quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Considerar o homem em sua totalidade, corpo e espírito

 

Às 11,30 horas do dia 22 de setembro, na Sala de Imprensa “João Paulo II” da Sala de Imprensa da Santa Sé, foi apresentada, em conferência de imprensa, a Carta Bonus Samaritanus, da  Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), sobre o cuidado das pessoas nas fases crítica e terminal da vida, com intervenções do Cardeal Luis Francisco Ladaria Ferrer, SI, Prefeito da CDF, Dom Giacomo Morandi, Secretário da CDF, Prof. Gabriella Gambino, Subsecretária do Dicastério para os Leigos, Família e Vida, e Prof. Adriano Pessina, Membro da Direção da Pontifícia Academia para a Vida.

O Cardeal Luis Ladaria revelou que, em 2018, os Padres do Dicastério sugeriram, sobre os temas relativos ao acompanhamento dos enfermos nas fases crítica e terminal da vida, a conveniência dum Documento que trate do assunto de forma doutrinariamente correta e com forte acento pastoral em linguagem compreensível, consonante com o progresso das ciências médicas, aprofundando os temas do acompanhamento e cuidado dos enfermos a nível teológico, antropológico e médico-hospitalar e focalizando algumas questões éticas relevantes relativas à proporcionalidade das terapias, à objeção de consciência e ao acompanhamento pastoral dos doentes terminais.

O texto, sob os auspícios do Bom Samaritano, oferece breve referência ao Cristo sofredor, testemunha participante da dor física, da precariedade humana e da desolação humana, que se torna abandono confiante ao amor do Pai e cuja entrega ao Pai, na via da Ressurreição, confere valor redentor ao sofrimento e revela, para lá das trevas da morte, a luz da vida.

De facto, o enfermo precisa de ser ouvido e de entender que o seu interlocutor sabe o que é estar sozinho, abandonado, angustiado ante a perspetiva da dor da carne e da morte, quando o olhar da sociedade lhe mede o valor em termos de qualidade de vida e o faz sentir um peso pelos projetos dos outros. Assim, por mais valiosos que sejam, os cuidados paliativos não bastarão se não houver quem se coloque ao lado do paciente e testemunhe o seu valor único. E, face à exaltação da autonomia e glórias do indivíduo, urge lembrar que, se todos vivenciam o seu sofrimento, dor e morte, tal experiência vem sempre carregada com o olhar e presença dos outros. Junto da Cruz, além da mãe, discípulo (e outras mulheres), estão os funcionários do Estado romano, os curiosos, os distraídos, os indiferentes e os ressentidos. Estão sob a cruz, mas não com o crucificado. O mesmo pode suceder em enfermarias de terapia intensiva e asilos de doentes crónicos: estar presente como funcionário ou como pessoa que fica com o paciente.

O texto foi aprovado pelo Papa a 25 de junho de 2020, tendo o género de Carta, bem como a data (14 de julho de 2020, a memória litúrgica de São Camillo de Lellis), sido escolhido para evocar o santo dos séculos XVI/XVII, que pretendia para os incuráveis, em sua maioria entregues aos mercenários, “novos homens para uma nova assistência”. Enfim, queria substituir mercenários por pessoas dispostas a estar com os enfermos apenas por amor. 

A Carta, que não é o primeiro documento moderno a abordar a temática, vem na sequência de outros documentos – nomeadamente a Encíclica “Evangelium vitae”, de São João Paulo II (25 de março de 1995), a Declaração “Iura et bona”, da CDF (5 de maio de 1980), a “Nova Carta dos Trabalhadores da Saúde (2016), do então Pontifício Conselho para os Trabalhadores da Saúde, além de numerosas intervenções dos últimos Papas – e constitui “um novo pronunciamento orgânico da Santa Sé sobre o cuidado das pessoas nas fases críticas e terminais da vida”. A este respeito, é necessário reafirmar o ensinamento da Igreja e promover o acompanhamento pastoral de quem pede expressamente a eutanásia ou o suicídio assistido. Assim, para receber a absolvição no sacramento da Penitência, a Unção dos Doentes e o Viático, deve a pessoa inscrita em associação que garanta a eutanásia ou o suicídio assistido demonstrar a intenção de revogar tal decisão e cancelar o seu registo. E não é admissível a quem assiste espiritualmente a estes enfermos, qualquer gesto externo que possa ser interpretado como aprovação, ainda que implícita, da eutanásia, como o estar presente no instante de sua realização. 

Por outro lado, “o cuidado da vida é a responsabilidade primária que o médico experimenta no encontro com o paciente e que não se reduz à capacidade de cura, sendo o seu horizonte antropológico e moral mais amplo – mesmo quando a cura é impossível ou improvável, caso em que o acompanhamento psicológico e espiritual do médico e da enfermagem é incontornável dever, pois o contrário constituiria abandono desumano do paciente. 

