É uma das poderosas asserções do Bispo
do Porto na homilia que proferiu na missa da solenidade da dedicação da Sé Catedral
cuja titular é Nossa Senhora da Assunção.
Subordinando o seu texto ao título “Coroar de espiritualidade a matéria
do mundo”, começa por equiparar o aniversário
da dedicação dum templo cristão ao aniversário duma pessoa e, ao invés do que é
usual, quase põe em pé de igualdade a relevância da dedicação da Sé e a da Igreja
paroquial e confere, respetivamente, ao bispo e ao pároco o múnus de presidir à
celebração litúrgica evocativa “com a participação do maior número
possível de fiéis” e mesmo com recurso a “sinais exteriores de alegria” de que é exemplo a entoação do hino de “Glória”.
Solenidade ou festa, conforme decorra no templo ou em templo da
área da jurisdição do mesmo, sobrepõe-se “a outros festejos como possíveis
memórias dos santos, por exemplo”.
A dedicação do Templo já vem documentada no AT. Dela fala o 1.º
Livro dos Reis (cap. 8) vincando o transporte e instalação da Arca da Aliança no Templo
que Salomão mandou construir, bem como a exortação e a oração do próprio Salomão.
Por sua vez, o 2.º Livro das Crónicas (caps. 5 a 7) refere ao pormenor a trasladação
da Arca da Aliança, os sacrifícios oferecidos na consagração do Templo, a consagração
orante e sacrificial das diversas partes do Templo por Salomão e a resposta de
Deus à oração de Salomão –festividade que durou 7 dias. De modo análogo, embora
de forma sucinta, apresenta o Livro Esdras (vd Esd 6,13-18) a conclusão e dedicação
do Templo reconstruído.
Jesus Cristo, que prezava o Templo como Casa de Oração, contra
os que dele fizeram casa de comércio e covil de ladrões (cf Jo 2,15-17), assumiu-se como o
verdadeiro Templo:
“Então, os judeus e disseram-lhe:
‘Que sinal nos mostras para fazeres estas
coisas?’. Respondeu Jesus e disse-lhes: ‘Destruí este templo, e em três dias o levantarei’. Disseram-lhe,
então, os judeus: ‘Este templo foi
edificado em quarenta e seis anos, e Tu em três dias o levantarás?’. Ele,
porém, falava acerca do templo do seu corpo.” (Jo 2,18-21).
Com a vinda de Jesus, a ideia de casa de Deus ou templo, não
tinge apenas o edifício, mas as pessoas que formam a “ecclesia”. Jesus disse a
Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra
edificarei a minha Igreja” (Mt 16,18). Paulo apresenta
a imagem da Igreja como o corpo que tem como cabeça Jesus Cristo (1Cor 12). Pedro, na sua 1.ª carta pastoral,
dizia à comunidade: “Do mesmo modo, vós, como pedras vivas, formai um edifício
espiritual, um sacerdócio santo” (1Pe 2,5). Não havia, pois, a preocupação de construir um templo, aliás, Estêvão diz
que Deus não mora em casa feita por mãos humanas (At 7,48). Não obstante, já no início da Igreja, os apóstolos se
reuniam em casas para rezar. Paulo estava numa casa onde estavam reunidos para o
ensino e a fração do pão; e, como se delongou na pregação, um jovem caiu da
janela (cf Atos 20,9).
Com o crescimento da
Igreja, descobriu-se a necessidade do templo. E, já no fim do século I, eram
edifícios denominados “Casa de Assembleia”; no século II, “Casa de Deus”. Estes
últimos normalmente eram edifícios de poderosos que se convertiam e doavam tais
edifícios à Igreja. Isso é claro por volta do ano 300 d.C., quando Constantino
recebeu a evangelização de Santa Helena, sua mãe. Vários espaços foram edificados
e passaram a ser os locais privilegiados da oração pessoal e comum, do culto
eucarístico, da pregação da Palavra, locais onde se cultivava a fé. Esses
locais são igreja, local de encontro. Assim como no AT, Deus Se manifestava na
tenda ou no próprio templo, a Igreja crê e celebra a presença de Deus
também no templo-igreja.
Quando a construção duma igreja chega ao fim, a celebração
que marca a vida dela tem o nome de dedicação, que pode traduzir-se como
consagração, sagração ou inauguração. O termo mais usado é “dedicação”. Toda a igreja
é dedicada por excelência à Santíssima Trindade, a Nosso Senhor Jesus Cristo e
seus títulos; ao Espírito Santo, à Santíssima Virgem, aos Santos Anjos,
aos santos inscritos no Martirológio Romano. Na dedicação da igreja, o rito é muito
rico de significados. Normalmente, é o bispo diocesano quem dedica a nova
igreja. Ali acontecem a aspersão da água benta, as unções do altar e das
paredes no edifício, a incensação, a deposição das relíquias no altar, a
iluminação e, é claro, o rito da Palavra e da Eucaristia.
A água
aspergida logo no início é o clamor para que todo o local seja purificado,
lavado por Deus tanto as paredes como cada fiel participante. As unções do
altar e das paredes ungem aquela mesa que será usada para o sacrifício eucarístico,
a unção ainda exala o belo e agradável odor que todos somos chamados a exalar,
o odor de Cristo (cf 2Cor 2,15). O incenso, a fumaça que sobe aos céus são as
nossas orações que se elevam ao Pai. Já nos primeiros séculos se
celebrava nas catacumbas sobre as relíquias dos mártires, os santos que deram a
vida por amor a Cristo; assim, a deposição das relíquias no altar, hoje não
mais exigido que seja de mártir, recorda a doação, a entrega dos santos como resposta
ao amor divino. No tocante à iluminação, é de referir Cristo, a Luz que
ilumina, Luz por excelência que nos tirou da escuridão. Por Ele somos
iluminados, por Ele os lugares iluminaremos aonde chegarmos. Enfim, o rito de
dedicação duma igreja diz muito da nossa fé, pelo que a entrada nela exige
respeito e amor por cada espaço daquele local, local sagrado, onde Deus
manifesta a Sua glória e misericórdia, local de encontro com o Pai por meio de Cristo
no Espírito Santo, lugar de falar e de ouvir a Deus, lugar de celebrar, adorar,
pedir, dar graças por tantos benefícios. Na igreja ou capela que frequentamos,
seremos agraciados por Deus e cheios d’Ele voltemos para casa, para o trabalho,
para transbordar o Seu amor. Por isso, os livros litúrgicos, além do comum da dedicação das Igrejas,
mencionam em especial a dedicação da Basílica de São João de Latrão, a mãe de
todas as catedrais, e a da Basílica dos Apóstolos Pedro e Paulo, ambas em Roma.
E
o Bispo do Porto assegura que “dedicar um espaço ou objeto religioso a Deus
é o mesmo que o declarar exclusivo para o serviço divino”. E, cabendo na
catedral a dimensão cultural, artística e museológica e podendo, só em caso de cataclismo, ela ser transformada em
espaço de refúgio ou refeitório de emergência, entende que “para a cultura e para o
exercício habitual da caridade havemos de conseguir outros espaços mais
apropriados”, já que este espaço “é primordialmente para o louvor
divino”,
sendo que “a disposição dos diversos materiais
objetos cria um tal ambiente espiritual que o configuram como ideal para
escutar o recado, a mensagem, que Deus tem para o homem”. Por isso, anualmente, se recorda o dia da
atribuição ao serviço exclusivo de Deus de “uma partícula pequena do que Ele
mesmo nos dá e que a cultura e a técnica de tantos elevou como espaço belo e
emblemático” a “simbolizar este intercâmbio entre o divino e o humano”. E Dom Manuel Linda proferiu
uma asserção que é de enfatizar: “uma igreja, de facto, é sempre uma nota de poesia na prosa
bárbara das nossas vidas” – que explicou:
“É um espaço de silêncio e interioridade no meio do bulício e
dispersão da forma como tecemos a existência. É uma possibilidade de olhar para
a construção e reconhecer que esta se apresenta como sentinela do divino, como
chamada de atenção, contínua lembrança
para que não nos esqueçamos de que, por cima de nós, está Deus.”.
E, a seguir, utilizou um segmento textual que me lembra, por um
lado, a postura intelectual de Agostinho de Hipona (ânsia de Deus) e, por outro, o conceito
de poesia (hínica) atribuído por Alexandre
Herculano ao presbítero de Carteia por parte do povo que Eurico pastoreava e, ainda,
a ideia psicologista da poesia à maneira de Fernando Pessoa ou Cesário Verde (afeto). Vejamos:
“É também [a igreja], de alguma maneira, como que a representação de mãos postas, mãos erguidas da ‘cidade dos homens’ na direção da
‘cidade de Deus’. É despertador das
nossas consciências, recordando que é possível a santidade no meio das
desordens morais, individuais e coletivas. É, enfim, o lugar dos afetos e dos
sentimentos, pois neste espaço se vertem lágrimas de alegria num casamento e
lágrimas de dor num funeral, exprime-se a ternura do encanto de um batismo ou
primeira comunhão e a angústia de quem pede afincadamente uma graça.”.
Por isso, o espaço templar é “diferente, único”. Com efeito, os cristãos
não constroem igrejas “para deixar marcas de civilização” nem para afirmarem “um qualquer poder”, mas uma bela projeção “da nossa vida da fé e
mesmo da relação da graça divina connosco e de nós com Deus”. A este propósito, salientou a “metáfora do templo
como nascente de uma água viva que gera mais vida” e “mais qualidade de vida” (cf Ez 47,1-99) e observou que o
Evangelho da Solenidade remete “para a ideia de que esta casa é o lugar onde
acolhemos Deus e Deus nos acolhe”, pois “foi na sua casa, transformada em
templo ou igreja, que Zaqueu acolheu Jesus” e lá Jesus o acolheu no reino de Deus ao
garantir-lhe que “a salvação chegou a esta casa, porque o Filho do Homem veio
procurar e salvar o que estava perdido” (cf Lc 19,1-10). E garantiu que estas casas nos lembram “o necessário
acolhimento de Cristo já não só dentro das suas paredes de pedra ou cimento,
mas no sacrário mais íntimo que é o nosso coração”, segundo a interpelação paulina: “Não sabeis que sois templos do Espírito
Santo e que o Espírito de Deus
habita em vós?” (1Cor 3,16).
E denunciou a dicotomia presente em quem aceita que Deus habite
no templo de pedra aonde se vai como à urgência médica, mas não que habite no coração
da pessoa humana a tolher a sua liberdade. E a esta postura atitudinal contrapôs
o exemplo da Bem-aventurada Virgem Maria, Padroeira daquela igreja catedral e que “não se preocupou por
arranjar um ‘templozinho’ para Deus”, mas O trouxe “sempre consigo”. De facto, o Anjo, ao
dizer “Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é [ou está] convosco”, declarou-A “diferente de toda a
gente”, a “bendita entre as
mulheres”, pois “Deus está sempre com Ela e Ela está sempre com Deus”: na fuga para o
Egito, em Caná, no Calvário e no tempo da Igreja.
Assim, o prelado portuense formulou o voto de que a catedral, onde se celebram “os momentos cimeiros
da vida religiosa da Diocese, continue como metáfora do verdadeiro templo onde
Deus quer habitar: em nós, no nosso coração, na nossa vida”.
E, com
referência ao templo, seremos a Igreja povo de Deus, que vive a fé e caminha peregrina
para a Jerusalém Celeste; seremos Corpo de Cristo, presente e visível no mundo
ou o povo chamado pelo Senhor a ser as pedras vivas, assentes em “Cristo pedra
angular, escolhida e preciosa”, “porque o templo de Deus é santo e vós sois
esse templo” (cf 1Cor 3,17);
seremos a assembleia que escuta a Palavra, vive e celebra a Eucaristia,
ministra os Sacramentos, celebra os sinais da fé e da salvação, na
espiritualidade de comunhão, solidariedade e partilha efetiva com os mais
pobres; seremos a Igreja chamada a estar viva no mundo e a levedar a massa, com
o compromisso em dizer ‘não’ a uma sociedade de descarte, violência, abandono
dos mais frágeis, dos doentes, recusando a sociedade promotora de morte, que
põe em causa a falta de respeito pela pessoa humana e sua dignidade, exposta a
tantas vulnerabilidades e atrocidades nos palcos mais diversos do mundo e da
Igreja; e seremos a Igreja mãe de militantes e mártires voltada para os pobres
que procura e que almeja ser “Casa Comum” para todos, lugar de comunhão,
através de gestos simples e concretos, em prol de um mundo melhor, mais justo e
mais fraterno.
2020.09.11 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário