A recente polémica em torno da disciplina “Cidadania e Desenvolvimento”, que parece tornar-se duradoura,
embora originada num mero caso familiar – que agora redundou em mentor de
encarregados de educação através do fornecimento de minuta de requerimento a apresentar
às escolas com vista à dispensa da frequência da dita disciplina por parte dos
educandos, veio levantar a questão mais grave das finalidades da educação e das
funções da escola.
A este respeito, o antigo governante socialista António Barreto,
travestido de inquestionável sábio, veio sentenciar, na edição do Público do passado dia 13 de setembro,
que “a escola deve ser democrática, na sua função social, permitindo o acesso
de todos, mas não deve ensinar a democracia nem a cidadania” e muito menos não
deve “orientar comportamentos e atitudes, modelar espíritos e formar
consciências”.
O enunciado de Barreto é contrário ao que está inscrito na maior parte
dos projetos educativos que abundam pelo país fora, em resultado do imperativo
criado pelo Decreto-Lei n.º 43/89, de 3 de fevereiro, do 2.º Governo liderado pelo
insuspeito Professor Cavaco Silva. E contraria os critérios de avaliação
correntes nas diversas escolas que levam à avaliação da aquisição e desenvolvimento
de saberes e à evidência de atitudes e comportamentos que significam e
representam valores – dinâmica que até ao artigo de Barreto não tem sido
contestada.
Se é difícil explicar como pode uma escola ser democrática sem ensinar a
democracia e a vida em democracia, a não ser que a exerça de forma encriptada e
a imponha de forma cega – o que já não é democracia –, é igualmente insustentável
termos uma escola que não inculque valores, que não forme cidadãos, que não
contribua para a formação de mentalidades e de consciências, que não induza o
respeito pelos parâmetros éticos estabelecidas na Constituição, nas leis, nos
códigos deontológicos e nos códigos de conduta ou que não tenha em conta a
necessidade de conhecimento das crenças das
gerações anteriores e das atuais.
E, pegando
no exemplo das escolas de condução, que muitas vezes preparam mais para exame
do que para a competência na condução, pergunto-me se as regras do código e as
aulas de condução não induzem, tantas vezes de forma explícita, à prudência, à
cautela, à urbanidade, ao civismo, à tolerância, ao respeito pela vida e pelos haveres
e à hipótese de que outros não cumprem as regras e as normas da convivência social.
A escola sempre ensinou o civismo.
Tudo isto António
Barreto nega ex cathedra sobretudo
para a escolaridade obrigatória. Talvez, pelos vistos lhe conceda palco no
ensino universitário e no politécnico… já que a escolaridade obrigatória é de
12 anos e que, à Barreto, terá de ser manca. Justiça deve ser feita aos 85
subscritores da petição pela objeção de consciência que não pediram tanto, quiçá
por soar mal.
Estou-me nas
tintas para o facto de Barreto não conseguir enunciar corretamente o nome da
disciplina que, no seu entender, deveria desaparecer do currículo. Aliás, a Cidadania e Desenvolvimento não figura
como disciplina em todos os ciclos de ensino, mas em todos a Cidadania e Desenvolvimento, no quadro da
educação para a cidadania, é assumida
como um imperativo transversal a todo o currículo. Por isso, não faz sentido
uma objeção de consciência, legítima no nosso ordenamento jurídico, em relação a
qualquer disciplina, a não ser naquela que seja explicitamente confessional
como é a EMRC ou a EMR de outras confissões.
Mas Barreto,
com o ar grave de profeta do regime, defende a ideia utópica e até reacionária
da escola neutra em matéria de princípios e valores, fazendo equivaler o educar
para os direitos humanos, a igualdade, a tolerância, a democracia ou a saúde à
imposição de ideologias ou religiões e equiparando a pluralidade, o diálogo, o
debate e o confronto de ideias com o pensamento único e a doutrinação próprios
dos regimes totalitários. A ideia de que à família compete educar e à escola instruir
é hoje irrealista, quando as famílias trabalham fora de horas, sem tempo para
os filhos, que ficam fora da escola entregues a centros de ocupação de tempos
livres, a avós mais que fatigados ou a pessoas que, não tendo capacidade de trabalho,
também não têm apetências educativas. Hoje, salvo poucas exceções, a escola tem
responsabilidade sobre quase tudo o que se passa com os alunos, mas sem
desresponsabilizar as famílias.
É certo que
estereótipos e preconceitos discriminatórios se perpetuam precisamente por
serem normalizados e relativizados, em vez de questionados e combatidos, e que
há desigualdades sociais e défices de cidadania ativa que a escola só por si
não pode anular, mas que deve fazer a sua parte para ajudar a corrigir. Por outro
lado, o pretenso combate ideológico nem sequer opõe a escola à família, como
pretendem os pregoeiros da neutralidade educativa: trata-se cada vez mais de
lutar contra o mundo das fake news,
do discurso de ódio, das seitas e do ciberbullying
que proliferam nos media sensacionalistas e nas redes sociais – realidade
incontornável, embora haja pais convencidos de que sabem educar os filhos numa
redoma, imunes às influências e tentações do mundo que os rodeia. Assim, ajudar
as novas gerações a distinguir as sementes do ódio e da intolerância, do
assédio e da discriminação, do abuso e da violência que germinam à sua volta é tarefa
de que as escolas não se podem alhear. Fazer dos alunos cidadãos conscientes
dos seus direitos, respeitadores do próximo e cumpridores dos seus deveres não
é doutrinação, mas capacitação para viver, de forma livre e responsável, em
sociedade – como é próprio da natureza humana, sendo pouco relevante a
existência ou não duma disciplina autónoma, mas imperativa a formação de
cidadãos, como responsabilidade de todas as disciplinas, de todos os
professores.
Não obstante,
a escola só ganha se oferecer uma disciplina de frequência obrigatória nalgum(ns) ciclo(s) de ensino, para fazer vincar os
itens mais pertinentes.
***
Já antes
da publicação da LBSE (Lei de Bases do Sistema Educativo), os professores que se
sujeitaram à profissionalização em exercício, estabelecida pelo Decreto-Lei n.º
580/80, de 31 de dezembro (num governo da insuspeita AD), tinham de saber que a ação
educativa tinha como objetivos o desenvolvimento do “eu” do aluno e a sua capacitação
para a intervenção na vida pública, bem como o desenvolvimento do espírito
crítico e da capacidade de autonomia e responsabilidade pessoal. Depois, a
LBSE, cuja primeira formulação foi aprovada quase unanimemente pela Lei n.º
46/86, de 14 de outubro, estabelece, no seu artigo 2.º (nunca
revogado), que “o sistema
educativo responde às necessidades resultantes da realidade social,
contribuindo para o desenvolvimento pleno e harmonioso da personalidade dos
indivíduos, incentivando a formação de cidadãos livres, responsáveis, autónomos
e solidários e valorizando a dimensão humana do trabalho” (n.º 4); e que “a educação promove o desenvolvimento do
espírito democrático e pluralista, respeitador dos outros e das suas ideias,
aberto ao diálogo e à livre troca de opiniões, formando cidadãos capazes de
julgarem com espírito crítico e criativo o meio social em que se integram e de
se empenharem na sua transformação progressiva” (n.º 5).
Ora,
digam-me como se podem ter “cidadãos livres, responsáveis, autónomos e solidários
e valorizando a dimensão humana do trabalho” ou “cidadãos capazes de julgarem com espírito crítico e
criativo o meio social em que se integram e de se empenharem na sua
transformação progressiva” sem
uma efetiva educação para a cidadania.
***
Aqui se deixa uma resenha sobre os
quatro pilares da Educação, que são conceitos de fundamento da educação baseados
no Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre
Educação para o Século XXI, coordenada por Jacques Delors:
- Aprender a conhecer, que se refere à
aquisição dos “instrumentos do conhecimento”, aprendizagem a encarar como
um meio e uma finalidade da vida humana, visa sobretudo o domínios dos instrumentos do conhecimento, levando cada um a
aprender a compreender o mundo que o cerca. Debruça-se sobre o raciocínio
lógico, compreensão, dedução, memória, ou seja, sobre os processos
cognitivos por excelência. Contudo, deve existir a preocupação de
despertar no estudante, não só estes processos em si, como o desejo de os
desenvolver, a vontade de aprender, de querer saber mais e melhor.
Com vista a
este objetivo, sugere-se o incentivo, não só do pensamento dedutivo, como
também do intuitivo, porque, se é importante ensinar o “espírito” e método
científicos ao estudante, não é menos importante ensiná-lo a lidar com a sua
intuição, de modo a que possa chegar às suas próprias conclusões e aventurar-se
sozinho pelos domínios do saber e do desconhecido.
- Aprender a fazer. O progresso técnico
modifica as qualificações exigidas pelos novos processos de produção. As
tarefas puramente físicas são substituídas por tarefas de produção mais
intelectuais ou mentais, como o comando de máquinas, a sua manutenção e sua
vigilância, ou por tarefas de conceção, de estudo e de organização, à medida
que as máquinas se tornam mais “inteligentes”, e que o trabalho se
“desmaterializa” . Qualidades como a capacidade de comunicar, trabalhar
com os outros, gerenciar e resolver conflitos são cada vez mais importantes,
tendência que se torna mais forte devido ao desenvolvimento do setor de
serviços.
Agora, as
relações interpessoais mostram-se cada vez mais importantes para a
solidificação de uma educação que traga a criticidade ao educando. Assim, o aprender a fazer refere-se à formação do
educando, ou seja, levá-lo a aplicar, na prática, os seus conhecimentos
teóricos.
