Às 11,30 horas
do dia 22 de setembro, na Sala de Imprensa “João Paulo II” da Sala de Imprensa
da Santa Sé, foi apresentada, em conferência de imprensa, a Carta Bonus
Samaritanus, da Congregação
para a Doutrina da Fé (CDF), sobre o cuidado das pessoas nas
fases crítica e terminal da vida, com intervenções do Cardeal Luis Francisco Ladaria
Ferrer, SI, Prefeito da CDF, Dom Giacomo Morandi, Secretário da CDF, Prof.
Gabriella Gambino, Subsecretária do Dicastério para os Leigos, Família e Vida, e
Prof. Adriano Pessina, Membro da Direção da Pontifícia Academia para a Vida.
O Cardeal
Luis Ladaria revelou que, em 2018, os Padres do Dicastério sugeriram, sobre
os temas relativos ao acompanhamento dos enfermos nas fases crítica e terminal
da vida, a conveniência dum Documento que trate do assunto de forma
doutrinariamente correta e com forte acento pastoral em linguagem
compreensível, consonante com o progresso das ciências médicas, aprofundando os
temas do acompanhamento e cuidado dos enfermos a nível teológico, antropológico
e médico-hospitalar e focalizando algumas questões éticas relevantes relativas
à proporcionalidade das terapias, à objeção de consciência e ao acompanhamento
pastoral dos doentes terminais.
O texto, sob
os auspícios do Bom Samaritano, oferece breve referência ao Cristo sofredor,
testemunha participante da dor física, da precariedade humana e da desolação
humana, que se torna abandono confiante ao amor do Pai e cuja entrega ao Pai,
na via da Ressurreição, confere valor redentor ao sofrimento e revela, para lá
das trevas da morte, a luz da vida.
De facto, o
enfermo precisa de ser ouvido e de entender que o seu interlocutor sabe o que é
estar sozinho, abandonado, angustiado ante a perspetiva da dor da carne e da
morte, quando o olhar da sociedade lhe mede o valor em termos de qualidade de
vida e o faz sentir um peso pelos projetos dos outros. Assim, por mais
valiosos que sejam, os cuidados paliativos não bastarão se não houver quem se
coloque ao lado do paciente e testemunhe o seu valor único. E, face à
exaltação da autonomia e glórias do indivíduo, urge lembrar que, se todos
vivenciam o seu sofrimento, dor e morte, tal experiência vem sempre
carregada com o olhar e presença dos outros. Junto da Cruz, além da mãe,
discípulo (e outras
mulheres), estão os
funcionários do Estado romano, os curiosos, os distraídos, os indiferentes e os
ressentidos. Estão sob a cruz, mas não com o crucificado. O mesmo pode
suceder em enfermarias de terapia intensiva e asilos de doentes crónicos: estar
presente como funcionário ou como pessoa que fica com o paciente.
O texto foi
aprovado pelo Papa a 25 de junho de 2020, tendo o género de Carta, bem como a
data (14 de julho de 2020,
a memória litúrgica de São Camillo de Lellis), sido escolhido para evocar o santo dos séculos XVI/XVII,
que pretendia para os incuráveis, em sua maioria entregues aos mercenários, “novos
homens para uma nova assistência”. Enfim, queria substituir mercenários
por pessoas dispostas a estar com os enfermos apenas por amor.
A Carta, que
não é o primeiro documento moderno a abordar a temática, vem na sequência de
outros documentos – nomeadamente a Encíclica “Evangelium vitae”, de São João Paulo II (25 de março de 1995), a Declaração “Iura et bona”, da CDF (5 de maio de 1980), a “Nova Carta dos
Trabalhadores da Saúde” (2016), do então Pontifício Conselho para os Trabalhadores
da Saúde, além de numerosas intervenções dos últimos Papas – e constitui “um
novo pronunciamento orgânico da Santa Sé sobre o cuidado das pessoas nas fases
críticas e terminais da vida”. A este respeito, é necessário reafirmar o
ensinamento da Igreja e promover o acompanhamento pastoral de quem pede
expressamente a eutanásia ou o suicídio assistido. Assim, para receber a
absolvição no sacramento da Penitência, a Unção dos Doentes e o Viático, deve a
pessoa inscrita em associação que garanta a eutanásia ou o suicídio assistido
demonstrar a intenção de revogar tal decisão e cancelar o seu registo. E
não é admissível a quem assiste espiritualmente a estes enfermos, qualquer gesto
externo que possa ser interpretado como aprovação, ainda que implícita, da
eutanásia, como o estar presente no instante de sua realização.
Por outro
lado, “o cuidado da vida é a responsabilidade primária que o médico experimenta
no encontro com o paciente e que não se reduz à capacidade de cura, sendo
o seu horizonte antropológico e moral mais amplo – mesmo quando a cura é
impossível ou improvável, caso em que o acompanhamento psicológico e espiritual
do médico e da enfermagem é incontornável dever, pois o contrário constituiria
abandono desumano do paciente.
Mesmo quando
a vida está envolvida e oprimida pela “cultura do desperdício”, o testemunho
cristão mostra como a esperança é sempre possível. E todos são chamados a
dar o seu contributo específico, pois, como disse o Papa aos responsáveis das
Ordens dos Médicos da Espanha e da América Latina, a 9 de junho de 2016, “o que
está em jogo é a dignidade da vida humana e a dignidade da vocação médica”.
Já Dom Giacomo Morandi foca o reconhecimento da fragilidade e
da vulnerabilidade do doente a acentuar a condição seja frágil
e vulnerável do ser humano e a abrir espaço para a ética do cuidar.
E a intenção de cuidar sempre do paciente oferece o critério de avaliação das
diferentes ações a realizar na situação de doença “incurável”, devendo o objetivo
da assistência visar a integridade da pessoa, com a garantia do “apoio físico,
psicológico, social, familiar e religioso com os meios adequados e necessários”.
E é de salientar que a dor é existencialmente suportável apenas onde há
esperança confiável, que só pode ser comunicada onde há “presença coral” que
espera em torno do paciente que sofre, como é o caso da Mãe e do discípulo
amado que “ficam”
perto de Jesus e, “no seu” estar “junto à Cruz, participam, com a sua dedicação humana ao Sofredor,
no mistério da Redenção”. Por isso, a resposta cristã ao mistério da morte
e do sofrimento é o testemunho humilde, mas certo, da proximidade de Deus à
nossa vida, “proximidade que nos permite acompanhar com esperança confiável,
também na prova suprema do sofrimento e da morte”.
O Magistério
da Igreja tem sempre em mente o bem integral da pessoa humana. Nesse
sentido, o Documento declara:
“Nutrição
e hidratação não constituem terapia médica no sentido próprio, pois não contrastam
as causas de um processo patológico que ocorre no corpo do paciente, mas
representam uma cura pela pessoa do paciente, uma atenção clínica e humana
primária e inevitável”.
Ao mesmo
tempo, “qualifica os cuidados paliativos como ‘símbolo tangível’ de ‘estar’
compassivo junto de quem sofre”. Assim, a assistência espiritual aos
enfermos e suas famílias, que faz parte dos cuidados paliativos, é “uma
contribuição essencial” dos agentes pastorais e de toda a comunidade cristã, “a
exemplo do Bom Samaritano”.
Elegeu Gabriella Gambino três aspetos do Bonus Samaritanus, que entende constituírem os seus
princípios fundamentais. O primeiro é a condição humana em que assenta o
documento: a vulnerabilidade de todo o ser humano, corpo e espírito, marcado
pelo desejo de Amor infinito rumo à eternidade. E o doente vive a “condição de
sofrimento e necessidade”, em que a cisão entre corpo e alma exige (na relação de cuidado) “a recomposição da integridade da
pessoa”, pelo que necessita de ajuda para assumir o significado do
sofrimento na perspetiva da capacidade de reunir toda a dimensão espiritual e
transcendente da pessoa. O segundo aspeto tem a ver com o princípio de que
cuidar do outro em estado de necessidade não é só questão de solidariedade social
ou beneficência, mas sobretudo “dar-se a cada um”, dever legal, em sentido
estrito, de reconhecer a cada um o que lhe é devido, em virtude da sua
vulnerabilidade no quadro do valor inestimável da própria vida, como limite
intransponível diante de qualquer reivindicação de autonomia – temática que
gera os maiores problemas na sociedade liberal de nosso tempo: a autonomia e a
reciprocidade no sentido de do-ut-des. Por isso, deve dizer-se
que, na relação de cuidado, o modelo contratualista deve ser substituído pelo
modelo construído sobre o princípio da vulnerabilidade, em que o cuidador age
em virtude duma responsabilidade em que, partindo da condição original vulnerabilidade,
se dá conta de que precisa cuidar do outro que sofre. E o
último aspeto, que merece a devida atenção, pois constitui o fundamento de
qualquer ordem jurídica, é o valor de cada pessoa em qualquer fase e condição
crítica de existência. Com efeito, o fundamento da nossa dignidade está no
facto de cada um de nós ter sido criado à imagem e semelhança de Deus e
destinado à comunhão com Ele. Por isso, a vida humana é um bem intangível
e inalienável, do qual ninguém pode privar outro, nem mesmo a pedido.
Assim, face à
complexidade da gestão médica da doença e da morte, numa cultura e legislação
secularizada que nos confundem sobre o valor do sofrimento e da vida, a Igreja
considera o homem em sua totalidade, totalidade de corpo e espírito, lembrando
que somos filhos de um Pai que nos amou e ama até o fim, o único que pode
suavizar o peso do nosso sofrimento.
Por fim, Adriano
Pessina foca alguns dos problemas levantados pela Carta em relação às
exigências atuais da antropologia. Na verdade, quando é mais fácil confiar na ciência e na
tecnologia que nos homens, o documento “coloca no centro a importância das
relações humanas nas situações críticas de doença e nas fases terminais da vida”.
