Miguel Carrapatoso escreve, no Expresso
on line deste dia 3 de setembro, sob o título Governo de Passos
defendia educação para a cidadania e “igualdade de género” como “eixo
estruturante” (mas facultativo), que Nuno Crato definira como estratégico o
ensino de temas como a igualdade de género, a sexualidade e o combate aos
preconceitos, sendo que a disciplina não era obrigatória, mas se assumia como
importante “dotar as crianças e os jovens de conhecimentos, atitudes e valores”
que os ajudassem “a fazer opções”.
Por isso, assenta em que, apesar de uma educação “livre de preconceitos e de
estereótipos de género” ser um dos pontos contestados no manifesto contra a disciplina
de Cidadania e Desenvolvimento (CD), a verdade
é que este princípio foi assumido como nuclear pelo então Ministro da Educação durante
o Governo de Pedro Passos Coelho e quando Cavaco Silva era Presidente da
República. Foi criado um Plano Nacional para tratar o tema, definidas linhas
orientadoras e criadas as bases para que as escolas tratassem a disciplina de
“Educação para a Cidadania” se assim o quisessem fazer. E Nuno Crato recorda, como refere o Expresso:
“Tornar a disciplina obrigatória não fazia
muito sentido. Quisemos sempre dar uma grande liberdade às escolas e nunca
entrar por uma via de doutrinamento.
E recordo-me bem de que o Bloco de Esquerda e alguns setores do PS foram sempre
contra este princípio.”.
E aponta o articulista que, apesar da diferença estrutural entre a
realidade passada e a presente (aulas de caráter facultativo vs. aulas de caráter obrigatório) muitos dos conceitos e preocupações assumidos hoje já
o eram em 2011. Assim, Passos Coelho comprometeu-se, pelo Programa de
Governo, a assegurar a execução de “políticas públicas, no âmbito da cidadania
e da promoção da igualdade de género,
da luta contra a violência doméstica e contra o tráfico de seres humanos,
nomeadamente através da execução dos respetivos Planos Nacionais”.
Na sequência, foram
aprovados vários planos nacionais de
ação, entre os quais o VPNI (“V Plano Nacional para Igualdade de Género, Cidadania
e Não Discriminação”) – se
era o 5.º, era porque a preocupação pelo tema não foi sentida só então –
materializado numa resolução do Conselho de Ministros de 2013, onde se assume:
“O V PNI pretende reforçar a intervenção no
domínio da educação, designadamente com a integração da temática da igualdade
de género como um dos eixos
estruturantes das orientações para a educação pré-escolar, ensino básico e
secundário (...)”.
Em 2012 (e mais tarde em 2013), a DGE (Direção-Geral
da Educação) desenhou as
linhas orientadoras para a “Educação para
a Cidadania” onde se lia que “a Educação
para a Igualdade de Género” visava “a promoção da igualdade de direitos
e deveres das alunas e dos alunos, através
de uma educação livre de preconceitos e de estereótipos de género, de
forma a garantir as mesmas oportunidades educativas e opções profissionais e
sociais”. E a DGE assinalava a importância da Educação
para a Saúde e a Sexualidade para dotar
as crianças e os jovens de conhecimentos, atitudes e valores que os
ajudassem “a fazer opções e
a tomar decisões adequadas à sua saúde e ao seu bem-estar físico, social e
mental”. Porém, o Governo aduzia:
“Não sendo imposta como uma disciplina obrigatória, é dada às escolas a possibilidade de
decidir da sua oferta como disciplina autónoma, nos 1.º, 2.º e 3.º ciclos do
ensino básico. Deste modo, a educação para a cidadania pode ser desenvolvida em
função das necessidades e problemas específicos da comunidade educativa, em
articulação e em resposta a objetivos definidos em cada projeto educativo de
agrupamento de escola ou escola não agrupada.”.
Por isso e conforme nos fazem crer, o caráter facultativo da
disciplina só se alterou em 2018, já que, por
decisão do Governo de Costa e do Ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues,
“Cidadania e Desenvolvimento” foi
introduzida no currículo como obrigatória em setembro de 2018, depois de uma
fase-piloto no ano letivo anterior. E, apesar de questionarem o facto de a
disciplina incluir ensinamentos “sobre matéria de opinião íntima pessoal, moral
e religiosa para libertar os alunos de ‘preconceitos e estereótipos’ relativos à
questão do género, e alterar ‘costumes, atitudes e valores’ em matéria de
sexualidade” (expressões idênticas às tidas como
válidas em 2013), o essencial
do manifesto está conexo com o direito de pais e alunos invocarem a objeção de
consciência para não frequentarem estas aulas, problema
que não se colocava até 2018, uma vez que a disciplina não era obrigatória.
***
Tanto no artigo do Expresso como
nas declarações de Crato há equívocos que importa esclarecer. Desde logo, confunde-se
oferta de escola não imposta em matriz curricular com frequência obrigatória.