Mesmo quando a vida está envolvida e oprimida pela “cultura do desperdício”, o testemunho cristão mostra como a esperança é sempre possível. E todos são chamados a dar o seu contributo específico, pois, como disse o Papa aos responsáveis ​​das Ordens dos Médicos da Espanha e da América Latina, a 9 de junho de 2016, “o que está em jogo é a dignidade da vida humana e a dignidade da vocação médica”. 

Dom Giacomo Morandi foca o reconhecimento da fragilidade e da vulnerabilidade do doente a acentuar a condição seja frágil e vulnerável do ser humano e a abrir espaço para a ética do cuidar. E a intenção de cuidar sempre do paciente oferece o critério de avaliação das diferentes ações a realizar na situação de doença “incurável”, devendo o objetivo da assistência visar a integridade da pessoa, com a garantia do “apoio físico, psicológico, social, familiar e religioso com os meios adequados e necessários”. E é de salientar que a dor é existencialmente suportável apenas onde há esperança confiável, que só pode ser comunicada onde há “presença coral” que espera em torno do paciente que sofre, como é o caso da Mãe e do discípulo amado que “ficam” perto de Jesus e, “no seu” estar junto à Cruz, participam, com a sua dedicação humana ao Sofredor, no mistério da Redenção”. Por isso, a resposta cristã ao mistério da morte e do sofrimento é o testemunho humilde, mas certo, da proximidade de Deus à nossa vida, “proximidade que nos permite acompanhar com esperança confiável, também na prova suprema do sofrimento e da morte”.

O Magistério da Igreja tem sempre em mente o bem integral da pessoa humana. Nesse sentido, o Documento declara:

Nutrição e hidratação não constituem terapia médica no sentido próprio, pois não contrastam as causas de um processo patológico que ocorre no corpo do paciente, mas representam uma cura pela pessoa do paciente, uma atenção clínica e humana primária e inevitável”.

Ao mesmo tempo, “qualifica os cuidados paliativos como ‘símbolo tangível’ de ‘estar’ compassivo junto de quem sofre”. Assim, a assistência espiritual aos enfermos e suas famílias, que faz parte dos cuidados paliativos, é “uma contribuição essencial” dos agentes pastorais e de toda a comunidade cristã, “a exemplo do Bom Samaritano”.

Elegeu Gabriella Gambino três aspetos do Bonus Samaritanus, que entende constituírem os seus princípios fundamentais. O primeiro é a condição humana em que assenta o documento: a vulnerabilidade de todo o ser humano, corpo e espírito, marcado pelo desejo de Amor infinito rumo à eternidade. E o doente vive a “condição de sofrimento e necessidade”, em que a cisão entre corpo e alma exige (na relação de cuidado) “a recomposição da integridade da pessoa”, pelo que necessita de ajuda para assumir o significado do sofrimento na perspetiva da capacidade de reunir toda a dimensão espiritual e transcendente da pessoa. O segundo aspeto tem a ver com o princípio de que cuidar do outro em estado de necessidade não é só questão de solidariedade social ou beneficência, mas sobretudo “dar-se a cada um”, dever legal, em sentido estrito, de reconhecer a cada um o que lhe é devido, em virtude da sua vulnerabilidade no quadro do valor inestimável da própria vida, como limite intransponível diante de qualquer reivindicação de autonomia – temática que gera os maiores problemas na sociedade liberal de nosso tempo: a autonomia e a reciprocidade no sentido de do-ut-des. Por isso, deve dizer-se que, na relação de cuidado, o modelo contratualista deve ser substituído pelo modelo construído sobre o princípio da vulnerabilidade, em que o cuidador age em virtude duma responsabilidade em que, partindo da condição original vulnerabilidade, se dá conta de que precisa cuidar do outro que sofre. E o último aspeto, que merece a devida atenção, pois constitui o fundamento de qualquer ordem jurídica, é o valor de cada pessoa em qualquer fase e condição crítica de existência. Com efeito, o fundamento da nossa dignidade está no facto de cada um de nós ter sido criado à imagem e semelhança de Deus e destinado à comunhão com Ele. Por isso, a vida humana é um bem intangível e inalienável, do qual ninguém pode privar outro, nem mesmo a pedido. 

Assim, face à complexidade da gestão médica da doença e da morte, numa cultura e legislação secularizada que nos confundem sobre o valor do sofrimento e da vida, a Igreja considera o homem em sua totalidade, totalidade de corpo e espírito, lembrando que somos filhos de um Pai que nos amou e ama até o fim, o único que pode suavizar o peso do nosso sofrimento.

Por fim, Adriano Pessina foca alguns dos problemas levantados pela Carta em relação às exigências atuais da antropologia. Na verdade, quando é mais fácil confiar na ciência e na tecnologia que nos homens, o documento “coloca no centro a importância das relações humanas nas situações críticas de doença e nas fases terminais da vida”.

