A
perícopa evangélica (Mt
21, 28-32),
proposta para o XXVI domingo do Tempo Comum no Ano A, coloca-nos em Jerusalém, na etapa
final da caminhada terrena de Jesus, que entrara, pouco antes, em Jerusalém,
recebido triunfalmente pela multidão (cf Mt 21,1-11). Porém, o entusiasmo inicial foi
paulatinamente substituído pela recusa categórica em acolher Jesus e o seu
projeto. Com efeito, os líderes religiosos judaicos surgem como o motor da
oposição a Jesus, não dispostos a reconhecê-Lo como o Messias e a aceitar que
tenha mandato de Deus para propor a nova realidade do Reino. E a tensão que
paira no ar já prenuncia a paixão e morte de Jesus.
No quadro que antecede este episódio (Mt 21,23-27) e em conexão direta com ele, os
líderes judeus – os “chefes dos sacerdotes” e aos “anciãos” do povo, os bem
colocados na religião e na vida pública – encontram-se com Jesus no Templo e perguntam-Lhe com que
autoridade age e quais as suas credenciais, ao que Ele responde convidando-os a
pronunciarem-se sobre a origem do batismo de João. Porém, não arriscam
responder, pois dizerem que João não vinha de Deus provocaria a reação da
multidão (que o considerava
um profeta) e admitirem
que o batismo de João vinha de Deus implicaria que Jesus lhes perguntasse
porque não o aceitaram. Ora, ante o silêncio embaraçado dos interlocutores,
Jesus deu-lhes a entender que não tinha resposta para lhes dar, enquanto continuassem
de coração fechado a recusar obstinadamente a novidade de Deus (anunciada por João e proposta pelo
próprio Jesus).
Na sequência, Jesus apresenta três parábolas para ilustrar a
recusa de Israel em acolher o Reino. Com elas, convida os líderes judaicos a
refletirem sobre a situação de gueto em que se instalaram e a reconhecerem o
sem sentido das suas posições fixistas e conservadoras.
A parábola do “homem” (ánthrôpos) que tem “dois filhos” (tékna dúo) e uma
“vinha” (ampelôna), querendo que “hoje” (sêmeron) vão “trabalhar” (ergázou) nela, que é a primeira das ditas três
parábolas, ilustra, continuando o diálogo de Jesus com os seus interlocutores,
duas atitudes diversas ante os desafios e propostas de Deus. Um dos filhos foi
convidado pelo pai a trabalhar “na vinha” (en tô ampelôni). A resposta foi: “Não
quero”. No contexto familiar da Palestina do tempo de Jesus, é resposta reprovável,
pois uma atitude deste tipo ia contra as convenções sociais, envergonhando o
pai e pondo em causa a sua autoridade diante dos familiares, amigos e vizinhos.
Contudo, o filho reconsiderou e foi trabalhar na vinha (vv. 28-29). O outro filho a convite idêntico
respondeu: “vou, sim, senhor”. Deu ao
pai resposta satisfatória, que não punha em causa a sua autoridade e “honra”.
Ficou bem visto diante de todos, que o consideraram um filho exemplar. No
entanto, acabou por não ir trabalhar na vinha (v. 30).
Ao invés da parábola da vinha, do dono e dos trabalhadores
chamados a trabalhar a várias horas do dia, em que nenhum dos trabalhadores
teve oportunidade de dizer ‘sim’ ou ‘não’ (Mt
20,1-16a), aqui
trata-se se filhos, que são livres, podendo usar da sua liberdade e pensar pela
sua cabeça.
Perante
a atitude dos dois filhos, o Mestre interpela os
bem colocados na religião e na vida pública: “Que vos parece?” (Mt 21,28), “qual dos dois fez a vontade do Pai?” (Mt 21,31). Ora,
a resposta à questão sobre a apreciação do episódio é tão óbvia que os próprios
interlocutores de Jesus não têm pejo em a dar: “o primeiro” (v. Mt 21,31).
Dom António
Couto, Bispo de Lamego (vd Jornal da Madeira, 27.09.2020), a este propósito, faz um breve excursus temático,
nos termos do qual os fariseus aparecem em Mateus como os que “dizem, mas não
fazem” (cf Mt 23,3). E “fazer”, em oposição a dizer, é tema fundamental
neste Evangelho, expresso por Jesus no discurso programático da Montanha: “Nem todo o que me diz: ‘Senhor, Senhor’
entrará no Reino dos Céus, mas o que faz a vontade do meu Pai que está nos céus”
(Mt 7,21). Mais: em Mateus, o verdadeiro ‘fazer’ é ‘fazer
fruto’ (frutificar), na sequência da conversão operada na nossa vida. Pela
sua importância, a ideia é recorrente no 1.º Evangelho (vd Mt 3,8;
7,16-20; 12,33; 13,8; 21,41.43; 25,40.45). Por outro
lado, aparece aqui a “justiça”, um termo recorrente em Mateus a indicar o desígnio
divino de salvação e o nosso dever de obediência a esse desígnio. Dada a sua
relevância, a nota da “justiça” faz-se ouvir 7 vezes neste Evangelho (vd Mt 3,15;
5,6.10.20; 6,1.33; 21,32). Assim, é mais
fácil abrirmo-nos à força da parábola de Jesus, contada a gente habituada só a “dizer”.
Obviamente o homem e pai da parábola é Deus. A vinha é dele e nossa. O homem
não diz “minha” vinha (ampelôná mou), como na
parábola anterior da vinha (Mt 20,1-16a). A vinha é do pai e é dos filhos. É, pois, campo aberto
de alegria e de liberdade, onde todos os filhos podem encontrar espaço
relacional de filialidade e fraternidade.
Este pai tem
dois filhos, personagens-tipo de todos os filhos de Deus, nas semelhanças e
diferenças. Ao primeiro, o pai diz: “Filho,
vai hoje trabalhar na vinha” (Mt 21,28). São de notar o termo carinhoso “filho” (téknon), o imperativo “vai”, que nos põe na estrada de
Abraão, o “hoje”, que requer resposta pronta e inadiável, e a “vinha”, símbolo
da festa e da alegria. Porém, o filho responde de forma insolente: “Não quero” (Mt 21,29a). Mas, a seguir, “arrependeu-se e foi” (Mt 21,29b). Ao invés, a resposta do outro filho, depois de ter
ouvido o mesmo convite do Pai, foi pronta: “Eu
vou, Senhor” (Mateus 21,30a). Todavia,
como verifica o narrador, não foi (Mt 21,30b).
A parábola ensina que, na ótica de Deus, o importante não é
quem se comportou bem e não escandalizou os outros, mas quem, realmente, cumpre
a vontade do Pai. Na perspetiva de Deus, não bastam palavras belas ou
declarações de boas intenções, mas impõe-se a resposta adequada e coerente aos
desafios do Pai.
Os fariseus, os sacerdotes, os anciãos do Povo, disseram
“sim” a Deus ao aceitar a Lei de Moisés. A sua atitude – como a do filho que
disse “sim”, mas não foi trabalhar para a vinha – foi irrepreensível de acordo
com as convenções sociais. Porém, do ponto de vista de Deus, a sua atitude foi
uma mentira, pois recusaram-se a acolher o convite de João à conversão. Em
contrapartida, quem, de acordo com o “política e religiosamente correto” disse
“não” (por exemplo, os
cobradores de impostos e as prostitutas), cumpriu a vontade do Pai: acolheu o convite do Batista à
conversão e a proposta do Reino que Jesus veio apresentar (vd Mt 21, 32).
Lida no contexto do ministério de Jesus, a parábola respondia
aos que O acusavam de acolher os pecadores e os marginais – isto é, os que,
segundo as “convenções”, disseram “não” a Deus. Jesus deixa claro que, na
perspetiva de Deus, não interessam as convenções externas, mas a atitude
interior. Quem honra a Deus não é o que cumpre ritos externos e dá “boa
impressão” às massas, mas o que cumpre a vontade de Deus.
Mais tarde, a comunidade mateana leu a parábola numa ótica um
pouco diversa: para iluminar a recusa do Evangelho por parte dos judeus e o seu
acolhimento por parte dos pagãos. Israel seria esse “filho” que aceitou trabalhar
na vinha, mas não cumpriu a vontade do Pai; e os pagãos seriam o “filho” que, aparentemente,
esteve sempre à margem dos projetos do Pai, mas aceitou o Evangelho de Jesus e
aderiu ao Reino. Na verdade, todos os filhos de Deus ouvem o mesmo convite e
veem a mesma atitude de carinho. Respondem ‘não’ ou ‘sim’, e ambos mudam. O que
disse ‘não’, de facto, hoje faz a vontade do Pai; o que disse ‘sim’, ficou nas
palavras, apenas mudando o ‘sim’ em ‘não’. De facto, os interpelados por Jesus,
os que só “dizem”, têm de reconhecer que não é o que “se diz”, mas o que “se
faz” que verdadeiramente conta, reconhecendo que João os tinha chamado à
conversão para fazerem frutos de justiça (Mt 3,8; 21,32) e obedecerem ao desígnio de Deus, ao que não deram qualquer
atenção (Mt 21,32). Na verdade, o que fez João é o que
Jesus faz agora, e tão-pouco lhe prestam atenção, convertendo-se ou mudando de
vida, atitudes e comportamentos. E aqui são chamados a fazer contraponto os publicanos
e as prostitutas, que ouviram João e ouvem agora Jesus, estando a mudar de vida
(Mt 21,31-32). E não podemos desmentir isto, pois
o autor humano destas páginas, Mateus, era um publicano. E mudou tanto que
passou a Apóstolo e Evangelista.
A seguir (Mt 21,
33-43), vem a parábola dos vinhateiros
homicidas, que a liturgia do próximo domingo fará proclamar e meditar. E Dom
António Couto sublinha que, embora os chefes dos sacerdotes e os fariseus tenham
respondido a Jesus no fim de cada parábola, no final de duas das parábolas cuja
temática é a “vinha”, reagem às interpelações de Jesus compreendendo que eram eles
os visados e procurando meio de O prenderem às ocultas por temerem o povo, que
O considerava profeta (cf Mt 21,45-46).
E, em consonância
com a parábola da perícopa evangélica em referência neste dia, é oportuno verificar
como Ezequiel ergue a sua voz profética para nos dizer que, enquanto o justo,
se renunciar à retidão e cair no pecado, morrerá, o pecador salvará a sua vida,
se abrir os olhos do coração, se afastar do mal e começar a trilhar os caminhos
do direito e da justiça (Ez 18,25-28).
Além disso,
embora o pecado de um membro da comunidade afete os outros irmãos, membros da
mesma comunidade, pois introduz sempre elementos de desequilíbrio, desarmonia,
egoísmo e ruptura, que atingem todos aqueles que caminham connosco, o profeta
quer sublinhar que cada homem ou mulher tem de sentir-se pessoalmente
responsável diante de Deus pelas suas opções e atos. Ou seja, é preciso
superar a mentalidade coletiva para dar lugar à responsabilidade
individual – um dos grandes progressos na história teológica de Israel, tendo o
Povo aprendido a reagir em termos individuais e não em termos massivos.
Está, pois, aberto o caminho para uma Nova Aliança, que não é
feita genericamente com uma comunidade, mas uma Aliança pessoal e interior,
feita com cada crente, obviamente inserido na comunidade. Está aberta
a porta que conduz à vida, não, porém, à custa de Deus, querendo fazer vingar
os nossos direitos sobre Ele, para que Ele dê razão aos nossos caprichos, mas
dando-Lhe o lugar que Lhe compete, o primeiro, e convertendo-nos nós aos seus
desígnios, isto é, respondendo-lhe nos passos concretos e quotidianos da nossa
vida, dele por graça recebida.
São Paulo
coloca diante de nós, para imitar, o exemplo de Jesus Cristo, que desceu ao
nosso nível (ekénôsen morphên doúlou ), para nos
servir com doçura e humildade (Fl 2,1-11). É nele e
dele, desde a fundura das entranhas das misericórdias e a transbordar de amor,
que viveremos unidos, na comunhão do Espírito que opera a união. Vê-se nascer assim,
apesar dos problemas, a comunidade não autorreferencial, estando cada um mais
atento aos outros do que a si próprio.
Por fim, é de
referir que, no quadro da opção preferencial pelos pecadores, José Antonio Pagola conta que um grupo de prostitutas de diferentes
países, acompanhadas por Irmãs Oblatas, refletiu sobre Jesus em torno do livro “Jesus. Aproximação histórica”, comovendo-o
a força de atração de Jesus para estas mulheres e interrogando-se sobre o
mistério de Jesus nos corações.
Genêthétô tò thélêmá sou – Seja feita a tua vontade (Mt 6,10)!
2020.09.27 –
Louro de Carvalho
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