quinta-feira, 17 de setembro de 2020

A escola deve mesmo ensinar a democracia e a cidadania

 

A recente polémica em torno da disciplina “Cidadania e Desenvolvimento”, que parece tornar-se duradoura, embora originada num mero caso familiar – que agora redundou em mentor de encarregados de educação através do fornecimento de minuta de requerimento a apresentar às escolas com vista à dispensa da frequência da dita disciplina por parte dos educandos, veio levantar a questão mais grave das finalidades da educação e das funções da escola.

A este respeito, o antigo governante socialista António Barreto, travestido de inquestionável sábio, veio sentenciar, na edição do Público do passado dia 13 de setembro, que “a escola deve ser democrática, na sua função social, permitindo o acesso de todos, mas não deve ensinar a democracia nem a cidadania” e muito menos não deve “orientar comportamentos e atitudes, modelar espíritos e formar consciências”. 

O enunciado de Barreto é contrário ao que está inscrito na maior parte dos projetos educativos que abundam pelo país fora, em resultado do imperativo criado pelo Decreto-Lei n.º 43/89, de 3 de fevereiro, do 2.º Governo liderado pelo insuspeito Professor Cavaco Silva. E contraria os critérios de avaliação correntes nas diversas escolas que levam à avaliação da aquisição e desenvolvimento de saberes e à evidência de atitudes e comportamentos que significam e representam valores – dinâmica que até ao artigo de Barreto não tem sido contestada.

Se é difícil explicar como pode uma escola ser democrática sem ensinar a democracia e a vida em democracia, a não ser que a exerça de forma encriptada e a imponha de forma cega – o que já não é democracia –, é igualmente insustentável termos uma escola que não inculque valores, que não forme cidadãos, que não contribua para a formação de mentalidades e de consciências, que não induza o respeito pelos parâmetros éticos estabelecidas na Constituição, nas leis, nos códigos deontológicos e nos códigos de conduta ou que não tenha em conta a necessidade de conhecimento das crenças das gerações anteriores e das atuais.

E, pegando no exemplo das escolas de condução, que muitas vezes preparam mais para exame do que para a competência na condução, pergunto-me se as regras do código e as aulas de condução não induzem, tantas vezes de forma explícita, à prudência, à cautela, à urbanidade, ao civismo, à tolerância, ao respeito pela vida e pelos haveres e à hipótese de que outros não cumprem as regras e as normas da convivência social. A escola sempre ensinou o civismo.  

Tudo isto António Barreto nega ex cathedra sobretudo para a escolaridade obrigatória. Talvez, pelos vistos lhe conceda palco no ensino universitário e no politécnico… já que a escolaridade obrigatória é de 12 anos e que, à Barreto, terá de ser manca. Justiça deve ser feita aos 85 subscritores da petição pela objeção de consciência que não pediram tanto, quiçá por soar mal.

Estou-me nas tintas para o facto de Barreto não conseguir enunciar corretamente o nome da disciplina que, no seu entender, deveria desaparecer do currículo. Aliás, a Cidadania e Desenvolvimento não figura como disciplina em todos os ciclos de ensino, mas em todos a Cidadania e Desenvolvimento, no quadro da educação para a cidadania, é assumida como um imperativo transversal a todo o currículo. Por isso, não faz sentido uma objeção de consciência, legítima no nosso ordenamento jurídico, em relação a qualquer disciplina, a não ser naquela que seja explicitamente confessional como é a EMRC ou a EMR de outras confissões.  

Mas Barreto, com o ar grave de profeta do regime, defende a ideia utópica e até reacionária da escola neutra em matéria de princípios e valores, fazendo equivaler o educar para os direitos humanos, a igualdade, a tolerância, a democracia ou a saúde à imposição de ideologias ou religiões e equiparando a pluralidade, o diálogo, o debate e o confronto de ideias com o pensamento único e a doutrinação próprios dos regimes totalitários. A ideia de que à família compete educar e à escola instruir é hoje irrealista, quando as famílias trabalham fora de horas, sem tempo para os filhos, que ficam fora da escola entregues a centros de ocupação de tempos livres, a avós mais que fatigados ou a pessoas que, não tendo capacidade de trabalho, também não têm apetências educativas. Hoje, salvo poucas exceções, a escola tem responsabilidade sobre quase tudo o que se passa com os alunos, mas sem desresponsabilizar as famílias.  

É certo que estereótipos e preconceitos discriminatórios se perpetuam precisamente por serem normalizados e relativizados, em vez de questionados e combatidos, e que há desigualdades sociais e défices de cidadania ativa que a escola só por si não pode anular, mas que deve fazer a sua parte para ajudar a corrigir. Por outro lado, o pretenso combate ideológico nem sequer opõe a escola à família, como pretendem os pregoeiros da neutralidade educativa: trata-se cada vez mais de lutar contra o mundo das fake news, do discurso de ódio, das seitas e do ciberbullying que proliferam nos media sensacionalistas e nas redes sociais – realidade incontornável, embora haja pais convencidos de que sabem educar os filhos numa redoma, imunes às influências e tentações do mundo que os rodeia. Assim, ajudar as novas gerações a distinguir as sementes do ódio e da intolerância, do assédio e da discriminação, do abuso e da violência que germinam à sua volta é tarefa de que as escolas não se podem alhear. Fazer dos alunos cidadãos conscientes dos seus direitos, respeitadores do próximo e cumpridores dos seus deveres não é doutrinação, mas capacitação para viver, de forma livre e responsável, em sociedade – como é próprio da natureza humana, sendo pouco relevante a existência ou não duma disciplina autónoma, mas imperativa a formação de cidadãos, como responsabilidade de todas as disciplinas, de todos os professores.

Não obstante, a escola só ganha se oferecer uma disciplina de frequência obrigatória nalgum(ns) ciclo(s) de ensino, para fazer vincar os itens mais pertinentes.

***

Já antes da publicação da LBSE (Lei de Bases do Sistema Educativo), os professores que se sujeitaram à profissionalização em exercício, estabelecida pelo Decreto-Lei n.º 580/80, de 31 de dezembro (num governo da insuspeita AD), tinham de saber que a ação educativa tinha como objetivos o desenvolvimento do “eu” do aluno e a sua capacitação para a intervenção na vida pública, bem como o desenvolvimento do espírito crítico e da capacidade de autonomia e responsabilidade pessoal. Depois, a LBSE, cuja primeira formulação foi aprovada quase unanimemente pela Lei n.º 46/86, de 14 de outubro, estabelece, no seu artigo 2.º (nunca revogado), que “o sistema educativo responde às necessidades resultantes da realidade social, contribuindo para o desenvolvimento pleno e harmonioso da personalidade dos indivíduos, incentivando a formação de cidadãos livres, responsáveis, autónomos e solidários e valorizando a dimensão humana do trabalho(n.º 4); e que “a educação promove o desenvolvimento do espírito democrático e pluralista, respeitador dos outros e das suas ideias, aberto ao diálogo e à livre troca de opiniões, formando cidadãos capazes de julgarem com espírito crítico e criativo o meio social em que se integram e de se empenharem na sua transformação progressiva(n.º 5).

Ora, digam-me como se podem ter “cidadãos livres, responsáveis, autónomos e solidários e valorizando a dimensão humana do trabalho ou “cidadãos capazes de julgarem com espírito crítico e criativo o meio social em que se integram e de se empenharem na sua transformação progressiva sem uma efetiva educação para a cidadania.

***

Aqui se deixa uma resenha sobre os quatro pilares da Educação, que são conceitos de fundamento da educação baseados no Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, coordenada por Jacques Delors:

- Aprender a conhecer, que se refere à aquisição dos “instrumentos do conhecimento”, aprendizagem a encarar como um meio e uma finalidade da vida humana, visa sobretudo o domínios dos instrumentos do conhecimento, levando cada um a aprender a compreender o mundo que o cerca. Debruça-se sobre o raciocínio lógico, compreensão, dedução, memória, ou seja, sobre os processos cognitivos por excelência. Contudo, deve existir a preocupação de despertar no estudante, não só estes processos em si, como o desejo de os desenvolver, a vontade de aprender, de querer saber mais e melhor.

Com vista a este objetivo, sugere-se o incentivo, não só do pensamento dedutivo, como também do intuitivo, porque, se é importante ensinar o “espírito” e método científicos ao estudante, não é menos importante ensiná-lo a lidar com a sua intuição, de modo a que possa chegar às suas próprias conclusões e aventurar-se sozinho pelos domínios do saber e do desconhecido.

- Aprender a fazer. O progresso técnico modifica as qualificações exigidas pelos novos processos de produção. As tarefas puramente físicas são substituídas por tarefas de produção mais intelectuais ou mentais, como o comando de máquinas, a sua manutenção e sua vigilância, ou por tarefas de conceção, de estudo e de organização, à medida que as máquinas se tornam mais “inteligentes”, e que o trabalho se “desmaterializa” . Qualidades como a capacidade de comunicar, trabalhar com os outros, gerenciar e resolver conflitos são cada vez mais importantes, tendência que se torna mais forte devido ao desenvolvimento do setor de serviços.

Agora, as relações interpessoais mostram-se cada vez mais importantes para a solidificação de uma educação que traga a criticidade ao educando. Assim, o aprender a fazer refere-se à formação do educando, ou seja, levá-lo a aplicar, na prática, os seus conhecimentos teóricos.

Mais é essencial que cada indivíduo saiba comunicar, não só retendo e transmitindo informação, mas também interpretando e selecionando as torrentes de informação com que somos bombardeados diariamente, analisando diferentes perspetivas e refazendo as suas próprias opiniões mediante novos factos – o que envolve uma série de técnicas a serem trabalhadas. Trata-se de aprender a conhecer, combinando uma cultura geral, suficientemente vasta, com a possibilidade de trabalhar em profundidade um pequeno número de matérias, ou seja, aprender a aprender para beneficiar das oportunidades oferecidas pela educação ao longo de toda a vida.

- Aprender a conviver é um dos maiores desafios para os educadores, pois atua no campo das atitudes e valores, cabendo aqui o combate ao conflito, ao preconceito, às rivalidades milenares ou diárias, tornando-se a educação um veículo de paz, tolerância e compreensão. Para obviar a este desafio, o relatório para UNESCO avança uma proposta baseada em dois princípios: a “descoberta progressiva do outro” pois, sendo o desconhecido a grande fonte de preconceitos, o conhecimento real da diversidade humana combate diretamente este “desconhecido”; e a participação em projetos comuns que surge como veículo preferencial na diluição de atritos e na descoberta de pontos comuns. Com efeito, a educação tem por missão transmitir conhecimentos sobre a diversidade da espécie humana e conscientizar as pessoas sobre as semelhanças e interdependências que existem entre todos os cidadãos do planeta. Depois, as diferenças e até mesmo os conflitos interindividuais tendem a reduzir-se quando os jovens trabalham conjuntamente em projetos motivadores, valorizando a coletividade em detrimento da mera individualidade e provocado a inserção de jovens em projetos de ajuda social.

- Aprender a ser. Este pilar da aprendizagem depende diretamente dos outros três. Considera-se que a Educação ter como finalidade o desenvolvimento total do indivíduo “espírito e corpo, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade”. À semelhança do aprender a viver com os outros, fala-se aqui da educação de valores e atitudes, mas agora direcionados concretamente para o desenvolvimento individual, já que se pretende formar indivíduos autónomos, intelectualmente ativos e independentes, capazes de estabelecerem relações interpessoais, de comunicarem e evoluírem permanentemente, de intervirem de forma consciente e proativa na sociedade.

Assim, a educação tem como papel essencial conferir a todos os seres humanos a liberdade de pensamento, o discernimento, os sentimentos e a imaginação de que necessitam para desenvolverem os seus talentos e permanecerem, tanto quanto possível, donos de seus próprios destinos. A diversidade de personalidades, a autonomia e o espírito de iniciativa e mesmo o gozo pela provocação são suportes da criatividade e da inovação.  O que poderia parecer apenas como uma forma de defesa do indivíduo face a um sistema alienante ou mesmo hostil é também a melhor oportunidade de progresso para as sociedades.

***

Neste contexto percebe-se bem que a escola, sem substituir as famílias tem de se assumir como espaço privilegiado de educação, instrução e formação, caldeando a transmissão de saberes com a sua busca ativa e autónoma, bem servida pelo necessário e conveniente apoio.

Porém, a cidadania, sob pena de ser contraditória em si, não pode ter uma definição unívoca e doutrinária, o que não quer dizer que a polémica corrente seja sobre cidadania. É-o, antes, sobre dois conteúdos programáticos fraturantes que aborda, não sendo lícito fazê-la cair por isso.    

Também os pregoeiros da polémica não estão movidos por questões pedagógicas ou cívicas, mas por motivações ideológicas e credos.   

Por isso, importa sublinhar que transmitir conhecimentos e desenvolver competências que façam dos alunos bons cidadãos – exercendo os seus direitos, conscientes dos seus deveres, sociáveis, tolerantes, solidários – é uma responsabilidade da escola, que é aconfessional, mas não é neutra. Por outro lado, sobretudo em temas não consensuais cientificamente ou mesmo fraturantes, a abordagem não pode escudar-se numa única visão, mas deve promover o diálogo, o confronto e a discussão de ideias, pois a sociedade livre e democrática em que desejamos viver constrói-se na pluralidade, rejeitando os dogmas e o pensamento único, cabendo aos pais levar os filhos, já informados, a opções consentâneas com os respetivos credos e ideologias.

E é de vincar que a Cidadania não pode constituir apenas um repositório de princípios que se aprendem, mas não se praticam. A cidadania ativa a promover é indissociável da conceção de escola bem mais democrática, autónoma e tolerante do que a atual, onde campeia a tentação para a uniformidade, a sujeição ao poder e o medo de se exprimir, quando a liberdade e o são profissionalismo seriam portadores de mais esperança de justiça e solidariedade.

2020.09.17 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário