sábado, 12 de setembro de 2020

Fátima é da Igreja e não é a Igreja que é de Fátima

 

Como qualquer organismo eclesial também o Santuário de Fátima está exposto a escrutínio e mesmo a críticas intra e intereclesiais, a par das críticas justa ou injustas de entidades exteriores ao Santuário e à Igreja. Por isso, embora aprecie como altamente positiva e meritória a ação de Fátima no contexto da missão evangelizadora, cultual, sócio-caritativa, espiritual, teológica e cultural, é com algum desconforto que leio a entrevista que o Reitor concedeu ao Expresso deste dia 12 de setembro.

Fez bem em repor a verdade sobre notícias dadas a lume, pelos vistos não sustentadas em factos ou na interpretação correta de alguns deles. Não obstante, parece-me que não era necessário acusar o toque de vitimização relativamente a críticas surgidas de dentro da Igreja diocesana ou mesmo da Igreja que vive em Portugal. As críticas devem ser analisadas e, se justas e construtivas, aceites, mas, se injustas ou demolidoras, passíveis de confronto com a verdade.

Obviamente que tudo se torna complicado quando se fala em dinheiro ou em questões laborais, sendo por aí que a Igreja é confrontada com a transparência, com a pobreza evangélica e com a própria doutrina social da Igreja.

Na entrevista ao Expresso, o Padre Carlos Cabecinhas assegura categoricamente que “não há, nem nunca houve, um plano de despedimentos no Santuário de Fátima” e que, embora a pandemia tenha originado um corte de 99% dos habituais grupos de peregrinos e reduzido para 23% o volume dos donativos, o Santuário “não está na falência”. Por outro lado, ao mesmo tempo que aduz que a polémica em torno da gestão económico-financeira provém de “meios intereclesiais”, reitera que Fátima não é obrigada por lei nem pelos estatutos (nomeadamente os novos que foram aprovados, a 15 de novembro de 2018, pela CEP e homologados a 7 de dezembro pelo Pontifício Conselho para a Nova Evangelização e que entraram em vigor a 20 de fevereiro de 2019), a prestar contas públicas, mas que as sujeita, como sempre, à análise de uma entidade externa e à aprovação do conselho nacional do Santuário, nos termos estatutários.

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Vista mais à lupa, a entrevista regista o dramatismo dos números no Santuário desde março até fins de maio, tempo em que se passou ao registo dum “progressivo aumento das presenças, sobretudo de portugueses”. E as celebrações de agosto tiveram a participação de seis grupos organizados, em contraste com os 280 do ano passado, o que põe a nu o estado gravíssimo do “tecido económico e social de Fátima”.

Comentando a congratulação do Cardeal Marto, em maio, por o Santuário ter enfrentado a pandemia sem despedimentos, o Padre Cabecinhas assegurou perentoriamente que “o santuário não tinha, em maio, nem tem agora nenhum plano de despedimentos”, contudo, realça que mudou “a perceção da pandemia”, pois “agora, temos consciência de que nos vai acompanhar por um prazo longo e a grande incógnita é quanto vai durar a crise económica que daí advirá”.

À objeção de que pode não haver plano de despedimentos, mas, havendo cortes nos custos de pessoal vai dar ao mesmo, o Reitor declarou que “o santuário tem condições para assegurar todos os 318 postos de trabalho que agora tem”, mas que não se sabe por quanto tempo. E revelou que, por via da informação aos funcionários da quebra de 99% dos grupos em Fátima e da quebra dos donativos na ordem dos 77%, “este ano houve 24 saídas, um terço das quais por iniciativa dos próprios funcionários, outras por reforma, outras por termo do contrato”. Também foi dito, sem qualquer pressão, que haveria abertura para quem se quisesse propor um acordo, tendo “como ponto de honra que sejam os trabalhadores a aderir”. Porém, o Padre Cabecinhas garantiu que, se não aderirem, “não há qualquer plano para os convidar a sair” e sustentou que “até ao final do ano podemos suportar os custos da manutenção de todos os postos”.

Furtou-se a explicar o sentido da afirmação que fizera, em comunicado, de que “isto é parte de uma campanha organizada “dentro da Igreja diocesana”, alegando tratar-se duma questão interna, não querendo “ir mais além”.

À questão se a crise financeira do santuário é uma questão interna da Igreja reagiu dizendo não conhecer “a origem da primeira notícia que dava conta do despedimento de 100 trabalhadores”, mas que a posterior envolvência da notícia “com a dedução de que isso era porque o santuário estava na falência devido a má gestão, foram elementos interpretativos vindos de ambientes intereclesiais”. Rejeita, porém, a hipótese de tal notícia ter advindo de “trabalhadores que se sentiram amea­çados”, comentando:

É um mistério como surgiram os 100 despedimentos. Nunca pensámos nisso, nem podíamos, porque o santuário não pode prescindir desse número de trabalhadores! Mas essa foi uma questão esclarecida. As polémicas depois alimentadas sabemos que saíram do âmbito intereclesial.”.

Não sabe nem se preocupa em saber se os seus pares na diocese estão a pôr o seu nome em causa, pois o que o preocupa “é que a administração do santuá­rio seja responsável, profissional e garanta os princípios da doutrina social da Igreja”, nos termos estatutários.

