação é “tentar evitar que os holofotes se acendam apenas na última noite” do tio, circunstância que gerou tantas “fake news” e disparates, especialmente num contexto comunicativo em que muitas vezes dominam a “conjetura” e o “mistério”. Ora, segundo ela, em vez de se reduzir tudo à lenda do “Papa que foi assassinado”, há que ter em conta a necessidade de olhar “toda a sua obra”, destacar “todo o seu trabalho”, “toda a sua vida”, “tudo o que ele foi”.

E chama a atenção para a sem razão de ser da aludida lenda, dado que o epílogo da vida de Albino Luciani “foi minuciosamente analisado em todos os níveis, tanto documental como testemunhal, durante o processo de canonização” – trabalho de mais de dez anos, cujo resultado foi resumido no livro de Stefania Falasca, vice-postuladora da causa, “Papa Luciani: crónica de uma morte”, recentemente reeditado pela Libreria Editrice Vaticana, onde é esclarecido, de uma vez por todas, que a morte do Papa foi normal, por enfarte do miocárdio. Portanto, não há razão para todas as conjeturas que ofuscaram a sua imagem, a sua pastoralidade, o seu ser Papa, mesmo sendo-o por apenas 33 ou 34 dias.

No final de agosto, o Cardeal Secretário de Estado indicou os membros do Comité Científico da Fundação João Paulo I. Coordenado pela vice-presidente da Fundação, Stefania Falasca, o Comité inclui Mauro Velati, colaborador da Fundação para as Ciências Religiosas “João XXIII” e da causa de canonização do Papa Luciani. Ora, Velati, que realizou muitas pesquisas, sobretudo no Arquivo do Patriarcado de Veneza, é um profundo conhecedor da biografia e do pensamento de João Paulo I, que resumiu em entrevista ao “Vatican News”.

Assim, advertiu que João Paulo I não deixou, ao invés dos antecessores, uma grande quantidade de escritos privados e pessoais que nos permitam examinar a sua interioridade ou o modo como viveu certas passagens muito importantes da sua vida. E, não existindo diários reais e adequados seus, é difícil aceder ao “núcleo mais íntimo e profundo da sua espiritualidade e da sua visão do mundo e da Igreja”. Porém, uma grande quantidade de escritos que foram a base dos artigos e discursos feitos por ele mostra que Luciani “concebeu o seu ministério como uma oportunidade de colocar à disposição da Igreja a sua própria capacidade de divulgação”, tendo sido, de facto, a catequese “um campo muito importante da sua ação pastoral”, o que o levava a aplicar o seu mandato de bispo como um chamamento a ser, mesmo que com humildade, “um mestre”, ou seja, alguém que pudesse explicar a fé e falar dela aos coetâneos. Portanto, não há inéditos, sendo os seus textos mais importantes os que publicou em várias ocasiões. De facto, como pastor peculiar como era, “publicou uma quantidade muito grande de artigos”, onde se vê o “seu desejo de contribuir para a vida da Igreja”, pelo que poderíamos chamá-lo “um bispo jornalista”.

No atinente à atualidade do pensamento teológico e pastoral do Venerável João Paulo I, Mauro Velati salienta o facto de Luciani sempre pensar que tinha de “aplicar o conteúdo da fé à realidade de cada momento”, não numa atualização distorcedora das categorias tradicionais da doutrina, mas na sua elaboração com vista a “falar às pessoas através de uma linguagem simples, uma linguagem próxima do povo que é a linguagem do amor”, privilegiando, ao longo da sua vida, o povo, os homens simples. Como bispo e depois como Papa, sempre quis emparceirar, acima de tudo, com os pequenos, os últimos: as crianças e os pobres.

Não tendo as habilidades diplomáticas dos outros Papas do século XX, a relevância do seu pensamento deriva da maneira como viveu a experiência do Concílio Vaticano II, aquele momento histórico que “havia gerado uma mudança interior nele, uma mudança da sua visão da Igreja e o levou a tentar aplicar nos vários momentos da história vivida por ele”.

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No âmbito da preocupação pela catequese, acima referida, é de frisar que foi diretor da catequese diocesana de Belluno, tendo publicado, em dezembro de 1949, “Catequese em migalhas”. Por outro lado, é de referir as bastantes viagens que fez e que lhe deram a noção de uma Igreja plural.

Da sua simplicidade interpelante testemunham as cartas “Ilustrissimi”, bem como as 5 alocuções por ocasião da recitação do Angelus, as 4 audiências gerais, as 4 Cartas, os 8 discursos e as 3 mensagens. Entre estas, é de realçar a sua primeira radiomensagem, que é programática e profundamente mergulhada na Sagrada Escritura e na “Lumen Gentium”.

De igual modo, sobressaem as homilias proferidas enquanto supremo Pastor da Igreja: a da Missa que assinalava o solene início do ministério de Supremo Pastor; e a da tomada de posse como Bispo da Diocese de Roma – imersas na Sagrada Escritura, na Patrística e na “Lumen Gentium”, sendo que a primeira se escora também na encíclica “Ecclesiam Suam”, de São Paulo VI, a da consciência da Igreja e da sua postura dialogante, e a segunda também na escrita hagiográfica.

Enfim, é de estudar o pensamento do Venerável João Paulo I, santo e pastor a redescobrir aprofundando os textos que produziu como Papa, mas em articulação com o que pensava como sacerdote e bispo, creio que à maneira de Santo Agostinho.

2020.09.29 – Louro de Carvalho     

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Espírito e especificidade da Cerimónia de Chá no Japão

 

Tendo lido o romance “Xogum”, de James Clavell, e relido o livro “Rodrigues, o Intérprete”, de Michael Cooper, que aludem à Cerimónia de Chá, descrita pelo Padre João Rodrigues, de Sernancelhe (N. 1562 – M. Macau, 1-08-1633), com minúcia e arte, aqui deixo o historial do chá no Japão e os elementos que enformam a Cerimónia, bem como o seu espírito e filosofia. Ademais, é de referir que o romance “A última concubina”, de Lesley Downer, também alude várias vezes à toma do chá, e é de recordar que o conhecimento que os portugueses colheram do chá na relação com o Oriente e a generalização que fizeram do seu uso levaram Dona Catarina de Bragança, filha de Dom João IV, dada em casamento a Carlos II, rei da Inglaterra, a introduzir o hábito do chá na corte britânica, de forma que a monarca passou a promover festas regadas a chá e a realeza inglesa facilmente aderiu à tradição de tomar um chazinho em confraternizações.    

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A Cerimónia de Chá no Japão – “Chanoyu”, que significa “água quente para chá” ou “caminho do chá” – assume importância fulcral na cultura tradicional japonesa e carateriza-se por servir e beber o Matcha, um chá verde pulverizado, em ambiente de simplicidade e boa vontade.

Porém, não se trata apenas de saborear o chá. Os mestres dizem que a cerimónia leva ao estado de tranquilidade, experimentando o praticante momentos de paz. Por isso, o chá, mais que uma bebida, é uma filosofia e um relevante elemento do estilo de vida.

O chá, originário da China, foi introduzido no Japão, no século VI, pelos monges budistas que descobriram que o chá aumentava a concentração durante a meditação; e, durante muito tempo, foi cultivado e consumido apenas pelos monges, que o utilizavam para se manterem acordados durante as suas meditações noturnas.

Porém, a cerimónia formal da tomada do matcha (chá verde em pó) só foi introduzida no final do século XII pelo monge Eisai, quando o Zen Budismo era introduzido no solo japonês. Nessa altura, era uma bebida preciosa, usada também para fins medicinais. Entretanto, o costume de beber Matcha difundiu-se entre os sacerdotes dos Templos Budistas e as classes superiores, acabando por se transformar em filosofia de vida através do “Chado” – Caminho do Chá – materializado no ritual “Chanoyu”, ou seja, a Cerimónia de Chá.

Beber chá viria a popularizar-se entre outros grupos da sociedade japonesa no século XVI, no período Momoyama, altura em que Sen Rikyu, considerado o mestre japonês da cerimónia do Japão, estabeleceu um conjunto de ensinamentos que persistem até aos dias de hoje.

Praticado exclusivamente por homens, somente no final do século XIX o Chado foi franqueado às mulheres. Ennosai, 13.º grão-mestre de Urassenke, ensinou essa arte às viúvas e órfãos da guerra sino-japonesa (1894/95) para sobreviverem como professoras de chá. E, a partir daí, estendeu-se a todas as classes sociais através de aulas em escolas e templos.

Com o propósito de alcançar “a paz numa xícara de chá”, os mestres dedicaram-se à difusão da filosofia do chá no Ocidente. O ritual, a concentração, o desenvolvimento rítmico da Cerimónia de Chá levam, segundo os mestres, à meditação, à tranquilidade e à paz superior.

A prática de tomar chá verde em pó aportou, como se disse, ao Japão com os monges zen-budistas que chegavam da China, no século XII, mas, com o desenrolar do tempo, o seu uso difundiu-se entre samurais e às comunidades rurais. Tornaram-se comuns as reuniões de chá ou “Cha-yoriai”, em que se promoviam concursos de provadores de chá com ostensivas exibições de riqueza e apostas vultosas.

No final do século XV, o monge zen-budista Murata Shuko (1422/1502) passou a incentivar a prática da cerâmica de chá em salas pequenas, com poucos utensílios, muitos de procedência doméstica. E outro monge, Sen no Rikyu (1522/1591), ligado à filosofia zen, estabeleceu a estrutura definitiva da Cerimónia de Chá, no final do século XVI, no período Momoyama, o mais ostentador da história japonesa, e pregava o espírito wabi (desprendimento, simplicidade, eliminação do supérfluo) para a Cerimónia de Chá, que se tornara, ao longo dos anos, a essência da arte japonesa.

Segundo Rikyu, os princípios básicos do Caminho do chá são: Wa (Harmonia), Kei (Respeito), Sei (Pureza) e Jaku (Tranquilidade), competindo ao Chajin (homem do chá) criar um ambiente através do ritual e total participação, onde todos sintam e vivam intensamente tais princípios, por um momento único e irrepetível. E, no atinente a estes princípios básicos, é de relevar:

A Harmonia resulta da interação do anfitrião, do convidado, da comida servida, dos utensílios usados e da natureza. Com efeito, antes do chá, é oferecido doce e/ou uma leve refeição ao convidado cujos pratos estarão de acordo com a estação do ano.

O Respeito tem a ver com a sinceridade do coração, aberto para um relacionamento com o ser humano e a natureza, reconhecendo a dignidade inata de cada um.

A Pureza está conexa com o ato de limpar nos preparativos, no próprio serviço do chá e na limpeza após a cerimónia, colocando em ordem o próprio íntimo – ordem que é essencial.

E a Tranquilidade relaciona-se intrinsecamente com o conceito estético do chá e alcança-se através da prática constante, no nosso quotidiano, dos três primeiros princípios básicos.

Segundo Rikyu, o ponto essencial do Caminho do Chá é que os seus princípios são dirigidos à totalidade da existência e não apenas aos momentos vividos na sala de chá. É uma disciplina a ser treinada durante a vida toda, sendo necessários, pelo menos, 10 anos para o domínio de todas as cambiantes relativas à cerimónia, que tem seguido intacta até aos nossos dias e que se reduz a: aquecer a água; preparar o chá; e bebê-lo corretamente. Todavia, cada cerimónia é única e não pode ser reproduzida. Por isso, a aprendizagem das regras e preceitos de servir chá é exigente e difícil, implicando também conhecimentos das artes tradicionais, nomeadamente ao nível da arquitetura (salas de chá), jardinagem paisagística e artes florais.

Tal como a cerimónia, também se mantêm até aos dias atuais o desenvolvimento da arquitetura, a jardinagem paisagística, a cerâmica e as artes florais, bem como a apreciação do cómodo onde é realizada, o jardim a ele contíguo, os utensílios utilizados no serviço do chá, a decoração do ambiente como um rolo suspenso ou um “chabana” (arrojo floral para a cerimónia). Foi o espírito da Chanoyu, representando a beleza da simplicidade e da harmonia com a natureza, que moldou a base das formas tradicionais da cultura japonesa, que se mantém intacta mais de um milénio.

O itinerário da cerimónia é, em geral, como segue. Quando chegam, os participantes passam um portão japonês com o intuito de deixar para trás as preocupações do quotidiano. Depois, seguem o caminho até à casa de chá, uma casa simples em madeira. Antes de entrarem, lavam as mãos e a boca num poço. A entrada da casa de chá é baixa para que todos os participantes entrem de joelhos. Os samurais tinham que deixar a espada do lado de fora. Ao entrarem de joelhos, todas as pessoas assumem a mesma importância. Os sapatos ficam à entrada da casa e, uma vez dentro desta, os participantes sentam-se no chão à espera do mestre de chá. Dentro da casa há sempre uma tokonoma (cantinho) com uma caligrafia e uma flor da estação do ano. A cerimónia ocorre em silêncio. Porém, há muitas maneiras de realizar a Cerimónia de Chá, que varia de acordo com a escola a que o anfitrião pertence, a ocasião e a estação do ano, mas, nos elementos essenciais, há uma semelhança básica.

A tradicional Cerimónia de Chá desenvolve-se em 4 sessões com a duração de cerca de 4 horas.

Na 1.ª sessão, é servida uma refeição ligeira, denominada “kaiseki”: os convidados, cinco ao todo, reúnem-se na sala de espera. O anfitrião comparece e condu-los pelo caminho ajardinado até à sala de chá. Num determinado lugar do caminho há uma bacia de pedra cheia de água fresca, onde lavam as mãos e a boca. A entrada para a sala é muito pequena, o que obriga os convidados a rastejar para atravessá-la numa demonstração de humildade.

Ao entrar na sala, provida de fogareiro, fixo ou portátil, para a chaleira, cada convidado ajoelha-se à frente do “tokonoma” ou nicho e faz uma reverência respeitosa. Em seguida, com o leque dobrável diante de si, admira o rolo suspenso na parede do “tokonoma”. A seguir, olha do mesmo modo o fogareiro. Quando todos os convidados concluírem a contemplação desses objetos, tomam os seus assentos, com o principal no lugar mais próximo do anfitrião. Depois de o anfitrião e os convidados trocarem cumprimentos, a “kaiseki” é servida, com os doces e a leve refeição termina.

A 2.ª sessão constitui o momento em que os convidados fazem o “nakadachi” (breve pausa). Por sugestão do anfitrião, os convidados retiram-se para o banco de espera existente no jardim interno próximo da sala.

Na 3.ª sessão, ou o denominado “Goza-iri”, a etapa principal da cerimónia, é servido o chá. Primeiro, é tocado pelo anfitrião um gongo de metal próximo da sala para assinalar o início da cerimónia principal. E os convidados erguem-se neste momento. É costume fazer soar o gongo cinco ou sete vezes. Depois de repetir o rito de purificação na bacia, os convidados entram novamente na sala. Os biombos de junco suspensos do lado de fora das janelas são retirados por um assistente a fim de se tornar mais claro o ambiente. O rolo suspenso desaparece e, no “tokonoma”, há um vaso com flores. O recetáculo para água fresca e o recipiente de cerâmica para o chá estão em posição antes que o anfitrião entre trazendo a tigela de chá com a vassourinha e a concha de chá dentro dela. Os convidados examinam e admiram as flores e a chaleira como fizeram no início da 1.ª sessão. O anfitrião retira-se para a sala de preparo e logo retorna com o recetáculo para água servida, a cocha e o descanso para da tampa da chaleira ou cocha. Depois, o anfitrião limpa o recipiente de chá e a concha com pano especial denominado “fukusa” e faz o mesmo com a vassourinha na tigela de chá contendo água quente tirada da chaleira. O anfitrião esvazia a tigela despejando a água no recetáculo de água servida e limpa a tigela com um “chakin” ou pedaço de tecido de linho. O anfitrião ergue a cocha de chá e o recipiente e põe “matcha” (três conchas para cada convidado) na tigela e tira uma concha cheia de água quente da chaleira, pondo cerca de um terço dela na tigela e devolvendo o que sobrou à chaleira. A seguir, bate a mistura com a vassourinha até que se transforme em algo que lembre uma muito grossa sopa de ervilha verde, tanto na consistência como na cor.

O chá feito é denominado “koicha”. O “matcha” usado aqui é feito de folhas tenras de plantas de chá com idade de 20 a 70 anos ou mais. O anfitrião coloca a tigela no lugar apropriado, junto ao fogareiro, e o convidado principal desloca-se de joelhos para pegar na tigela. O convidado faz uma reverência com a cabeça, para os outros convidados e põe a tigela na palma da sua mão esquerda, sustentando um dos lados dela com a direita. Depois de tomar um gole, elogia o sabor da bebida e, em seguida, toma mais dois goles. Limpa a beirada da tigela onde bebeu com o “kaishi” de papel e passa a tigela para o segundo convidado, que bebe e limpa a tigela tal como o fez o convidado principal. A tigela é passada ao terceiro convidado e, em seguida, ao quarto e, depois, ao quinto até que todos os cinco tenham partilhado do chá. Quando o último convidado termina, entrega a tigela ao convidado principal, que a devolve ao anfitrião.

A 4.ª sessão é a etapa em que ocorre a cerimónia com “usucha”, que difere do “koicha” na circunstância de que, primeiro, é feito de plantas tenras de apenas 3 a 15 anos, proporcionando uma mistura espumosa. As regras seguidas nessa cerimónia são semelhantes às do “koicha”, mas há diferenças. A primeira é que o chá é feito individualmente para cada convidado com duas a duas e meia conchas de “matcha”, esperando-se que o convidado beba toda a sua porção. A segunda diferença está no facto de ser o convidado a limpar a parte da tigela em que os seus lábios tocaram com os dedos da mão direita. Limpa essa parte com o “kaishi” de papel.

E, depois de o anfitrião retirar os utensílios da sala, faz uma reverência silenciosa com a cabeça para os convidados, dando a entender que a cerimónia terminou. Os convidados deixam a “sukiya”, despedindo-se respeitosamente do anfitrião.

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Como se depreende do exposto, há aspetos de arquitetura e de utensílios a considerar para a Cerimónia de Chá. Assim, é de relevar o costume muito antigo de ter uma pequena casa especialmente construída para o Chanoyu. Denominada Sukiya, a casa é constituída pela sala de chá (cha-shitsu), pela sala de preparo (mizu-ya), pela sala de espera (yoritsuki) e por um caminho ajardinado (roji), que leva à entrada da casa de chá. A casa, geralmente, é localizada numa secção arborizada especialmente criada para esse fim no jardim propriamente dito.

Os principais utensílios são a “cha-wan” (tigela de chá), o “cha-ire” (recipiente do chá), a “cha-sen” (vassourinha de chá feita de bambu) e o “cha-shaku” (concha de chá feita de bambu), utensílios que os japoneses consideram valiosos objetos de arte.

Ainda, uma componente a referenciar, e não menos relevante, é a concernente aos trajes, que são preferencialmente roupas de cores discretas. Em ocasiões estritamente formais, os homens vestem quimono de seda, de cor firme, com três ou cinco brasões de família nele estampados e “tabi” brancas ou meias tradicionais japonesas. Por sua vez, as mulheres envergam, nessas ocasiões, o conservador quimono blasonado e também “tabi”. Os convidados devem trazer um pequeno leque dobrável e uma almofada de “kaishi” (pequenos guardanapos de papel).

Por fim, é de anotar que, no tempo em que a capital do Japão era Quioto, todas as Geishas, ou Gueixas, passaram a receber os ensinamentos da Cerimónia de Chá, uma arte passada pelas Geikos experientes às Maikos (aprendiz de Geisha), sendo que estas precisavam de cerca de 5 anos de prática para aprender, bem como de permissão para cada uma realizar sozinha uma Cerimónia de Chá nos moldes tradicionais.

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Ora bem! Um chazinho faz sempre bem sobretudo a quem mais dele precisar. E há muitos que dele precisam. Sigam a duquesa de Bedford, Anna Maria Russell, cuja fome levou a que o chá tenha um lugar garantido nas casas, restaurantes e bares de todo território britânico: dantes ao pequeno almoço; depois, às cinco da tarde.

2020.09.28 – Louro de Carvalho

domingo, 27 de setembro de 2020

Trabalhar no ‘hoje’ de Deus na sua vinha é fazer a sua vontade

 

A perícopa evangélica (Mt 21, 28-32), proposta para o XXVI domingo do Tempo Comum no Ano A, coloca-nos em Jerusalém, na etapa final da caminhada terrena de Jesus, que entrara, pouco antes, em Jerusalém, recebido triunfalmente pela multidão (cf Mt 21,1-11). Porém, o entusiasmo inicial foi paulatinamente substituído pela recusa categórica em acolher Jesus e o seu projeto. Com efeito, os líderes religiosos judaicos surgem como o motor da oposição a Jesus, não dispostos a reconhecê-Lo como o Messias e a aceitar que tenha mandato de Deus para propor a nova realidade do Reino. E a tensão que paira no ar já prenuncia a paixão e morte de Jesus.

No quadro que antecede este episódio (Mt 21,23-27) e em conexão direta com ele, os líderes judeus – os “chefes dos sacerdotes” e aos “anciãos” do povo, os bem colocados na religião e na vida pública – encontram-se com Jesus no Templo e perguntam-Lhe com que autoridade age e quais as suas credenciais, ao que Ele responde convidando-os a pronunciarem-se sobre a origem do batismo de João. Porém, não arriscam responder, pois dizerem que João não vinha de Deus provocaria a reação da multidão (que o considerava um profeta) e admitirem que o batismo de João vinha de Deus implicaria que Jesus lhes perguntasse porque não o aceitaram. Ora, ante o silêncio embaraçado dos interlocutores, Jesus deu-lhes a entender que não tinha resposta para lhes dar, enquanto continuassem de coração fechado a recusar obstinadamente a novidade de Deus (anunciada por João e proposta pelo próprio Jesus).

Na sequência, Jesus apresenta três parábolas para ilustrar a recusa de Israel em acolher o Reino. Com elas, convida os líderes judaicos a refletirem sobre a situação de gueto em que se instalaram e a reconhecerem o sem sentido das suas posições fixistas e conservadoras.

A parábola do “homem” (ánthrôpos) que tem “dois filhos” (tékna dúo) e uma “vinha” (ampelôna), querendo que “hoje” (sêmeron) vão “trabalhar” (ergázou) nela, que é a primeira das ditas três parábolas, ilustra, continuando o diálogo de Jesus com os seus interlocutores, duas atitudes diversas ante os desafios e propostas de Deus. Um dos filhos foi convidado pelo pai a trabalhar “na vinha” (en tô ampelôni). A resposta foi: “Não quero”. No contexto familiar da Palestina do tempo de Jesus, é resposta reprovável, pois uma atitude deste tipo ia contra as convenções sociais, envergonhando o pai e pondo em causa a sua autoridade diante dos familiares, amigos e vizinhos. Contudo, o filho reconsiderou e foi trabalhar na vinha (vv. 28-29). O outro filho a convite idêntico respondeu: “vou, sim, senhor”. Deu ao pai resposta satisfatória, que não punha em causa a sua autoridade e “honra”. Ficou bem visto diante de todos, que o consideraram um filho exemplar. No entanto, acabou por não ir trabalhar na vinha (v. 30).

Ao invés da parábola da vinha, do dono e dos trabalhadores chamados a trabalhar a várias horas do dia, em que nenhum dos trabalhadores teve oportunidade de dizer ‘sim’ ou ‘não’ (Mt 20,1-16a), aqui trata-se se filhos, que são livres, podendo usar da sua liberdade e pensar pela sua cabeça.  

Perante a atitude dos dois filhos, o Mestre interpela os bem colocados na religião e na vida pública: “Que vos parece?” (Mt 21,28), “qual dos dois fez a vontade do Pai?” (Mt 21,31). Ora, a resposta à questão sobre a apreciação do episódio é tão óbvia que os próprios interlocutores de Jesus não têm pejo em a dar: “o primeiro(v. Mt 21,31).

Dom António Couto, Bispo de Lamego (vd Jornal da Madeira, 27.09.2020), a este propósito, faz um breve excursus temático, nos termos do qual os fariseus aparecem em Mateus como os que “dizem, mas não fazem” (cf Mt 23,3). E “fazer”, em oposição a dizer, é tema fundamental neste Evangelho, expresso por Jesus no discurso programático da Montanha: “Nem todo o que me diz: ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas o que faz a vontade do meu Pai que está nos céus(Mt 7,21). Mais: em Mateus, o verdadeiro ‘fazer’ é ‘fazer fruto’ (frutificar), na sequência da conversão operada na nossa vida. Pela sua importância, a ideia é recorrente no 1.º Evangelho (vd Mt 3,8; 7,16-20; 12,33; 13,8; 21,41.43; 25,40.45). Por outro lado, aparece aqui a “justiça”, um termo recorrente em Mateus a indicar o desígnio divino de salvação e o nosso dever de obediência a esse desígnio. Dada a sua relevância, a nota da “justiça” faz-se ouvir 7 vezes neste Evangelho (vd Mt 3,15; 5,6.10.20; 6,1.33; 21,32). Assim, é mais fácil abrirmo-nos à força da parábola de Jesus, contada a gente habituada só a “dizer”. Obviamente o homem e pai da parábola é Deus. A vinha é dele e nossa. O homem não diz “minha” vinha (ampelôná mou), como na parábola anterior da vinha (Mt 20,1-16a). A vinha é do pai e é dos filhos. É, pois, campo aberto de alegria e de liberdade, onde todos os filhos podem encontrar espaço relacional de filialidade e fraternidade.

Este pai tem dois filhos, personagens-tipo de todos os filhos de Deus, nas semelhanças e diferenças. Ao primeiro, o pai diz: “Filho, vai hoje trabalhar na vinha(Mt 21,28). São de notar o termo carinhoso “filho” (téknon), o imperativo “vai”, que nos põe na estrada de Abraão, o “hoje”, que requer resposta pronta e inadiável, e a “vinha”, símbolo da festa e da alegria. Porém, o filho responde de forma insolente: “Não quero(Mt 21,29a). Mas, a seguir, “arrependeu-se e foi” (Mt 21,29b). Ao invés, a resposta do outro filho, depois de ter ouvido o mesmo convite do Pai, foi pronta: “Eu vou, Senhor(Mateus 21,30a). Todavia, como verifica o narrador, não foi (Mt 21,30b).

A parábola ensina que, na ótica de Deus, o importante não é quem se comportou bem e não escandalizou os outros, mas quem, realmente, cumpre a vontade do Pai. Na perspetiva de Deus, não bastam palavras belas ou declarações de boas intenções, mas impõe-se a resposta adequada e coerente aos desafios do Pai.

