sábado, 19 de setembro de 2020

A veleidade da apresentação dum plano estratégico alternativo

 

Henrique Neto, empresário, antigo deputado à AR eleito em listas do PS e candidato à Presidência da República em 2016, considera que a “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030”, apresentada por António Costa Silva, sujeita a discussão pública nacional e reapresentada pelo seu autor inicial, “resultou num catálogo de ideias que não apresentam uma estratégia coerente, nem faz as escolhas necessárias”.

Ambos assentam em que se desenhará, “sem margem para grandes dúvidas, uma grave crise económica, financeira e social no nosso próximo futuro”, motivo pelo qual “as decisões a assumir pelo Governo e pelas oposições e a correção dos investimentos a realizar assumem uma importância determinante, sem margem para mais erros”.

Aduzindo que, em 2003 trabalhara com Veiga Simão e Jaime Lacerda numa síntese estratégica publicada pela AIP como parte da “Carta Magna da Competitividade”, baseada na experiência japonesa de 1946 de concisão, à semelhança do que, em tempo, fez publicar no semanário “O Diabo”, publicou, neste dia 19, no ECO, um texto que resulta da ampliação da referida síntese e a que chama “Um Plano Estratégico Alternativo”.

Considerando que o futuro do país “depende da capacidade de conjugar, a diversos níveis, os desafios e vantagens decorrentes da sua participação na UE com as oportunidades que podem resultar do desenvolvimento das suas relações extracomunitárias com os EUA e com os países da CPLP”, propõe um modelo económico que tenha “um enquadramento flexível”, privilegie “o desenvolvimento e modernização dos setores produtores de bens transacionáveis” desejáveis nos mercados externos, devido às suas caraterísticas de inovação, tecnologia e valor, e postule um “fator humano qualificado, culto e motivado”, bem como uma “produção científica e tecnológica organizada e o acesso rápido, fácil e barato ao mundo através de telecomunicações, de sistemas de informação e transportes” como “recursos essenciais”. Com efeito, como diz, “a criação de vantagens competitivas nos mercados europeus tradicionais e a diversificação das relações comerciais e de investimento impõem relações mais intensas da economia e do sistema científico e tecnológico com mercados e parceiros exigentes”. Por outras palavras, propõe:

Um forte empenho da sociedade portuguesa na economia do conhecimento baseado num crescimento sustentado, na qualidade e na inovação, e orientado para aumentos significativos da produção de bens e serviços transacionáveis”.

Entende ser necessário “dar à governação o necessário sentido de orientação”, dado que, a seu ver, não há outra síntese estratégica alternativa à da AIP, mas “estudos demasiado longos”, que dão para todos os gostos e não permitem escolhas claras nem a fácil compreensão dos portugueses. Mesmo as Grandes Opções do Plano são “uma aberração nacional”.

Refere que as escolhas que a se enunciam a seguir “fazem parte duma visão e duma realidade coerente com a estratégia descrita” acima, adaptada ao momento atual, mas cada uma delas, “só por si, melhoraria muito o nível da governação”, embora não resolvesse “as muitas contradições existentes na economia portuguesa”.

Portugal tem uma economia fortemente dual, com uma dualidade muito mais profunda do que as restantes economias europeias, cujos níveis de formação dos recursos humanos são melhores do que os nossos. Assim, por um lado, há uma economia de primeira, competitiva, constituída por empresas, nacionais e estrangeiras, a maioria exportadoras, com níveis tecnológicos semelhantes aos outros países do Ocidente, e, por outro lado, uma economia de segunda, a maioritária, “servida por recursos humanos com baixas qualificações e por empresas de muito pequena dimensão, de muito baixa produtividade do trabalho e a viver nas margens da sobrevivência”. Ora, para que o país tenha uma economia mais moderna, mais competitiva e mais exportadora, é essencial reduzir esta dualidade, o que implica encontrar empregos para os milhões de trabalhadores que não têm qualificações para trabalharem na economia de primeira.

Nestes termos, as escolhas que se impõem passam pelos seguintes parâmetros:

- O Interior. Na verdade, a parte mais pobre desta dualidade está bem representada no Interior, sobretudo no Centro e Norte. Para minimizar o problema, os fundos europeus podem ser usados para o Estado injetar dinheiro no Interior pela compra de terrenos agrícolas e florestais, cujos proprietários não tenham condições para a exploração. Ao mesmo tempo, urge o mapeamento do território e o início do processo de emparcelamento. E os terrenos com condições de exploração económica devem ser vendidos ou arrendados a famílias jovens e a empresas que tenham condições para a sua exploração. Porém, como o programa tem elevado potencial de corrupção, além da participação das autarquias, as compras e vendas devem ser aprovadas só pelo Tribunal de Contas, através de equipa especializada criada para o efeito.