À questão de ser altura de mostrar as contas do santuário, que ninguém conhece desde 2005, responde que isso não depende de si,” mas do conselho nacional”, de que faz parte, sendo este órgão que decide. No entanto, recorda que as contas deixaram de se publicitar “por divergências na interpretação de alguns pontos da Concordata em matéria tributária”, divergências que se mantêm. Por isso, não pediu autorização para revelar as contas.

Torneando a alegada obrigação de transparência, sustenta que “o Santuário de Fátima não está falido, não está em insolvência, está numa situação económica estável” e que, se o conselho nacional decidir tornar públicas as contas, “serei o primeiro a fazer-me porta-voz”. Porém, não precisa de pedir ao conselho nacional que mude de posição para “poder defender a administração do santuário”. Assim, revelou que, “desde a última apresentação de contas, em 2005, o santuário registou três anos com saldo negativo”, mas que “2019 foi positivo”. E disse que “efetivamente, o santuário não está numa situação económica difícil”, estando, sim, como todas as instituições, “a viver um ano dramático por causa da pandemia”, sedo inevitável que este ano venha a fechar em negativo.

Escusou-se a falar em números atinentes aos ganhos no ano passado e às perdas deste ano, mas adiantou que “este ano, mesmo com esta enorme quebra, o santuário já despendeu em apoios sociais e à Igreja €780 mil, um aumento superior a 60% relativamente ao ano anterior”.

Concede que “há uma obrigação de respeito da doutrina social da Igreja, o que diferencia o santuário de uma empresa”, mas desmente que haja a propalada opacidade sobre as contas, embora não haja a sua publicitação, pois, desde 2006 são auditadas por uma entidade externa, não por obrigação legal, mas por opção. Com efeito, digo eu, uma instituição canónica como esta não está sujeita à obrigação de apresentar contas a alguma entidade fora da Igreja, pois só tem em vista finalidades eclesiais.

E, sobre as diferenças salariais entre os responsáveis do santuário e os outros sacerdotes, escuda-se na verificação de que “em todas as dioceses existem diferenças salariais”, mas aduz que “aqueles que recebem um salário superior são convidados a oferecer uma parte à diocese”, sendo esta uma falsa questão e pretendendo-se “aqui fazer um ataque pessoal”.

Recusa, desta feita, esclarecer se estes ataques vêm do interior da própria Igreja, contrapondo que tem havido o “esforço de procurar equidade numa instituição com 100 anos e que não cresceu de uma forma programada”.

Do meu ponto de vista, o Reitor tem razão em considerar uma falsa questão o vencimento dos padres, mas bem poderia evitar a vitimização pessoal. Obviamente que todos os sacerdotes gostariam de ter a visibilidade dos responsáveis por Fátima. Não sei é se queriam arrostar com os respetivos encargos

Por fim, o Padre Cabecinhas desmente que a maioria dos funcionários seja de religiosos, afirmando que “a grande maioria são laicos e que os sacerdotes são um pequeno grupo, de pouco mais de uma dezena, num universo de 318”. E contesta que sejam os sacerdotes quem manda porquanto, “neste momento, a maioria dos diretores dos serviços são leigos”.

Do meu ponto de vista, bem poderia dispensar a correspondência do santuário, “com este volume de funcionários e de negócio”, a “uma média/grande empresa”, quadro em que “o reitor é o CEO. Com efeito, os objetivos e estruturação do Santuário não são empresariais, mas eclesiais e, além disso, é servido por um grupo de centenas de voluntários, plantel de que nenhuma empresa dispõe.

Tudo isto me traz à memória a asserção de Cerejeira de que não foi a Igreja que impôs Fátima, mas Fátima que se impôs à Igreja – isto para dizer que Fátima não é um dogma nem uma exigência necessária para a salvação. Não obstante, enquanto santuário, lugar de peregrinação e mensagem em consonância com o Evangelho, assume-se como um serviço de Igreja, como testemunha e profecia de Deus e como leitor e intérprete do mundo. Fátima é da Igreja, não é a Igreja que é de Fátima. Por isso, espera-se que se posicione como Igreja e em Igreja.      

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Por tudo isto, se julga oportuna a videomensagem do Cardeal Dom António Marto, em que deixa palavras de alento a todos os colaboradores, garantindo que não haverá despedimentos.

Na verdade, depois de o Conselho Nacional do Santuário de Fátima, órgão que superintende a atividade daquele local, ter reunido, abordado a questão e manifestado a sua solidariedade com Fátima e a diocese de Leiria-Fátima, o prelado fatimita tranquilizou os colaboradores e peregrinos e reiterou a sua confiança nos responsáveis, declarando:

Como responsável pelo Santuário acompanho de perto todas as decisões da reitoria. Em momento algum senti que as opções tomadas alguma vez pudessem prejudicar o cumprimento integral da missão do Santuário ou afastar-se dos princípios da Doutrina Social da Igreja. Bem pelo contrário!”.

Para o Cardeal, é a “competência e sentido de missão” de todos os que ali trabalham, “que fazem desta casa a casa de tantos e tantos peregrinos”. Por outro lado, agradece a todos os peregrinos e amigos “as inúmeras e sensibilizadas manifestações de apoio e solidariedade, garantindo que “tudo faremos para continuar a merecê-las”, pois “a Cova da Iria será sempre o lugar especial que guardais nos vossos corações”.

E, no contexto exigente e de “medo e angústia pelo trabalho, pela família, pelo sustento”, Dom António Marto exorta à confiança como Nossa Senhora e “a confiar que Ela continuará a proteger-nos” – Palavra do Bispo!

2020.09.12 – Louro de Carvalho

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