Mais é
essencial que cada indivíduo saiba comunicar, não só retendo e transmitindo
informação, mas também interpretando e selecionando as torrentes de informação com
que somos bombardeados diariamente, analisando diferentes perspetivas e
refazendo as suas próprias opiniões mediante novos factos – o que envolve uma
série de técnicas a serem trabalhadas. Trata-se de aprender a conhecer, combinando uma cultura geral, suficientemente
vasta, com a possibilidade de trabalhar em profundidade um pequeno número de
matérias, ou seja, aprender a aprender para
beneficiar das oportunidades oferecidas pela educação ao longo de toda a vida.
- Aprender a conviver é um dos maiores desafios para os educadores, pois atua no
campo das atitudes e valores, cabendo aqui o combate ao conflito, ao preconceito,
às rivalidades milenares ou diárias, tornando-se a educação um veículo de paz,
tolerância e compreensão. Para obviar a este desafio, o relatório para UNESCO avança uma proposta baseada em dois princípios: a
“descoberta progressiva do outro” pois, sendo o desconhecido a grande fonte de
preconceitos, o conhecimento real da diversidade humana combate diretamente
este “desconhecido”; e a participação em projetos comuns que surge como veículo
preferencial na diluição de atritos e na descoberta de pontos comuns. Com efeito, a educação tem por
missão transmitir conhecimentos sobre a diversidade da espécie humana e conscientizar
as pessoas sobre as semelhanças e interdependências que existem entre todos os
cidadãos do planeta. Depois, as diferenças e até mesmo os conflitos
interindividuais tendem a reduzir-se quando os jovens trabalham conjuntamente
em projetos motivadores, valorizando a coletividade em detrimento da mera
individualidade e provocado a inserção de jovens em projetos de ajuda social.
- Aprender a ser. Este pilar da aprendizagem depende diretamente dos
outros três. Considera-se que a Educação ter como finalidade o desenvolvimento
total do indivíduo “espírito e corpo, sensibilidade, sentido estético,
responsabilidade pessoal, espiritualidade”. À semelhança
do aprender a viver com os outros,
fala-se aqui da educação de valores e atitudes, mas agora direcionados
concretamente para o desenvolvimento individual, já que se pretende formar indivíduos autónomos, intelectualmente ativos e independentes,
capazes de estabelecerem relações interpessoais, de comunicarem e
evoluírem permanentemente, de intervirem de forma consciente e proativa na
sociedade.
Assim, a educação tem como papel essencial conferir a todos
os seres humanos a liberdade de pensamento, o discernimento, os sentimentos e a
imaginação de que necessitam para desenvolverem os seus talentos e
permanecerem, tanto quanto possível, donos de seus próprios destinos. A diversidade de personalidades, a autonomia e o espírito de iniciativa e
mesmo o gozo pela provocação são suportes da criatividade e da inovação.
O que poderia parecer apenas como uma forma de defesa do indivíduo face a um
sistema alienante ou mesmo hostil é também a melhor oportunidade de progresso
para as sociedades.
***
Neste contexto
percebe-se bem que a escola, sem substituir as famílias tem de se assumir como
espaço privilegiado de educação, instrução e formação, caldeando a transmissão de
saberes com a sua busca ativa e autónoma, bem servida pelo necessário e
conveniente apoio.
Porém, a cidadania, sob pena de ser contraditória em si, não
pode ter uma definição unívoca e doutrinária, o que não quer dizer que a
polémica corrente seja sobre cidadania. É-o, antes, sobre dois conteúdos programáticos
fraturantes que aborda, não sendo lícito fazê-la cair por isso.
Também os
pregoeiros da polémica não estão movidos por questões pedagógicas ou cívicas,
mas por motivações ideológicas e credos.
Por isso,
importa sublinhar que transmitir conhecimentos e desenvolver competências que façam
dos alunos bons cidadãos – exercendo os seus direitos, conscientes dos seus
deveres, sociáveis, tolerantes, solidários – é uma responsabilidade da escola,
que é aconfessional, mas não é neutra. Por outro lado, sobretudo em temas não consensuais
cientificamente ou mesmo fraturantes, a abordagem não pode escudar-se numa
única visão, mas deve promover o diálogo, o confronto e a discussão de ideias,
pois a sociedade livre e democrática em que desejamos viver constrói-se na
pluralidade, rejeitando os dogmas e o pensamento único, cabendo aos pais levar
os filhos, já informados, a opções consentâneas com os respetivos credos e
ideologias.
E é de
vincar que a Cidadania não pode constituir apenas um repositório de princípios
que se aprendem, mas não se praticam. A cidadania ativa a promover é
indissociável da conceção de escola bem mais democrática, autónoma e tolerante
do que a atual, onde campeia a tentação para a uniformidade, a sujeição ao
poder e o medo de se exprimir, quando a liberdade e o são profissionalismo
seriam portadores de mais esperança de justiça e solidariedade.
2020.09.17 –
Louro de Carvalho
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