Evoca-se a dignidade pessoal, a autonomia, a liberdade individual, mas delegam-se as técnicas de tratamento e assistência médica na tecnologia e nas ciências médicas e farmacológicas; e, se a tecnologia não pode responder, surge a tentação de delegar na morte. Assim, a Carta é, um convite a “dar sentido aos longos períodos de doença e deficiência” e à “condição mortal do homem”, sem abraçar nenhum vitalismo e sem banalizar a gravidade do morrer, sobretudo num tempo que o processo de morrer (entre os excessos tecnológicos e ideológicos) está exposto a modelos culturais erosivos que ignoram o vínculo do valor do ser humano com a proibição de matar.

O liberalismo contemporâneo, com o álibi de respeitar a autonomia do cidadão individual e a sua liberdade, promulgou algumas leis que, em suas consequências práticas, transformaram o julgamento individual de alguns sobre as suas vidas numa série de critérios gerais que pesam como juízo implícito e injusto sobre todos os que se encontram em condições clínicas semelhantes, passando do individual ao universal, da exceção à regra e minando o princípio ético e político de “não matarás”, a base de qualquer relação democrática entre iguais.

E, em alguns países, cujas leis permitem o suicídio assistido e a eutanásia, está a emergir, um meio-cultura em que as pessoas que se encontram em condições graves e persistentes de adoecimento ou que enfrentam as fases terminais da vida, correm o risco de ser injustamente estigmatizadas como indignas de viver, representando um prejuízo para a autonomia alheia por não quererem ceder ao desespero e antecipar a morte, favorecendo a lógica do descarte de que Francisco tem repetidamente falado nestes anos de pontificado. Daí deriva a lógica de produção que atinge indiscriminadamente todos os que, face às suas específicas condições de saúde, não se enquadram no novo parâmetro da chamada “qualidade de vida” que, de modelo a almejar, passou a ser critério de discriminação antropológica – uma política e mensura que, na realidade, apenas descreve uma “quantidade” de funções – medida por referência à plena posse das capacidades físicas e psíquicas – que acaba por condenar quem é privado delas. É um modelo cultural que, ao longo do tempo, afeta a autorrepresentação do indivíduo, que é único, fazendo-o sentir um “fardo” económico, existencial, emocional para a sociedade e para sua família.   

Ora, como o ser humano doente não é ‘desperdício’, não podendo ser medido com base nas suas funções, a Carta recorda que não há vidas indignas de serem vividas e que o homem, apesar das suas limitações, fragilidades, adversidades, é sempre digno de ser amado, pelo que urge voltar a “ver” e a preservar o valor do ser humano na sua concretude existencial, única e irrepetível. Assim, o Bom Samaritano é “uma figura teológica e antropológica capaz de restaurar um olhar humano”, o olhar consciente de quem não usa o critério da “qualidade” para abandonar a pessoa ao seu desespero, sabendo reconhecer como qualidade intrínseca ao próprio homem a “qualidade” que, em termos laicos, se chama dignidade da vida humana e, em termos cristãos, sacralidade da vida humana.

Em época de solidão profunda e oculta, a instância da autonomia, apesar da sua importância, transformou-se na lógica do abandono, da terapêutica e do bem-estar, olvidando que nenhuma autonomia é capaz de suportar o peso da dor e do sofrimento de si mesmo e dos outros se não reconhecer os valores da mútua dependência e da solidariedade. Nesta ótica, a Carta apresenta-se como a exortação a estar perto das pessoas, a estar perto na hora da Cruz. Lembra-nos que o Deus que permanece fiel ao homem, representado pelo Bom Samaritano, e o salva é o Deus que viveu a experiência do sofrimento, do abandono, da incompreensão, da morte, não tendo sido um mero observador da condição humana. Antes, pregado na madeira de condenação e tortura, zombado pelos que não O entendem e abandonado por quem não teve a coragem de partilhar os seus sofrimentos, mantém a sua confiança na fidelidade do Pai e no amor comovente da mãe que está sob a cruz com os discípulos fiéis. A cena coral Cruz “sintetiza os conflitos teóricos e existenciais que cercam as fases terminais da vida”. Na sociedade secularizada em que muitas pessoas morrem sozinhas e pedem a morte como remédio para o peso da vida, topamos elementos de reflexão sobre a importância de estarmos perto dos moribundos e que sofrem. E a comunidade de cura expressará a “dimensão de cuidar tanto dos enfermos como daqueles que cuidam deles – círculo virtuoso que ultrapassa a lógica dos protocolos e procedimentos, pois a esperança revela-se, antes de tudo, numa atividade capaz de ouvir e partilhar.

Acresce referir que as crónicas dos últimos meses têm destacado como a figura do Bom Samaritano é uma urgência e emergência social. Na pandemia (este tipo da nossa dolorosa jornada de Jerusalém a Jericó) os pacientes da covid-19 encontraram, nos trabalhadores da saúde, o bom samaritano que sabia ficar ao lado deles. E, se a covid-19 foca a fragilidade, também nos obriga a reconfigurar os laços e a zelar pelo outro com a paixão do Deus próximo. 

2020.09.23 – Louro de Carvalho

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