- A Indústria. Será nela que o país pode encontrar a solução para a dualidade económica e melhorar a competitividade global da economia, sem soluções milagrosas. Com efeito, pelas suas caraterísticas, a indústria é o único setor cujo crescimento permite criar empregos para os trabalhadores dos setores pobres, pois, apesar de precisar de quadros e especialistas com elevadas qualificações, emprega operadores de máquinas, montadores, pintores, decoradores e embaladores – nos armazéns e nos transportes – trabalhadores passíveis de formação rápida.

A este respeito, Henrique Neto dá o exemplo da AutoEuropa, que Portugal precisa de replicar, não apenas no setor automóvel. Isto, porque ela trouxe para Portugal fornecedores estrangeiros; incentivou novas e antigas empresas nacionais a serem fornecedoras; permitiu um enorme salto nas exportações de maior valor, dado que as novas empresas se tornaram exportadoras dos mesmos componentes que aprenderam a fornecer para a Autoeuropa; e criou muitos milhares de postos de trabalho, com melhores qualificações e melhores remunerações.

- O Investimento Estrangeiro. A razão da sua necessidade tem a ver com a falta de capitais nacionais para grandes investimentos por via dos erros cometidos e das crises por que passámos. Porém, Portugal tem um capital que resulta da posição geográfica única entre os dois maiores mercados mundiais, Europa e América do Norte, e acesso fácil, rápido e barato a todos os continentes pelo porto de Sines, que devido ao transhipment, permite a paragem de grandes e pequenos navios porta-contentores. Por outro lado, as grandes empresas industriais deixaram de ser verticalizadas, sendo hoje meras montadoras que recebem componentes e sistemas de todo o mundo e exportam para todo o mundo os produtos finais. Ou seja, a qualidade e o custo da logística são os elementos essenciais que presidem à escolha do local para a instalação das novas fábricas, além de “uma força de trabalho a custos razoáveis, de leis laborais convincentes, custos de contexto competitivos e um meio de alguma qualidade para os dirigentes e quadros”, o que é possível fazer e tem de ser feito em Portugal. Todavia, a atração do investimento estrangeiro de grandes empresas é tarefa complexa, que requer pessoas de elevada qualidade, com muita experiência, personalidades existentes em Portugal, “se sairmos do quadro fechado dos quadros partidários”, demasiado jovens para serem convincentes no plano internacional.

- A Questão Ferroviária. Qualquer empresa que pretenda criar uma nova fábrica necessita das condições acima descritas e do acesso fácil, rápido e barato à Europa para as importações e exportações, o que não acontece em Portugal pelo facto de os governos terem decidido alterar a decisão da UE (Neto acusa o PS) e manterem a bitola ibérica na nossa ferrovia, tornando Portugal na única ilha ferroviária da UE. Ora, a UE decidiu, há já bastantes anos, pela interoperabilidade da ferrovia em toda a União para: melhorar a competitividade dos transportes europeus e da economia europeia em competição com os outros blocos económicos; superar o envelhecimento de algumas ferrovias de alguns países relativamente a outros, colocando todos, na medida do possível, em condições iguais; substituir o avião em viagens até 1000 Km, pelo comboio de alta velocidade para passageiros; substituir o camião, que utiliza energias fósseis pela ferrovia de longas distâncias, que utiliza energia eléctrica não poluente, com maior eficiência energética e a mais baixo custo; evitar o congestionamento das estradas, o atravessamento dos países pelos camiões vindos do exterior e reduzir os acidentes; e contrariar o nacionalismo ainda existente em algumas ferrovias, com prejuízos óbvios para toda a UE. São decisões que “valorizam a competição e a concorrência, mas também o progresso económico, social e ambiental” e que não se percebe porque não têm acolhimento em Portugal, dizendo o Governo que há soluções tecnológicas adequadas sem dizer quais, suspeitando-se que o entrave seja o economicismo.

Henrique Neto faz questão de anotar que, no último meio século, a nossa economia viveu dois períodos extremamente positivos. O primeiro foi o subsequente à adesão à EFTA, crescendo a economia em média 6% ao ano e durante vários anos. Os investidores estrangeiros investiram na nossa indústria aproveitando os baixos custos em mão-de-obra e outras condições favoráveis. Os setores do têxtil, calçado e confeção nasceram desse movimento e deram origem a muitas empresas nacionais. O segundo período foi o que resultou da fundação da Autoeuropa, com os apoios do Estado – financeiro mas também técnico – disponibilidade e qualidade da engenharia portuguesa, qualidade da localização e o porto de Setúbal. Porém, a não existência de ferrovia adequada – nomeadamente a bitola UCI – de ligação à Alemanha é “forte motivo de queixa”.

E o estratega, concluindo que o sucesso destes dois períodos resultou dos mesmos fatores – investimento industrial, investimento estrangeiro e exportações – diz que “o mercado interno nunca foi uma questão”, o que o leva a sustentar que “são estes os mesmos fatores necessários para que Portugal possa, novamente, sair deste período de estagnação económica de vinte anos”.

Contudo, há outras alternativas, pelo menos a nível da complementaridade, “como sejam os modernos setores tecnológicos, na investigação científica, na energia, na criação de marcas comerciais, etc.”. Entretanto, Neto recorda que Portugal tem à sua conta suficientes desastres financeiros resultantes de excesso de voluntarismo, pobre em conhecimento e em experiência, mas rico em corrupção, e não abundam em Portugal os quadros e os trabalhadores com elevadas qualificações e temos a viver na mais profunda degradação económica milhões de portugueses.

- As Exportações. Os países da UE da nossa dimensão exportam ente 60% e 85% do PIB e a Irlanda 105%. Portugal exporta 40%-45% e nenhuma economia, com um mercado interno de apenas 10 milhões, pode sobreviver com menos de 70-80% de exportações sobre o PIB. Com efeito, uma empresa industrial de qualquer setor não justifica o investimento nos mais modernos equipamentos, altamente produtivos, mas muito caros e que, em muitos casos, poderão produzir em poucas semanas o consumo nacional de um ano. Assim, as empresas que estão no mercado nacional deixam de ser competitivas e Portugal torna-se importador dos mesmos produtos a mais baixo preço. Por isso, sem aumento substancial de exportações e crescimento industrial, a metade pobre da nossa economia continuará a manter Portugal no fim da tabela da criação de riqueza per capita dos países da UE, pois “em economia não há milagres”.

- A Educação. A grande razão para a existência duma economia dual da dimensão da portuguesa é a fraca educação e formação dos portugueses, o que se reproduz na família e passa de geração para geração. Se nada for feito, o problema levará várias gerações até haver uma redução substancial e suficiente da pobreza e da ignorância. E o problema não se resolve, como muitos pensam, através do ensino universitário, mas enquanto as crianças – todas – não chegarem em igualdade de condições ao ensino obrigatório. Por isso, na opinião de Neto, a alternativa “é criar um programa nacional de creches e de pré-escolar que retire as crianças das famílias o maior número de horas possíveis de cada dia, para em instituições da mais elevada qualidade, com bons educadores, boa alimentação e transporte”, poderem chegar à entrada do ensino obrigatório em condições similares às das crianças das famílias das classes com melhor ambiente familiar.

Desta forma poderemos mudar o País numa geração. Porém, sem fazer nada neste domínio, o crescimento industrial poderá ajudar, “mas será um processo muito mais lento”.

***

Enferma o plano de Henrique Neto dos mesmos defeitos do de António Costa e Silva. Nem um nem outro constituem uma estratégia inequívoca e completa e não apresentam planos de ação com as devidas componentes de opção, custos, intervenientes e calendarização.

O plano de Costa e Silva revela uma visão mais abrangente especificada em 10 eixos, ao passo que o de Neto se escuda em 6 parâmetros que não constituem por si opções axiais. Por exemplo, a “questão ferroviária”, que é importante, não vale por si só, tal como as exportações, pois, embora a bitola europeia seja necessária, não resolve por si o nosso problema económico e, embora as exportações sejam tão necessárias como o pão para a boca, uma empresa que se dedique penas à exportação, perderá muito se não quiser sujeitar os seus produtos ao controlo interno e poderá ser considerada parasita se recusar contribuir para a colmatação da necessidades internas. Por outro lado, enquanto Neto, em termos educativos, valoriza as creches e a educação pré-escolar, Silva valoriza o ensino superior – ambas valorizações relevantes. Também, pouco importa um TGV se for montado em bitola ibérica e não nos ligar à Europa.

Por isso, talvez o plano de Costa e Silva deva integrar alguns contributos de Henrique Neto, que não sei se os ofereceu no âmbito da discussão pública.

Enfim, menos exclusões e mais cooperação para fazer o que está por fazer!

2020.09.19 – Louro de Carvalho

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