Os fariseus, os sacerdotes, os anciãos do Povo, disseram “sim” a Deus ao aceitar a Lei de Moisés. A sua atitude – como a do filho que disse “sim”, mas não foi trabalhar para a vinha – foi irrepreensível de acordo com as convenções sociais. Porém, do ponto de vista de Deus, a sua atitude foi uma mentira, pois recusaram-se a acolher o convite de João à conversão. Em contrapartida, quem, de acordo com o “política e religiosamente correto” disse “não” (por exemplo, os cobradores de impostos e as prostitutas), cumpriu a vontade do Pai: acolheu o convite do Batista à conversão e a proposta do Reino que Jesus veio apresentar (vd Mt 21, 32).

Lida no contexto do ministério de Jesus, a parábola respondia aos que O acusavam de acolher os pecadores e os marginais – isto é, os que, segundo as “convenções”, disseram “não” a Deus. Jesus deixa claro que, na perspetiva de Deus, não interessam as convenções externas, mas a atitude interior. Quem honra a Deus não é o que cumpre ritos externos e dá “boa impressão” às massas, mas o que cumpre a vontade de Deus.

Mais tarde, a comunidade mateana leu a parábola numa ótica um pouco diversa: para iluminar a recusa do Evangelho por parte dos judeus e o seu acolhimento por parte dos pagãos. Israel seria esse “filho” que aceitou trabalhar na vinha, mas não cumpriu a vontade do Pai; e os pagãos seriam o “filho” que, aparentemente, esteve sempre à margem dos projetos do Pai, mas aceitou o Evangelho de Jesus e aderiu ao Reino. Na verdade, todos os filhos de Deus ouvem o mesmo convite e veem a mesma atitude de carinho. Respondem ‘não’ ou ‘sim’, e ambos mudam. O que disse ‘não’, de facto, hoje faz a vontade do Pai; o que disse ‘sim’, ficou nas palavras, apenas mudando o ‘sim’ em ‘não’. De facto, os interpelados por Jesus, os que só “dizem”, têm de reconhecer que não é o que “se diz”, mas o que “se faz” que verdadeiramente conta, reconhecendo que João os tinha chamado à conversão para fazerem frutos de justiça (Mt 3,8; 21,32) e obedecerem ao desígnio de Deus, ao que não deram qualquer atenção (Mt 21,32). Na verdade, o que fez João é o que Jesus faz agora, e tão-pouco lhe prestam atenção, convertendo-se ou mudando de vida, atitudes e comportamentos. E aqui são chamados a fazer contraponto os publicanos e as prostitutas, que ouviram João e ouvem agora Jesus, estando a mudar de vida (Mt 21,31-32). E não podemos desmentir isto, pois o autor humano destas páginas, Mateus, era um publicano. E mudou tanto que passou a Apóstolo e Evangelista.

A seguir (Mt 21, 33-43), vem a parábola dos vinhateiros homicidas, que a liturgia do próximo domingo fará proclamar e meditar. E Dom António Couto sublinha que, embora os chefes dos sacerdotes e os fariseus tenham respondido a Jesus no fim de cada parábola, no final de duas das parábolas cuja temática é a “vinha”, reagem às interpelações de Jesus compreendendo que eram eles os visados e procurando meio de O prenderem às ocultas por temerem o povo, que O considerava profeta (cf Mt 21,45-46).   

E, em consonância com a parábola da perícopa evangélica em referência neste dia, é oportuno verificar como Ezequiel ergue a sua voz profética para nos dizer que, enquanto o justo, se renunciar à retidão e cair no pecado, morrerá, o pecador salvará a sua vida, se abrir os olhos do coração, se afastar do mal e começar a trilhar os caminhos do direito e da justiça (Ez 18,25-28).

Além disso, embora o pecado de um membro da comunidade afete os outros irmãos, membros da mesma comunidade, pois introduz sempre elementos de desequilíbrio, desarmonia, egoísmo e ruptura, que atingem todos aqueles que caminham connosco, o profeta quer sublinhar que cada homem ou mulher tem de sentir-se pessoalmente responsável diante de Deus pelas suas opções e atos. Ou seja, é preciso superar a mentalidade coletiva para dar lugar à responsabilidade individual – um dos grandes progressos na história teológica de Israel, tendo o Povo aprendido a reagir em termos individuais e não em termos massivos.

Está, pois, aberto o caminho para uma Nova Aliança, que não é feita genericamente com uma comunidade, mas uma Aliança pessoal e interior, feita com cada crente, obviamente inserido na comunidade. Está aberta a porta que conduz à vida, não, porém, à custa de Deus, querendo fazer vingar os nossos direitos sobre Ele, para que Ele dê razão aos nossos caprichos, mas dando-Lhe o lugar que Lhe compete, o primeiro, e convertendo-nos nós aos seus desígnios, isto é, respondendo-lhe nos passos concretos e quotidianos da nossa vida, dele por graça recebida.

São Paulo coloca diante de nós, para imitar, o exemplo de Jesus Cristo, que desceu ao nosso nível (ekénôsen morphên doúlou ), para nos servir com doçura e humildade (Fl 2,1-11). É nele e dele, desde a fundura das entranhas das misericórdias e a transbordar de amor, que viveremos unidos, na comunhão do Espírito que opera a união. Vê-se nascer assim, apesar dos problemas, a comunidade não autorreferencial, estando cada um mais atento aos outros do que a si próprio.

Por fim, é de referir que, no quadro da opção preferencial pelos pecadores, José Antonio Pagola conta que um grupo de prostitutas de diferentes países, acompanhadas por Irmãs Oblatas, refletiu sobre Jesus em torno do livro “Jesus. Aproximação histórica, comovendo-o a força de atração de Jesus para estas mulheres e interrogando-se sobre o mistério de Jesus nos corações.

Genêthétô tò thélêmá sou – Seja feita a tua vontade (Mt 6,10)!  

2020.09.27 – Louro de Carvalho

sábado, 26 de setembro de 2020

Afinal, destino do Banco Montepio poderá ditar a fusão com o BCP

 

O Banco Montepio (BM), liderado desde fevereiro por Pedro Leitão, avançou com um pedido de estatuto de empresa em reestruturação ao MTSSS (Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social), que este diz já estar em análise por parte do ISS (Instituto da Segurança Social) e do IAPMEI (Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e à Inovação) e que permitirá ao banco avançar com uma redução significativa de pessoal e o encerramento de balcões, o que em nada difere de reestruturações operadas em entidades congéneres, por exemplo, o Novo Banco (NB) e a Caixa Geral de Depósitos (CGD), que que apresentaram planos de saídas de colaboradores de larga escala e fecho de agências, em virtude das penosas reestruturações impostas por Bruxelas.

Juntamente com o pedido, o banco apresentou um projeto que demonstra que a dimensão da reestruturação, necessária à viabilidade económica e financeira da empresa, obriga a ultrapassar o balizamento até agora estabelecido. E a predita análise determinará a rejeição do pedido ou a aprovação do estatuto que permite à instituição financeira a flexibilização da quota de que dispõe, em função da sua dimensão, para acordos com trabalhadores com vista a uma rescisão amigável, mantendo estes o direito ao subsídio de desemprego.

Está em causa um plano que prevê a saída de 800 trabalhadores (número indicativo, pois a margem situa-se entre os 600 e os 900), num universo de cerca de 3.560 trabalhadores no final de junho, sendo que, até final do ano, o banco deverá avançar com um programa de reformas antecipadas, tendo sido identificados 160 trabalhadores elegíveis, para lá de cerca de quatro dezenas de agências redundantes geograficamente, que fecharão portas. E, quanto às saídas através de rescisões por mútuo acordo (RMA), o banco, que recebeu as estruturas de trabalhadores, só as informou das saídas através de reformas antecipadas, este ano, não tendo adiantado qualquer número, que está dependente da decisão do Governo sobre o pedido de estatuto de empresa em reestruturação.

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Entretanto, a administração do BM já comunicou a todos os trabalhadores, por e-mail, que o plano de reestruturação prevê a redução de pessoal de entre 600 e 900 trabalhadores. Com efeito, no e-mail enviado no dia 25, Carlos Tavares (chairman) e Pedro Leitão (presidente executivo), com base nos cenários analisados e para um quadro plurianual, estimam “um intervalo máximo indicativo de redução de pessoas entre 600 a 900, tendo para o efeito sido requerida junto das entidades competentes a possibilidade de alargamento de quota para subsídio de desemprego”. Argumentando com as circunstâncias atuais e incertezas futuras, bem como os desafios que se colocam ao banco, ao setor e ao país, dizem ser necessário ajustar objetivos e medidas previstos no Plano de Transformação – ora em fase de consulta com os parceiros sociais e estruturas representativas dos trabalhadores a apresentar formalmente a todos os colaboradores no dia 6 de outubro (não há listas de pré-selecionados), com a adoção de um rigoroso programa de ajustamento multidimensional e plurianual” com vista a tornar o Montepio “um banco eficiente e rentável”.

O SNQTB (Sindicato Nacional dos Quadros e Técnicos Bancários) defende que o plano de redução de pessoal “se deve concentrar exclusivamente em reformas antecipadas e rescisões voluntárias de trabalhadores”. E, para o efeito, elaborou uma moção, que foi aprovada pela FECEC (Federação Europeia dos Quadros das Instituições de Crédito e Financeiras) a enviar ao Parlamento Europeu, referindo que “os sindicatos devem constituir-se como parceiros sociais essenciais neste processo”, que “nenhum plano poderá ser estabelecido sem a sua participação” e que a comissão executiva do BM deve dar o exemplo, começando por reduzir a sua folha de pagamento.

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A situação do BM tem sido deveras complexa. Desde as giravoltas da sua acionista maioritária, a Associação Mutualista Montepio Geral (AMMG), aos prejuízos e aos esforços para captar contratos de crédito à habitação com a oferta de bónus, passando pela instabilidade na administração, começando pela dificuldade em recrutar e selecionar um CEO até chegar à dança de cadeiras dos administradores executivos.   

Na verdade, o banco, que em tempos comprara o Finibanco, fechou o 1.º semestre do ano com prejuízos de mais de 50 milhões de euros devido à pandemia, embora tenha negado os efeitos da pandemia sobre o devir da instituição, já vinha enfrentando há mais tempo desafios do ponto de vista da rentabilidade, de geração de capital e da limpeza do malparado. Por outro lado, o acionista maioritário, a AMMG, que nos últimos anos tem vindo a injetar dinheiro no banco, também se encontra numa situação particularmente desafiante, como sublinharam os auditores da instituição. É Pedro Leitão o CEO do Banco Montepio desde fevereiro, após um longo período de indefinição na liderança do banco, e agora Dulce Mota, administradora responsável pela rede comercial, está de saída para a sociedade gestora de fundos do Montepio.

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Segundo o Expresso, deste dia 26, o BCP mostrou disponibilidade para uma fusão com o BM, caso seja necessária uma intervenção, disponibilidade já comunicada ao Governo em reunião entre administração do BCP e João Leão. Efetivamente, o Ministro das Finanças teve reuniões bilaterais com vários banqueiros para discutir as moratórias do crédito, medida aprovada, no dia 24, em Conselho de Ministros, e o tema do Montepio acabou por surgir sempre.

E, de facto, numa altura em que têm saído notícias sobre um plano de reestruturação do Montepio, com a dispensa de trabalhadores, que pode chegar a várias centenas, ganham nova atualidade as preocupações dos banqueiros e das Finanças.

Nem o BCP nem o Ministério das Finanças comentam esta informação de disponibilidade para com o BM, confirmando apenas as reuniões. Assim, o gabinete de João Leão deixou por responder todas as outras perguntas colocadas pelo Expresso, nomeadamente sobre a eventual disponibilidade de outros bancos (além do BCP) para participarem numa solução para o Montepio, o grau de preocupação com que as Finanças olham para este dossiê ou como lidará o Governo em cenário em que tenha a AMMG problemas de equilíbrio financeiro comprometedores das responsabilidades com as poupanças dos seus associados.

Na verdade, mesmo sem o dizer explicitamente, a gestão do BCP já tinha aberto a porta a uma eventual operação de consolidação, em julho, na apresentação de resultados do banco. Nessa altura, a propósito da eventual aquisição do NB, o presidente Miguel Maya referiu que o BCP não tem interesse “nenhum em crescer em Portugal e no estrangeiro por via de aquisições”, mas também alertou que, “em qualquer operação que vá ao mercado, é dever de uma gestão diligente olhar para ela”.

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De facto, a situação no Montepio é confusa. O presidente executivo terá escondido o plano de reestruturação que já entregou ao Banco de Portugal e confirmou aos sindicatos da banca que o plano existe. Refira-se que está em jogo a dispensa estimada de 800 trabalhadores, entre saídas por reformas antecipadas e rescisões por mútuo acordo, bem como o fecho de cerca de 40 balcões, número que, segundo o Expresso, passa para 80 balcões. Porém, o BM, apesar das várias insistências, não confirma nem desmente os números avançados pelo jornal online “ECO”. E, questionado sobre o que explica a necessidade duma reestruturação desta dimensão, se o banco vai precisar de capital e se, como dizem algumas fontes, o plano não foi aprovado em Conselho de Administração, mas apenas na Comissão Executiva, também não respondeu.

É certo que, no dia 24, houve uma reunião do Conselho de Administração do banco, mas não se sabe se o plano de reestruturação terá ido a essa reunião e se terá sido aprovado.

No dia 23, houve uma reunião de Pedro Leitão como o SNQTB (Sindicato Nacional dos Quadros e Técnicos Bancários), o SIB (Sindicato Independente da Banca) e o SBN (Sindicato dos Bancários do Norte), aos quais foi dito que vai haver um plano de reestruturação, mas nada lhes foi dito quanto ao número de saídas, apenas que o mesmo “contempla um plano alargado de reformas antecipadas e de rescisões de contratos de trabalho por mútuo acordo [RMA]” até 2021. E, considerando que a situação “é muito preo­cupante”, os sindicatos prometeram analisar “com detalhe o plano apresentado”, o que fizeram, como foi referido, no dia 25. Por outro lado, segundo o Expresso, há cerca de 200 trabalhadores cedidos pelo banco à AMMG, mas quanto a estes, segundo os sindicatos da banca, não se sabe se “vão ser abrangidos”.

A AMMG, dona maioritária do banco, ao ser questionada se foi informada do plano, quais as razões invocadas pela Comissão Executiva e se a situação do banco não irá implicar um reforço de capital, respondeu que “acompanha a vida do Banco Montepio, ainda que, naturalmente, existam maté­rias que se inscrevem na gestão do banco e do seu regulador”, e adiantou que “os processos de ajustamento, as suas dinâmicas de implementação e os impactos associados não deixam, contudo, de ser definidos e orientados no respeito pelos valores que inspiram a Associação Mutualista e todo o Grupo Montepio, garantindo, como tal, atenção particular às pessoas e às necessárias condições de aceitação e satisfação”. Já no atinente a eventuais necessidades de capital, a Mutualista diz que “acompanha o estudo das necessidades” e que “há soluções que passam pela otimização do capital existente no contexto regulatório”.

Por fim, é de frisar que o Banco de Portugal acompanha de perto o que se passa no BM. Pedro Leitão apresentou-lhe o plano de reestruturação em julho, embora só tenha dado entrada como documento a 15 de setembro, nomeadamente no que concernente à sua aprovação apenas pela Comissão Executiva, bem como à existência de eventuais necessidades de capital, mesmo havendo nesta altura uma flexibilização dos rácios por causa da pandemia.

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E era este banco em que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa queria investir em grande na perspetiva de socorro aos pobrezinhos acreditando que, metendo dois dos seus elementos na administração do banco, o salvariam por milagre, milagre que nem Deus faz, pois não joga nestes tabuleiros da compra e venda de dinheiro, do lucro destemperado, que dá bota!

Virá a acontecer que estejamos perante mais um caso de resolução bancária do género da do BES ou da do Banif? Nestes casos, Costa não é muito diferente de Passos. E os contribuintes cá estarão para pagar. Não se aflijam, nós somos ricos…

2020.09.26 – Louro de Carvalho