Entre 28 e 29 de setembro de 2020, passa o 42.º aniversário do Papa
Venerável João Paulo I, o primeiro
a escolher um duplo nome papal – João Paulo (Ioannes Paulus,
em latim), em
homenagem aos seus predecessores imediatos –, o primeiro papa que nasceu no
século XX, o primeiro papa a falar na 1.ª pessoa do singular e o primeiro Sumo
Pontífice, desde Clemente V, a recusar a coroação, cerimónia não formalmente abolida,
ficando a cargo do eleito escolher como quer iniciar o pontificado. Contudo,
desde então, os papas têm optado por uma cerimónia de “início do pontificado”,
com a respetiva entronização e o juramento de fidelidade.
A sua
simplicidade obstava a que fosse transportado na sede gestatória, andor com a
cadeira papal, que São Paulo VI abandonara. Pela brevidade do seu pontificado e
pela sua afabilidade, tornou-se conhecido na Cúria Romana pelo apelido de
“Papa do Sorriso”. Com a proclamação de “Venerável” na sessão ordinária
da Congregação para a Causa dos Santos a 7 de novembro de 2017, estará prestes
a sua beatificação, almejando-se a sua canonização.
De
nascimento e batismo, o seu nome era Albino Luciani, em homenagem a um amigo da família, que
morrera numa explosão numa mina de carvão na Alemanha. Nasceu a
17 de outubro de 1912, em Canale d’Agordo (então Forno di Canale), província de Belluno (norte de Itália). Era o irmão mais velho de Federico (1915-1916), Edoardo (1917-2008) e Antonia (1920-2010).
De origem
humilde, viu Giovanni Luciani, seu pai, que era socialista, inúmeras vezes
forçado a buscar trabalho em outros países, por ocasião da I Guerra
Mundial. E a mãe, Bortola Tancon, católica fervorosa, incentivou-o a seguir a
formação religiosa, no que foi bem-sucedida.
Iniciou os
estudos no seminário Menor, em Murano, tendo-os concluído no Seminário
Georgiano em Belluno. E foi ordenado sacerdote a 7 de setembro
de 1935, assumindo a posição paroquial que tanto desejara.
Embora,
segundo consta, não tivesse grandes ambições, foi nomeado Bispo de Vittorio
Veneto, a 15 de dezembro de 1958, por São João XXIII e Patriarca de
Veneza, a 1 de fevereiro de 1970, por São Paulo VI, que o fez cardeal com o
título de São Marcos, a 5 de março de 1973. Participou no Concílio
Vaticano II, convocado por São João XXIII em 25 de dezembro de 1961, pela
Constituição Apostólica “Humanae Salutis”,
e iniciado a 11 de outubro de 1962, nos termos da Carta Apostólica “Consilium”.
Albino
Luciani era, pois, o Patriarca de Veneza quando, com 65 anos, foi
eleito Papa, a 26 de agosto de 1978, na terceira votação do conclave que
se seguiu à morte do Papa São Paulo VI – superando o cardeal Giuseppe
Siri, considerado “ultraconservador”, mas favorito ao trono de São Pedro,
de acordo com a imprensa – por 99 votos a 11. Segundo se conta, a princípio,
um atónito Luciani teria declinado a aceitação do pontificado, com que
nunca sonhara, mas fora persuadido do contrário pelo cardeal holandês
Johannes Willebrands, que estava sentado a seu lado na Capela Sistina.
Para isso, ter-lhe-á dito: “Coragem. O Senhor dá o fardo, mas também a força
para carregá-lo” – estímulo atribuído por outros ao cardeal português Dom
António Ribeiro, Patriarca de Lisboa. Por ocasião do conclave, o cardeal
britânico Basil Hume, um dos seus eleitores, chamou João Paulo I “o candidato
de Deus”.
Sobre a
brevidade do seu pontificado – apenas 33 dias, entre 26 de agosto de 1978 até
a data da sua morte na madrugada 27 para 28 de setembro do mesmo ano, entre 23,30
horas e as 4,30 horas da manhã, no Palácio Apostólico do Vaticano –, a
revista italiana “30 Giorni” revela,
com base em declarações de um dos irmãos de João Paulo I, que a Irmã Lúcia,
durante a visita que o então Patriarca de Veneza lhe fez no Carmelo
de Santa Teresa, em Coimbra, sempre o tratou por “Santo Padre”. O Cardeal Luciani, impressionado, perguntou “porquê”, ao que Lúcia respondeu: “Vossa Eminência um dia será eleito Papa”.
E ele disse: “Sabe-se lá, irmã…”. E a Irmã retorquiu: “Será, sim, mas o seu
pontificado será muito breve”. Por outro lado, uma lenda reza que o Papa
Luciani teria feito uma premonição sobre a sua morte ao afirmar a conhecidos
que “alguém mais forte que eu, e que
merece estar neste lugar, estava sentado à minha frente durante o conclave”.
Um cardeal presente na ocasião – que se escudou no anonimato –
confirmou que esse homem era, de facto, o polaco Karol Wojtyla. “Ele virá, porque eu me vou”, prosseguiu
o “Papa Breve”. Na verdade, Wojtyla realmente votara em Luciani naquele
conclave e, logo depois, tornou-se João Paulo II. Ora, o que há de
concreto é que João Paulo I teria falado da sua morte um dia antes dela ao
Bispo John Magee.
A versão
oficial é a de que o Papa estivera a beber um chá durante a tarde do dia 27 de setembro
de 1978. E, quando rezava na capela papal acompanhado pelo seu secretário, o
irlandês John Magee, João Paulo teve uma forte dor no peito, mas recusou chamar
o médico. Jantou, deitou-se e acabaria por morrer nessa noite, tendo sido
encontrado morto pela manhã.
Embora tenha
sido encontrado morto por uma freira que trabalhava para ele e o acordava havia
muitos anos, a versão oficial do Vaticano é de que o corpo de João Paulo I
teria sido encontrado pelo Padre Diego Lorenzi, um dos seus secretários,
enunciando a morte como “possivelmente associada com enfarte do miocárdio”.
Para alguns, o Papa teria sido vítima das terríveis pressões caraterísticas do
seu cargo e que, não as tendo suportado, veio a perecer. A mencionada freira,
após a morte deste, fez voto de silêncio. Outra hipótese levantada foi a
de que o Papa “Sorriso de Deus” teria
sido vítima de embolia pulmonar.
Fosse como
fosse, a sua morte provocou enorme consternação entre os católicos: mesmo
sob chuva torrencial, a Praça de São Pedro esteve totalmente lotada aquando dos
seus funerais. E, em sua homenagem, Karol Wojtyla, seu sucessor, adotaria o seu
nome papal ao ser eleito, a 16 de outubro de 1978 , tornando-se
o Papa João Paulo II, que agora é São João Paulo II.
Várias
teorias da conspiração foram alimentadas pela sua morte, 33 dias após a sua
eleição para o papado, e pelas alegadas dificuldades do Vaticano com os
procedimentos legais e cerimoniais, a par de declarações inconsistentes feitas
após a sua morte. O britânico David Yallop escreveu extensivamente
sobre crimes não resolvidos e teorias da conspiração e, no livro de 1984 “In
God’s Name” sugeriu
que João Paulo I morrera por estar prestes a descobrir escândalos financeiros
supostamente envolvendo o Vaticano, bem como a tomar uma postura diferente da
de Paulo VI exposta na encíclica “Humanae
Vitae”. John Cornwell respondeu Yallop em 1987, com “A
Thief In The Night”, em que
analisou as várias alegações e negou a conspiração. Para Eugene Kennedy, no “The New York Times”, o livro de Cornwell
“ajuda a purificar o ar de paranoia e teorias da conspiração, mostrando como a
verdade, cuidadosamente escavada por um jornalista num volume, pode refrescar-nos,
fazer-nos livres”.
Seja como
for, a figura de João Paulo I na Igreja Católica sempre foi a de um
papa afável, tendo recebido, por isso, a alcunha de “O Papa Sorriso”.
No 40.º ano
do seu falecimento, o mafioso Antoni Raimondi conta nas suas memórias ter
sido ele o assassino do Papa.
***
No 42.º aniversário do seu
falecimento, que ocorre
alguns meses após o anúncio da criação da Fundação Vaticana dedicada a ele, a
sua sobrinha Lina Petri admite que as especulações sobre a morte de Luciani lhe
ofuscaram a figura. E Mauro Velati sustenta que o Papa Luciani tem de ser
redescoberto, pois aplicou o Concílio colocando na realidade os conteúdos de fé.
Fabio Colagrande referiu ao “Vatican
News” que o Papa Francisco instituiu uma
Fundação Vaticana para aprofundar a figura, o pensamento e os ensinamentos do
Venerável João Paulo I. A Fundação é presidida pelo Cardeal Pietro Parolin,
Secretário de Estado do Vaticano, que descreveu João Paulo I como “um ponto de
referência na história da Igreja universal, cuja importância é inversamente
proporcional à duração do seu breve pontificado”. Nas palavras de Parolin, Luciani
foi “um bispo que viveu a experiência do Concílio Vaticano II, a aplicou e fez avançar
a Igreja pelos caminhos indicados por ele”.
Lina Petri,
filha de Antonia Luciani, irmã do Papa Luciani e membro do conselho de
administração da Fundação, imagina, em declarações ao “Vatican News”, como o
tio acolheria a notícia desta Fundação: confuso, visto que qualquer coisa referível
à sua pessoa “era demais para ele”. Todavia, apesar de ser “uma pessoa
extremamente humilde”, teria compreendido “a seriedade desta iniciativa”. Com
efeito, passados tantos anos, era útil e necessário “colocar um ponto firme e
tentar delinear bem a sua figura, o seu pensamento e as suas obras”.
Sobre o risco de a personalidade de Luciani “ter
ficado um pouco obscurecida” pelas palavras “ditas e publicadas sobre a sua
morte súbita”, Lina Petri pensa que a utilidade da Fundação é “tentar
evitar que os holofotes se acendam apenas na última noite” do tio, circunstância
que gerou tantas “fake news” e
disparates, especialmente num contexto comunicativo em que muitas vezes dominam
a “conjetura” e o “mistério”. Ora, segundo ela, em vez de se reduzir tudo à lenda
do “Papa que foi assassinado”, há que ter em conta a necessidade de olhar “toda
a sua obra”, destacar “todo o seu trabalho”, “toda a sua vida”, “tudo o que ele
foi”.
E chama a
atenção para a sem razão de ser da aludida lenda, dado que o epílogo da vida de
Albino Luciani “foi minuciosamente analisado em todos os níveis, tanto
documental como testemunhal, durante o processo de canonização” – trabalho de
mais de dez anos, cujo resultado foi resumido no livro de Stefania Falasca,
vice-postuladora da causa, “Papa Luciani:
crónica de uma morte”, recentemente reeditado pela Libreria Editrice
Vaticana, onde é esclarecido, de uma vez por todas, que a morte do Papa foi
normal, por enfarte do miocárdio. Portanto, não há razão para todas as
conjeturas que ofuscaram a sua imagem, a sua pastoralidade, o seu ser Papa,
mesmo sendo-o por apenas 33 ou 34 dias.
No final de
agosto, o Cardeal Secretário de Estado indicou os membros do Comité Científico
da Fundação João Paulo I. Coordenado pela vice-presidente da Fundação, Stefania
Falasca, o Comité inclui Mauro Velati, colaborador da Fundação para as Ciências
Religiosas “João XXIII” e da causa de canonização do Papa Luciani. Ora, Velati,
que realizou muitas pesquisas, sobretudo no Arquivo do Patriarcado de Veneza, é
um profundo conhecedor da biografia e do pensamento de João Paulo I, que
resumiu em entrevista ao “Vatican News”.
Assim, advertiu que João Paulo
I não deixou, ao invés dos antecessores, uma grande quantidade de escritos
privados e pessoais que nos permitam examinar a sua interioridade ou o modo
como viveu certas passagens muito importantes da sua vida. E, não existindo
diários reais e adequados seus, é difícil aceder ao “núcleo mais íntimo e
profundo da sua espiritualidade e da sua visão do mundo e da Igreja”. Porém,
uma grande quantidade de escritos que foram a base dos artigos e discursos
feitos por ele mostra que Luciani “concebeu o seu ministério como uma
oportunidade de colocar à disposição da Igreja a sua própria capacidade de divulgação”,
tendo sido, de facto, a catequese “um campo muito importante da sua ação
pastoral”, o que o levava a aplicar o seu mandato de bispo como um chamamento a
ser, mesmo que com humildade, “um mestre”, ou seja, alguém que pudesse explicar
a fé e falar dela aos coetâneos. Portanto, não há inéditos, sendo os seus
textos mais importantes os que publicou em várias ocasiões. De facto, como
pastor peculiar como era, “publicou uma quantidade muito grande de artigos”,
onde se vê o “seu desejo de contribuir para a vida da Igreja”, pelo que poderíamos
chamá-lo “um bispo jornalista”.
No atinente à atualidade do pensamento teológico e pastoral do
Venerável João Paulo I, Mauro Velati salienta o facto de Luciani
sempre pensar que tinha de “aplicar o conteúdo da fé à realidade de cada
momento”, não numa atualização distorcedora das categorias tradicionais da
doutrina, mas na sua elaboração com vista a “falar às pessoas através de uma
linguagem simples, uma linguagem próxima do povo que é a linguagem do amor”, privilegiando, ao longo da sua vida, o povo, os
homens simples. Como bispo e depois como Papa, sempre quis emparceirar, acima
de tudo, com os pequenos, os últimos: as crianças e os pobres.
Não tendo as
habilidades diplomáticas dos outros Papas do século XX, a relevância do seu
pensamento deriva da maneira como viveu a experiência do Concílio Vaticano II,
aquele momento histórico que “havia gerado uma mudança interior nele, uma
mudança da sua visão da Igreja e o levou a tentar aplicar nos vários momentos
da história vivida por ele”.
***
No
âmbito da preocupação pela catequese, acima referida, é de frisar que foi
diretor da catequese diocesana de Belluno, tendo publicado, em dezembro de
1949, “Catequese em migalhas”. Por
outro lado, é de referir as bastantes viagens que fez e que lhe deram a noção
de uma Igreja plural.
Da sua
simplicidade interpelante testemunham as cartas “Ilustrissimi”, bem como as 5 alocuções por ocasião da recitação do Angelus, as 4 audiências gerais, as 4
Cartas, os 8 discursos e as 3 mensagens. Entre estas, é de realçar a sua
primeira radiomensagem, que é programática e profundamente mergulhada na
Sagrada Escritura e na “Lumen Gentium”.
De igual
modo, sobressaem as homilias proferidas enquanto supremo Pastor da Igreja: a da
Missa que assinalava o solene início do
ministério de Supremo Pastor; e a da tomada de posse como Bispo da Diocese de
Roma – imersas na Sagrada Escritura, na Patrística e na “Lumen Gentium”, sendo que a primeira se
escora também na encíclica “Ecclesiam
Suam”, de São Paulo VI, a da consciência da Igreja e da sua postura
dialogante, e a segunda também na escrita hagiográfica.
Enfim, é
de estudar o pensamento do Venerável João Paulo I, santo e pastor a redescobrir
aprofundando os textos que produziu como Papa, mas em articulação com o que pensava
como sacerdote e bispo, creio que à maneira de Santo Agostinho.
2020.09.29 –
Louro de Carvalho
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