Em dito manifesto pela liberdade de educação, perto de cem personalidades pedem o respeito pela
objeção de consciência para recusa da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento
(CD).
O movimento deriva do caso de dois
irmãos de Vila Nova de Famalicão que, por opção dos pais, faltaram a todas as
aulas de CD, aduzindo que são da responsabilidade educativa das famílias os
tópicos da disciplina. Entre eles, estão sexualidade, género, interculturalidade,
comunicação social e ambiente.
O caso arrasta-se desde o ano letivo
2018/19, tendo os alunos transitado de ano por decisão do conselho de turma.
Mas, este ano, no início do 2.º período, o ME (Ministério da Educação) avisou que teriam de repor todas as aulas em atraso
da disciplina, correndo o risco de voltar atrás.
A família não se conformou e colocou
dois processos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga contra o ME. E,
agora, o manifesto junta nomes como Dom Manuel Clemente, Dom António Moiteiro,
Cavaco Silva, Passos Coelho, Adriano Moreira e Ribeiro e Castro, Sérgio Sousa
Pinto (dissidente da
linha dominante no PS),
David Justino, Carmo Seabra, António Barreto, José Souto Moura, médicos,
diretores de colégios e até militares.
Pedem que as políticas públicas de
educação respeitem sempre e escrupulosamente, neste caso e em todos os demais
casos análogos, a prioridade do direito e do dever das mães e pais de
escolherem ‘o género de educação a dar aos seus filhos’, em consonância com a
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Pedem também que, em especial e de
acordo com a LBSE (Lei de
Bases do Sistema Educativo), as políticas de educação respeitem a objeção de consciência das mães e
pais quanto à frequência da disciplina de CD, “cujos conteúdos, aliás de facto
muito densificados do ponto de vista das liberdades de educação em matéria
cívica e moral, não podem ser impostos à liberdade de consciência”.
***
Do que
se lê no site da DGE (Direção-Geral da Educação) e do documento “Estratégia Nacional para a Cidadania”, os
conteúdos acima referidos vêm em coexistência com muitos outros e com o devido
enquadramento estribado na LBSE (Lei n.º 46/86, de 14 de outubro,
na sua atual redação),
cuja aprovação foi quase consensual e que, no seu art.º 3.º, diz almejar “a realização do educando, através do pleno
desenvolvimento da personalidade, da formação do carácter e da cidadania” e “assegurar
a formação cívica e moral dos jovens”. Por isso, “a relação entre o
indivíduo e o mundo que o rodeia, construída numa dinâmica constante com os
espaços físico, social, histórico e cultural” (DGE), coloca a escola perante “o
desafio de assegurar a preparação dos alunos para as múltiplas exigências da
sociedade contemporânea”, sendo que “a complexidade e a acelerada transformação
que caraterizam a atualidade” geram “a necessidade do desenvolvimento de
competências diversas para o exercício da cidadania democrática, requerendo um
papel preponderante por parte da escola” (DGE).
Para a
redefinição da educação para a cidadania, foi constituído um Grupo de Trabalho,
com a missão de conceber uma Estratégia
de Educação para a Cidadania (cf Despacho n.º
6173/2016, de 10 de maio),
a implementar na escola, que integra um conjunto de competências e conhecimentos,
em convergência com o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (PA) e com as Aprendizagens
Essenciais (AE).
O PA “visa a formação do indivíduo como cidadão participativo, iniciando o
caminho do exercício da cidadania ao longo da vida”; e as AE “elencam os
conhecimentos, as capacidades e as atitudes a desenvolver por todos os alunos,
conducentes ao desenvolvimento das competências inscritas no PA”, no quadro de “um
processo de promoção da autonomia e flexibilidade curricular”.
Deste
modo, em CD, os professores “têm como missão preparar os alunos para a vida,
para serem cidadãos democráticos, participativos e humanistas, numa época de
diversidade social e cultural crescente, no sentido de promover a tolerância e
a não discriminação, bem como de suprimir os radicalismos violentos”. Por isso,
“a formação humanista dos professores é fundamental, porquanto facilita a
interligação entre as aprendizagens das disciplinas e os domínios a serem
abordados nesta componente do currículo”. Paralelamente, “poderão ser tidos em
consideração outros fatores relativamente aos professores: formação na área da
cidadania, motivação para abordagem desta área e para a utilização de
metodologias de projeto e experiência na coordenação de equipas pedagógicas”.
Assim, a
Educação para a Cidadania consubstancia-se na componente de currículo CD que
integra as matrizes de todos os anos de escolaridade, do ensino básico e do
ensino secundário.
No 1.º
ciclo do ensino básico, a CD é uma área de natureza transdisciplinar, potenciada
pela dimensão globalizante deste ensino. Nos 2.º e 3.º ciclos, a CD, enquanto
disciplina, pode funcionar numa organização semestral, anual ou outra. Nos
cursos de educação e formação de jovens de nível básico e no ensino secundário,
a CD é desenvolvida com o contributo de todas as disciplinas constantes nas
matrizes curriculares base
O modelo
proposto de operacionalização prevê, deste modo, três vertentes de desenvolvimento
desta componente: transversalmente na gestão curricular disciplinar e
multidisciplinar (toda a escolaridade); especificamente na disciplina
de Cidadania e Desenvolvimento (2.º e 3.º ciclo EB); globalmente em projetos de
escola (toda
a escolaridade).
No
âmbito de CD, consideram-se aprendizagens esperadas por ciclo e por domínios:
conceção de cidadania ativa; identificação de competências essenciais de
formação cidadã (competências para uma cultura da democracia); identificação de domínios
essenciais (vg: interculturalidade, direitos humanos, igualdade
de género, sustentabilidade, media, saúde)
– em toda a escolaridade.
Os
domínios da componente de CD organizam-se em três grupos do seguinte modo:
1.º
Grupo – obrigatório para todos os níveis e ciclos de escolaridade (porque
de áreas transversais e longitudinais):
direitos humanos (civis e políticos, económicos, sociais
e culturais e de solidariedade);
igualdade de género; interculturalidade (diversidade cultural e
religiosa);
desenvolvimento sustentável; educação ambiental; saúde (promoção
da saúde, saúde pública, alimentação, exercício físico).
2.º
Grupo – trabalhado pelo menos em dois ciclos do ensino básico: sexualidade (diversidade,
direitos, saúde sexual e reprodutiva);
media; instituições e participação democrática; literacia financeira e educação
para o consumo; segurança rodoviária; risco.
3.º
Grupo – com aplicação opcional em qualquer ano de escolaridade: empreendedorismo
(na
suas vertentes económica e social);
mundo do trabalho; risco; segurança, defesa e paz; bem-estar animal;
voluntariado; outras, de acordo com as necessidades de educação para a
cidadania diagnosticadas pela escola.
O desenvolvimento
em CD deve ser consolidado, de modo que os alunos, ao longo dos diferentes
ciclos, experienciem e adquiram competências e conhecimentos de cidadania, em
várias vertentes. Os referenciais de educação elaborados pelo ME, em
colaboração com outros organismos e instituições públicas e diversos parceiros
da sociedade civil, assumem-se como documentos de referência para os domínios a
desenvolver na CD, não se constituindo como guias ou programas prescritivos,
mas instrumentos que, no âmbito da autonomia de cada escola, podem ser
utilizados e adaptados em função das opções a definir em cada contexto.
A
componente de CD, em todos os níveis e ciclos de ensino, é objeto de avaliação,
em conformidade com a sua presença nas matrizes curriculares-base e a
legislação em vigor.
Os
critérios de avaliação em CD são definidos pelo Conselho de Turma e pela
escola, e validados pelo Conselho Pedagógico, devendo considerar-se o impacto
da participação dos alunos nas atividades realizadas na escola e na comunidade.
A avaliação interna das aprendizagens em CD, à semelhança das restantes
disciplinas, é da responsabilidade dos professores e dos órgãos de
administração e gestão, de coordenação e supervisão pedagógica.
A avaliação
deverá ter lugar de forma contínua e sistemática, adaptada aos avaliados, às
atividades e aos contextos em que ocorre. Assim, deverão ser diversificadas as
formas de recolha de informação e utilizadas diferentes técnicas e instrumentos
de avaliação.
A
presença acentuada da cidadania na educação configura a intenção de assegurar “um
conjunto de direitos e deveres que devem ser veiculados na formação das
crianças e jovens portugueses de modo que no futuro sejam adultos e adultas com
uma conduta cívica que privilegie a igualdade nas relações interpessoais, a
integração da diferença, o respeito pelos Direitos Humanos e a valorização de
valores e conceitos de cidadania nacional” (cf Despacho mencionado).
***
Posto
isto, devo dizer que, a meu ver, a exigência de objeção de consciência é
excessiva no caso. De contrário, deveria ser condenada, mesmo que a posteriori, a adesão ao corporativismo
do Estado Novo ou a fé na organização política e administrativa da nação e o
conceito providencialista de História; e, agora, como dantes, deveriam requerer
a objeção a programas de algumas disciplinas, como História, Geografia,
Ciências Naturais, Biologia, Filosofia e, quiçá, Teologia. Depois, não é lícito
que um caso tente arrastar consigo toda a sociedade, fazendo crer que a CD se
reduz a uns tantos conteúdos programáticos ou pensando que ela se vê pela ótica
de alguns responsáveis locais.
Entendo
que os encarregados de educação possam legitimamente objetar a rubricas como a
identidade e igualdade de género por ser teoria não consensual. Já não digo o
mesmo de educação ambiental (a não ser como a propalam alguns
ambientalistas) ou
da educação sexual, que já ninguém contestava, a não ser no que toca a alguns
excessos de orientação (vários setores eclesiais prepararam
materiais para esta vertente).
Não querem que o educando conheça o corpo humano?!
Os professores,
havendo objeção de consciência em relação a determinada rubrica, avisariam o
encarregado de educação de que o seu educando estaria dispensado dos dias x, y
e z em que os seus conteúdos fossem trabalhados, pedir-lhe-iam um trabalho
alternativo e a avaliação seria, como vem referido assim, “adaptada aos
avaliados, às atividades e aos contextos em que ocorre”. Não é isto compatível
com a autonomia e a flexibilização curricular?
Porém,
dado o quadrante político de que provêm algumas assinaturas, ou seja, contra a
orientação global da política educativa vigente, arrastando consigo pessoas de
bem, parece-me que a intenção é criar um precedente que, no fundo, não se
justifica. Aliás, está aberta a porta ao ensino particular e cooperativo. Tem
custos acrescidos? Sempre os teve.
2020.09.02 –
Louro de Carvalho
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