sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Uma igreja é uma nota de poesia na prosa bárbara das nossas vidas

 

É uma das poderosas asserções do Bispo do Porto na homilia que proferiu na missa da solenidade da dedicação da Sé Catedral cuja titular é Nossa Senhora da Assunção.

Subordinando o seu texto ao título “Coroar de espiritualidade a matéria do mundo”, começa por equiparar o aniversário da dedicação dum templo cristão ao aniversário duma pessoa e, ao invés do que é usual, quase põe em pé de igualdade a relevância da dedicação da Sé e a da Igreja paroquial e confere, respetivamente, ao bispo e ao pároco o múnus de presidir à celebração litúrgica evocativa com a participação do maior número possível de fiéis” e mesmo com recurso a “sinais exteriores de alegria” de que é exemplo a entoação do hino de “Glória”.

Solenidade ou festa, conforme decorra no templo ou em templo da área da jurisdição do mesmo, sobrepõe-se “a outros festejos como possíveis memórias dos santos, por exemplo.

A dedicação do Templo já vem documentada no AT. Dela fala o 1.º Livro dos Reis (cap. 8) vincando o transporte e instalação da Arca da Aliança no Templo que Salomão mandou construir, bem como a exortação e a oração do próprio Salomão. Por sua vez, o 2.º Livro das Crónicas (caps. 5 a 7) refere ao pormenor a trasladação da Arca da Aliança, os sacrifícios oferecidos na consagração do Templo, a consagração orante e sacrificial das diversas partes do Templo por Salomão e a resposta de Deus à oração de Salomão –festividade que durou 7 dias. De modo análogo, embora de forma sucinta, apresenta o Livro Esdras (vd Esd 6,13-18) a conclusão e dedicação do Templo reconstruído.

Jesus Cristo, que prezava o Templo como Casa de Oração, contra os que dele fizeram casa de comércio e covil de ladrões (cf Jo 2,15-17), assumiu-se como o verdadeiro Templo:  

Então, os judeus e disseram-lhe: ‘Que sinal nos mostras para fazeres estas coisas?’. Respondeu Jesus e disse-lhes:Destruí este templo, e em três dias o levantarei’. Disseram-lhe, então, os judeus: ‘Este templo foi edificado em quarenta e seis anos, e Tu em três dias o levantarás?’. Ele, porém, falava acerca do templo do seu corpo.” (Jo 2,18-21). 

Com a vinda de Jesus, a ideia de casa de Deus ou templo, não tinge apenas o edifício, mas as pessoas que formam a “ecclesia”. Jesus disse a Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja(Mt 16,18). Paulo apresenta a imagem da Igreja como o corpo que tem como cabeça Jesus Cristo (1Cor 12). Pedro, na sua 1.ª carta pastoral, dizia à comunidade: “Do mesmo modo, vós, como pedras vivas, formai um edifício espiritual, um sacerdócio santo” (1Pe 2,5). Não havia, pois, a preocupação de construir um templo, aliás, Estêvão diz que Deus não mora em casa feita por mãos humanas (At 7,48). Não obstante, já no início da Igreja, os apóstolos se reuniam em casas para rezar. Paulo estava numa casa onde estavam reunidos para o ensino e a fração do pão; e, como se delongou na pregação, um jovem caiu da janela (cf Atos 20,9).

Com o crescimento da Igreja, descobriu-se a necessidade do templo. E, já no fim do século I, eram edifícios denominados “Casa de Assembleia”; no século II, “Casa de Deus”. Estes últimos normalmente eram edifícios de poderosos que se convertiam e doavam tais edifícios à Igreja. Isso é claro por volta do ano 300 d.C., quando Constantino recebeu a evangelização de Santa Helena, sua mãe. Vários espaços foram edificados e passaram a ser os locais privilegiados da oração pessoal e comum, do culto eucarístico, da pregação da Palavra, locais onde se cultivava a fé. Esses locais são igreja, local de encontro. Assim como no AT, Deus Se manifestava na tenda ou no próprio templo, a Igreja crê e celebra a presença de Deus também no templo-igreja.

Quando a construção duma igreja chega ao fim, a celebração que marca a vida dela tem o nome de dedicação, que pode traduzir-se como consagração, sagração ou inauguração. O termo mais usado é “dedicação”. Toda a igreja é dedicada por excelência à Santíssima Trindade, a Nosso Senhor Jesus Cristo e seus títulos; ao Espírito Santo, à Santíssima Virgem, aos Santos Anjos, aos santos inscritos no Martirológio Romano. Na dedicação da igreja, o rito é muito rico de significados. Normalmente, é o bispo diocesano quem dedica a nova igreja. Ali acontecem a aspersão da água benta, as unções do altar e das paredes no edifício, a incensação, a deposição das relíquias no altar, a iluminação e, é claro, o rito da Palavra e da Eucaristia.

A água aspergida logo no início é o clamor para que todo o local seja purificado, lavado por Deus tanto as paredes como cada fiel participante. As unções do altar e das paredes ungem aquela mesa que será usada para o sacrifício eucarístico, a unção ainda exala o belo e agradável odor que todos somos chamados a exalar, o odor de Cristo (cf 2Cor 2,15). O incenso, a fumaça que sobe aos céus são as nossas orações que se elevam ao Pai.  Já nos primeiros séculos se celebrava nas catacumbas sobre as relíquias dos mártires, os santos que deram a vida por amor a Cristo; assim, a deposição das relíquias no altar, hoje não mais exigido que seja de mártir, recorda a doação, a entrega dos santos como resposta ao amor divino. No tocante à iluminação, é de referir Cristo, a Luz que ilumina, Luz por excelência que nos tirou da escuridão. Por Ele somos iluminados, por Ele os lugares iluminaremos aonde chegarmos. Enfim, o rito de dedicação duma igreja diz muito da nossa fé, pelo que a entrada nela exige respeito e amor por cada espaço daquele local, local sagrado, onde Deus manifesta a Sua glória e misericórdia, local de encontro com o Pai por meio de Cristo no Espírito Santo, lugar de falar e de ouvir a Deus, lugar de celebrar, adorar, pedir, dar graças por tantos benefícios. Na igreja ou capela que frequentamos, seremos agraciados por Deus e cheios d’Ele voltemos para casa, para o trabalho, para transbordar o Seu amor. Por isso, os livros litúrgicos, além do comum da dedicação das Igrejas, mencionam em especial a dedicação da Basílica de São João de Latrão, a mãe de todas as catedrais, e a da Basílica dos Apóstolos Pedro e Paulo, ambas em Roma.

E o Bispo do Porto assegura que “dedicar um espaço ou objeto religioso a Deus é o mesmo que o declarar exclusivo para o serviço divino”. E, cabendo na catedral a dimensão cultural, artística e museológica e podendo, só em caso de cataclismo, ela ser transformada em espaço de refúgio ou refeitório de emergência, entende que “para a cultura e para o exercício habitual da caridade havemos de conseguir outros espaços mais apropriados”, já que este espaço “é primordialmente para o louvor divino”, sendo que a disposição dos diversos materiais objetos cria um tal ambiente espiritual que o configuram como ideal para escutar o recado, a mensagem, que Deus tem para o homem”. Por isso, anualmente, se recorda o dia da atribuição ao serviço exclusivo de Deus de “uma partícula pequena do que Ele mesmo nos dá e que a cultura e a técnica de tantos elevou como espaço belo e emblemático” a “simbolizar este intercâmbio entre o divino e o humano. E Dom Manuel Linda proferiu uma asserção que é de enfatizar: “uma igreja, de facto, é sempre uma nota de poesia na prosa bárbara das nossas vidas” – que explicou:

É um espaço de silêncio e interioridade no meio do bulício e dispersão da forma como tecemos a existência. É uma possibilidade de olhar para a construção e reconhecer que esta se apresenta como sentinela do divino, como chamada de atenção, contínua lembrança para que não nos esqueçamos de que, por cima de nós, está Deus..

E, a seguir, utilizou um segmento textual que me lembra, por um lado, a postura intelectual de Agostinho de Hipona (ânsia de Deus) e, por outro, o conceito de poesia (hínica) atribuído por Alexandre Herculano ao presbítero de Carteia por parte do povo que Eurico pastoreava e, ainda, a ideia psicologista da poesia à maneira de Fernando Pessoa ou Cesário Verde (afeto). Vejamos:

É também [a igreja], de alguma maneira, como que a representação de mãos postas, mãos erguidas da ‘cidade dos homens’ na direção da ‘cidade de Deus’. É despertador das nossas consciências, recordando que é possível a santidade no meio das desordens morais, individuais e coletivas. É, enfim, o lugar dos afetos e dos sentimentos, pois neste espaço se vertem lágrimas de alegria num casamento e lágrimas de dor num funeral, exprime-se a ternura do encanto de um batismo ou primeira comunhão e a angústia de quem pede afincadamente uma graça..

Por isso, o espaço templar é “diferente, único. Com efeito, os cristãos não constroem igrejas para deixar marcas de civilização” nem para afirmarem um qualquer poder”, mas uma bela projeção da nossa vida da fé e mesmo da relação da graça divina connosco e de nós com Deus”. A este propósito, salientou a metáfora do templo como nascente de uma água viva que gera mais vida” e mais qualidade de vida(cf Ez 47,1-99) e observou que o Evangelho da Solenidade remete “para a ideia de que esta casa é o lugar onde acolhemos Deus e Deus nos acolhe”, pois foi na sua casa, transformada em templo ou igreja, que Zaqueu acolheu Jesus” e lá Jesus o acolheu no reino de Deus ao garantir-lhe que “a salvação chegou a esta casa, porque o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (cf Lc 19,1-10). E garantiu que estas casas nos lembram o necessário acolhimento de Cristo já não só dentro das suas paredes de pedra ou cimento, mas no sacrário mais íntimo que é o nosso coração”, segundo a interpelação paulina: “Não sabeis que sois templos do Espírito Santo e que o Espírito de Deus habita em vós? (1Cor 3,16).

E denunciou a dicotomia presente em quem aceita que Deus habite no templo de pedra aonde se vai como à urgência médica, mas não que habite no coração da pessoa humana a tolher a sua liberdade. E a esta postura atitudinal contrapôs o exemplo da Bem-aventurada Virgem Maria, Padroeira daquela igreja catedral e que o se preocupou por arranjar um ‘templozinho’ para Deus”, mas O trouxe “sempre consigo”. De facto, o Anjo, ao dizer “Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é [ou está] convosco”, declarou-A diferente de toda a gente, a “bendita entre as mulheres”, pois Deus está sempre com Ela e Ela está sempre com Deus”: na fuga para o Egito, em Caná, no Calvário e no tempo da Igreja.

Assim, o prelado portuense formulou o voto de que a catedral, onde se celebram os momentos cimeiros da vida religiosa da Diocese, continue como metáfora do verdadeiro templo onde Deus quer habitar: em nós, no nosso coração, na nossa vida.

E, com referência ao templo, seremos a Igreja povo de Deus, que vive a fé e caminha peregrina para a Jerusalém Celeste; seremos Corpo de Cristo, presente e visível no mundo ou o povo chamado pelo Senhor a ser as pedras vivas, assentes em “Cristo pedra angular, escolhida e preciosa”, “porque o templo de Deus é santo e vós sois esse templo” (cf 1Cor 3,17); seremos a assembleia que escuta a Palavra, vive e celebra a Eucaristia, ministra os Sacramentos, celebra os sinais da fé e da salvação, na espiritualidade de comunhão, solidariedade e partilha efetiva com os mais pobres; seremos a Igreja chamada a estar viva no mundo e a levedar a massa, com o compromisso em dizer ‘não’ a uma sociedade de descarte, violência, abandono dos mais frágeis, dos doentes, recusando a sociedade promotora de morte, que põe em causa a falta de respeito pela pessoa humana e sua dignidade, exposta a tantas vulnerabilidades e atrocidades nos palcos mais diversos do mundo e da Igreja; e seremos a Igreja mãe de militantes e mártires voltada para os pobres que procura e que almeja ser “Casa Comum” para todos, lugar de comunhão, através de gestos simples e concretos, em prol de um mundo melhor, mais justo e mais fraterno.

2020.09.11 – Louro de Carvalho

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