Evoca-se a
dignidade pessoal, a autonomia, a liberdade individual, mas delegam-se as
técnicas de tratamento e assistência médica na tecnologia e nas ciências médicas
e farmacológicas; e, se a tecnologia não pode responder, surge a tentação
de delegar na morte. Assim, a Carta é, um convite a “dar sentido aos longos períodos de doença e
deficiência” e à “condição mortal do
homem”, sem abraçar nenhum vitalismo e sem banalizar a gravidade do morrer,
sobretudo num tempo que o processo de morrer (entre os excessos tecnológicos e ideológicos) está exposto a modelos culturais
erosivos que ignoram o vínculo do valor do ser humano com a proibição de matar.
O liberalismo
contemporâneo, com o álibi de respeitar a autonomia do cidadão individual e a sua
liberdade, promulgou algumas leis que, em suas consequências práticas,
transformaram o julgamento individual de alguns sobre as suas vidas numa série
de critérios gerais que pesam como juízo implícito e injusto sobre todos os que
se encontram em condições clínicas semelhantes, passando do individual ao
universal, da exceção à regra e minando o princípio ético e político de “não matarás”, a base de qualquer relação
democrática entre iguais.
E, em alguns
países, cujas leis permitem o suicídio assistido e a eutanásia, está a emergir,
um meio-cultura em
que as pessoas que se encontram em condições graves e persistentes de adoecimento
ou que enfrentam as fases terminais da vida, correm o risco de ser injustamente
estigmatizadas como indignas de viver, representando um prejuízo para a
autonomia alheia por não quererem ceder ao desespero e antecipar a morte, favorecendo
a lógica do descarte de que Francisco tem repetidamente falado nestes anos de
pontificado. Daí deriva a lógica de produção que atinge indiscriminadamente
todos os que, face às suas específicas condições de saúde, não se enquadram no
novo parâmetro da chamada “qualidade de vida” que, de modelo a almejar, passou
a ser critério de discriminação antropológica – uma política e mensura que,
na realidade, apenas descreve uma “quantidade” de funções – medida por
referência à plena posse das capacidades físicas e psíquicas – que acaba por
condenar quem é privado delas. É um modelo cultural que, ao longo do tempo,
afeta a autorrepresentação do indivíduo, que é único, fazendo-o sentir um
“fardo” económico, existencial, emocional para a sociedade e para sua
família.
Ora, como o
ser humano doente não é ‘desperdício’, não podendo ser medido com base nas suas
funções, a Carta recorda que não há vidas indignas de serem
vividas e que o homem, apesar das suas limitações, fragilidades, adversidades,
é sempre digno de ser amado, pelo que urge voltar a “ver” e a preservar o
valor do ser humano na sua concretude existencial, única e irrepetível. Assim,
o Bom Samaritano é “uma figura teológica e antropológica capaz de
restaurar um olhar humano”,
o olhar consciente de quem não usa o critério da “qualidade” para abandonar a
pessoa ao seu desespero, sabendo reconhecer como qualidade intrínseca
ao próprio homem a “qualidade” que, em termos laicos, se chama dignidade
da vida humana e, em termos cristãos, sacralidade da vida
humana.
Em época de
solidão profunda e oculta, a instância da autonomia, apesar da sua importância,
transformou-se na lógica do abandono, da terapêutica e do bem-estar, olvidando
que nenhuma autonomia é capaz de suportar o peso da dor e do sofrimento de si
mesmo e dos outros se não reconhecer os valores da mútua dependência e da
solidariedade. Nesta ótica, a Carta
apresenta-se como a exortação a estar perto das pessoas, a estar perto na
hora da Cruz. Lembra-nos que o Deus que permanece fiel ao homem, representado
pelo Bom Samaritano, e o salva é o Deus que viveu a experiência do
sofrimento, do abandono, da incompreensão, da morte, não tendo sido um mero observador
da condição humana. Antes, pregado na madeira de condenação e tortura, zombado
pelos que não O entendem e abandonado por quem não teve a coragem de
partilhar os seus sofrimentos, mantém a sua confiança na fidelidade do Pai e no
amor comovente da mãe que está sob a cruz com os
discípulos fiéis. A cena coral Cruz “sintetiza os conflitos teóricos e
existenciais que cercam as fases terminais da vida”. Na sociedade secularizada em que muitas pessoas morrem
sozinhas e pedem a morte como remédio para o peso da vida, topamos elementos de
reflexão sobre a importância de estarmos perto dos moribundos e que sofrem. E a comunidade de cura expressará a “dimensão
de cuidar tanto dos enfermos como daqueles que cuidam deles – círculo virtuoso que
ultrapassa a lógica dos protocolos e procedimentos, pois a esperança revela-se,
antes de tudo, numa atividade capaz de ouvir e partilhar.
Acresce referir
que as crónicas dos últimos meses têm destacado como a figura do Bom
Samaritano é uma urgência e emergência social. Na pandemia (este tipo da nossa dolorosa jornada
de Jerusalém a Jericó) os
pacientes da covid-19 encontraram, nos trabalhadores da saúde, o bom
samaritano que sabia ficar ao lado deles. E, se a
covid-19 foca a fragilidade, também nos obriga a reconfigurar os laços e a zelar
pelo outro com a paixão do Deus próximo.
2020.09.23 – Louro
de Carvalho
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