quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Sobre o eventual estabelecimento da objeção de consciência em CD

 

Em dito manifesto pela liberdade de educação, perto de cem personalidades pedem o respeito pela objeção de consciência para recusa da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento (CD).

O movimento deriva do caso de dois irmãos de Vila Nova de Famalicão que, por opção dos pais, faltaram a todas as aulas de CD, aduzindo que são da responsabilidade educativa das famílias os tópicos da disciplina. Entre eles, estão sexualidade, género, interculturalidade, comunicação social e ambiente.

O caso arrasta-se desde o ano letivo 2018/19, tendo os alunos transitado de ano por decisão do conselho de turma. Mas, este ano, no início do 2.º período, o ME (Ministério da Educação) avisou que teriam de repor todas as aulas em atraso da disciplina, correndo o risco de voltar atrás.

A família não se conformou e colocou dois processos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga contra o ME. E, agora, o manifesto junta nomes como Dom Manuel Clemente, Dom António Moiteiro, Cavaco Silva, Passos Coelho, Adriano Moreira e Ribeiro e Castro, Sérgio Sousa Pinto (dissidente da linha dominante no PS), David Justino, Carmo Seabra, António Barreto, José Souto Moura, médicos, diretores de colégios e até militares.

Pedem que as políticas públicas de educação respeitem sempre e escrupulosamente, neste caso e em todos os demais casos análogos, a prioridade do direito e do dever das mães e pais de escolherem ‘o género de educação a dar aos seus filhos’, em consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Pedem também que, em especial e de acordo com a LBSE (Lei de Bases do Sistema Educativo), as políticas de educação respeitem a objeção de consciência das mães e pais quanto à frequência da disciplina de CD, “cujos conteúdos, aliás de facto muito densificados do ponto de vista das liberdades de educação em matéria cívica e moral, não podem ser impostos à liberdade de consciência”.

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Do que se lê no site da DGE (Direção-Geral da Educação) e do documento “Estratégia Nacional para a Cidadania”, os conteúdos acima referidos vêm em coexistência com muitos outros e com o devido enquadramento estribado na LBSE (Lei n.º 46/86, de 14 de outubro, na sua atual redação), cuja aprovação foi quase consensual e que, no seu art.º 3.º, diz almejar “a realização do educando, através do pleno desenvolvimento da personalidade, da formação do carácter e da cidadania” e “assegurar a formação cívica e moral dos jovens”. Por isso, “a relação entre o indivíduo e o mundo que o rodeia, construída numa dinâmica constante com os espaços físico, social, histórico e cultural” (DGE), coloca a escola perante “o desafio de assegurar a preparação dos alunos para as múltiplas exigências da sociedade contemporânea”, sendo que “a complexidade e a acelerada transformação que caraterizam a atualidade” geram “a necessidade do desenvolvimento de competências diversas para o exercício da cidadania democrática, requerendo um papel preponderante por parte da escola” (DGE).

Para a redefinição da educação para a cidadania, foi constituído um Grupo de Trabalho, com a missão de conceber uma Estratégia de Educação para a Cidadania (cf Despacho n.º 6173/2016, de 10 de maio), a implementar na escola, que integra um conjunto de competências e conhecimentos, em convergência com o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (PA) e com as Aprendizagens Essenciais (AE). O PA “visa a formação do indivíduo como cidadão participativo, iniciando o caminho do exercício da cidadania ao longo da vida”; e as AE “elencam os conhecimentos, as capacidades e as atitudes a desenvolver por todos os alunos, conducentes ao desenvolvimento das competências inscritas no PA”, no quadro de “um processo de promoção da autonomia e flexibilidade curricular”.

Deste modo, em CD, os professores “têm como missão preparar os alunos para a vida, para serem cidadãos democráticos, participativos e humanistas, numa época de diversidade social e cultural crescente, no sentido de promover a tolerância e a não discriminação, bem como de suprimir os radicalismos violentos”. Por isso, “a formação humanista dos professores é fundamental, porquanto facilita a interligação entre as aprendizagens das disciplinas e os domínios a serem abordados nesta componente do currículo”. Paralelamente, “poderão ser tidos em consideração outros fatores relativamente aos professores: formação na área da cidadania, motivação para abordagem desta área e para a utilização de metodologias de projeto e experiência na coordenação de equipas pedagógicas”.

Assim, a Educação para a Cidadania consubstancia-se na componente de currículo CD que integra as matrizes de todos os anos de escolaridade, do ensino básico e do ensino secundário.

No 1.º ciclo do ensino básico, a CD é uma área de natureza transdisciplinar, potenciada pela dimensão globalizante deste ensino. Nos 2.º e 3.º ciclos, a CD, enquanto disciplina, pode funcionar numa organização semestral, anual ou outra. Nos cursos de educação e formação de jovens de nível básico e no ensino secundário, a CD é desenvolvida com o contributo de todas as disciplinas constantes nas matrizes curriculares base

O modelo proposto de operacionalização prevê, deste modo, três vertentes de desenvolvimento desta componente: transversalmente na gestão curricular disciplinar e multidisciplinar (toda a escolaridade); especificamente na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento (2.º e 3.º ciclo EB); globalmente em projetos de escola (toda a escolaridade).

No âmbito de CD, consideram-se aprendizagens esperadas por ciclo e por domínios: conceção de cidadania ativa; identificação de competências essenciais de formação cidadã (competências para uma cultura da democracia); identificação de domínios essenciais (vg: interculturalidade, direitos humanos, igualdade de género, sustentabilidade, media, saúde) – em toda a escolaridade.

Os domínios da componente de CD organizam-se em três grupos do seguinte modo:

1.º Grupo – obrigatório para todos os níveis e ciclos de escolaridade (porque de áreas transversais e longitudinais): direitos humanos (civis e políticos, económicos, sociais e culturais e de solidariedade); igualdade de género; interculturalidade (diversidade cultural e religiosa); desenvolvimento sustentável; educação ambiental; saúde (promoção da saúde, saúde pública, alimentação, exercício físico).

2.º Grupo – trabalhado pelo menos em dois ciclos do ensino básico: sexualidade (diversidade, direitos, saúde sexual e reprodutiva); media; instituições e participação democrática; literacia financeira e educação para o consumo; segurança rodoviária; risco.

3.º Grupo – com aplicação opcional em qualquer ano de escolaridade: empreendedorismo (na suas vertentes económica e social); mundo do trabalho; risco; segurança, defesa e paz; bem-estar animal; voluntariado; outras, de acordo com as necessidades de educação para a cidadania diagnosticadas pela escola.

O desenvolvimento em CD deve ser consolidado, de modo que os alunos, ao longo dos diferentes ciclos, experienciem e adquiram competências e conhecimentos de cidadania, em várias vertentes. Os referenciais de educação elaborados pelo ME, em colaboração com outros organismos e instituições públicas e diversos parceiros da sociedade civil, assumem-se como documentos de referência para os domínios a desenvolver na CD, não se constituindo como guias ou programas prescritivos, mas instrumentos que, no âmbito da autonomia de cada escola, podem ser utilizados e adaptados em função das opções a definir em cada contexto.

A componente de CD, em todos os níveis e ciclos de ensino, é objeto de avaliação, em conformidade com a sua presença nas matrizes curriculares-base e a legislação em vigor.

Os critérios de avaliação em CD são definidos pelo Conselho de Turma e pela escola, e validados pelo Conselho Pedagógico, devendo considerar-se o impacto da participação dos alunos nas atividades realizadas na escola e na comunidade. A avaliação interna das aprendizagens em CD, à semelhança das restantes disciplinas, é da responsabilidade dos professores e dos órgãos de administração e gestão, de coordenação e supervisão pedagógica.

A avaliação deverá ter lugar de forma contínua e sistemática, adaptada aos avaliados, às atividades e aos contextos em que ocorre. Assim, deverão ser diversificadas as formas de recolha de informação e utilizadas diferentes técnicas e instrumentos de avaliação.

A presença acentuada da cidadania na educação configura a intenção de assegurar “um conjunto de direitos e deveres que devem ser veiculados na formação das crianças e jovens portugueses de modo que no futuro sejam adultos e adultas com uma conduta cívica que privilegie a igualdade nas relações interpessoais, a integração da diferença, o respeito pelos Direitos Humanos e a valorização de valores e conceitos de cidadania nacional” (cf Despacho mencionado).

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Posto isto, devo dizer que, a meu ver, a exigência de objeção de consciência é excessiva no caso. De contrário, deveria ser condenada, mesmo que a posteriori, a adesão ao corporativismo do Estado Novo ou a fé na organização política e administrativa da nação e o conceito providencialista de História; e, agora, como dantes, deveriam requerer a objeção a programas de algumas disciplinas, como História, Geografia, Ciências Naturais, Biologia, Filosofia e, quiçá, Teologia. Depois, não é lícito que um caso tente arrastar consigo toda a sociedade, fazendo crer que a CD se reduz a uns tantos conteúdos programáticos ou pensando que ela se vê pela ótica de alguns responsáveis locais.

Entendo que os encarregados de educação possam legitimamente objetar a rubricas como a identidade e igualdade de género por ser teoria não consensual. Já não digo o mesmo de educação ambiental (a não ser como a propalam alguns ambientalistas) ou da educação sexual, que já ninguém contestava, a não ser no que toca a alguns excessos de orientação (vários setores eclesiais prepararam materiais para esta vertente). Não querem que o educando conheça o corpo humano?!

Os professores, havendo objeção de consciência em relação a determinada rubrica, avisariam o encarregado de educação de que o seu educando estaria dispensado dos dias x, y e z em que os seus conteúdos fossem trabalhados, pedir-lhe-iam um trabalho alternativo e a avaliação seria, como vem referido assim, “adaptada aos avaliados, às atividades e aos contextos em que ocorre”. Não é isto compatível com a autonomia e a flexibilização curricular?

Porém, dado o quadrante político de que provêm algumas assinaturas, ou seja, contra a orientação global da política educativa vigente, arrastando consigo pessoas de bem, parece-me que a intenção é criar um precedente que, no fundo, não se justifica. Aliás, está aberta a porta ao ensino particular e cooperativo. Tem custos acrescidos? Sempre os teve.

2020.09.02 – Louro de Carvalho

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