Que eu saiba, a oferta curricular de escola vincula os alunos à sua frequência,
ao invés das AEC (atividades de enriquecimento curricular), que só obrigam depois da assinatura do encarregado
de educação. Outra coisa, e bem diferente, é disciplina de opção, que só obriga
à frequência dos inscritos nela. Mencione-se, a este respeito, a EMRC cuja
classificação não conta para média final do curso, mas cuja frequência é
obrigatória durante o ano letivo em que vigora a inscrição. Análogo raciocínio
se faz para as disciplinas de opção, mas que têm uma avaliação igual às demais.
Na verdade, o DL n.º
139/2012, de 5 de julho, na alínea m) do seu art.º 3.º (princípios
orientadores), estabelece
o “reforço
do caráter transversal da educação para a cidadania, estabelecendo conteúdos e
orientações programáticas, mas não a autonomizando como disciplina de oferta
obrigatória”.
Ora, enquanto vertente transversal, a temática não
deixa de ser pertinente e obrigatória em todas as disciplinas, para todos os
professores e para todos os alunos. Depois, se é um dos eixos estruturantes, como
é que pode o seu conhecimento ser facultativo? E mais uma vez é de explicitar
que esta vertente não é obrigatória como disciplina e que a escola podia ou não
estabelecê-la como disciplina e cuja frequência nunca foi tida como não
obrigatória, mas apenas decorrente do projeto educativo da escola, que vincula
toda a comunidade, depois de aprovado pelos seus órgãos de direção,
administração e gestão.
Que a vertente da educação para a cidadania é uma
preocupação antiga vê-se ao longo da história recente da educação. Desde logo,
a seguir à revolução abrilina, as escolas que ministravam o ensino experimental
estabelecido pelo Prof. Doutor Veiga Simão tinham no currículo a área de
Educação Cívica e Politécnica, que Sottomayor Cardia aboliu, não se por via da
sua vinculação ao Estado Novo se ao PREC.
A reforma de Roberto Carneiro estabeleceu a
disciplina de Desenvolvimento Pessoal e
Social (DPS)
e a Área Escola para corporizar a
educação para a cidadania (vd art.os 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). É certo que, em alternativa à disciplina de DPS, os alunos poderão optar
pela disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC) ou de outras confissões, mas era obrigatória a
frequência de uma destas disciplinas.
Até se formaram professores para
DPS, as aulas arrancaram em muito poucas escolas.
Entretanto, o n.º 1 do art.º 6.º do DL n.º 6/2001, de 18 de janeiro,
estabelece que “a educação para a
cidadania bem como a valorização da língua portuguesa e da dimensão humana do
trabalho constituem formações transdisciplinares, no âmbito do ensino básico”.
Isto depois de o seu art.º 5.º estipular que os currículos do ensino básico integram
áreas curriculares disciplinares e áreas curriculares não disciplinares (ACND), sendo estas: área de projeto (dois
professores),
visando a conceção, realização e avaliação de projetos, através da articulação
de saberes de diversas áreas, em torno de problemas ou temas de pesquisa ou de
intervenção, de acordo com as necessidades e os interesses dos alunos; estudo acompanhado (dois
professores),
visando competências que permitam a apropriação pelos alunos de métodos de
estudo e de trabalho e proporcionem o desenvolvimento de atitudes e de
capacidades que favoreçam uma cada vez maior autonomia na realização das
aprendizagens; e formação cívica (um
professor), espaço
privilegiado para o desenvolvimento da educação para a cidadania, visando o
desenvolvimento da consciência cívica dos alunos como elemento fundamental no
processo de formação de cidadãos responsáveis, críticos, ativos e
intervenientes. Além disso, a escola, no âmbito da sua autonomia, deve
desenvolver outros projetos e atividades que contribuam para a formação pessoal
e social dos alunos, nas quais se inclui, nos termos da Constituição e da lei,
a EMRC, de frequência facultativa (só esta é que é de frequência facultativa). Ademais, todas as grelhas
curriculares estão subordinadas à grande temática Educação para a
Cidadania.
Por sua
vez, o n.º 1 do art.º 6.º do DL n.º 7/2001, de 18 de janeiro, estabelece que “a
educação para a cidadania bem como a valorização da língua portuguesa e da
dimensão humana do trabalho constituem formações transdisciplinares, no âmbito
do ensino secundário”.
E as matrizes curriculares inscrevem a Área de Projeto, com dois professores,
na componente de formação pessoal e social e com três tempos letivos semanais.
Já o DL
n.º 74/2004, de 26 de março, coloca a Área de Projeto só no 12.º ano, só com um
professor e não lhe dá o cariz de formação pessoal e social. E o n.º 4 do seu
art.º 6.º estabelece que “a matriz
curricular dos cursos científico-humanísticos, com exceção dos de ensino
recorrente, inclui a Área de Projeto, que pretende mobilizar e integrar
competências e saberes adquiridos nas diferentes disciplinas”. A educação
para a cidadania ficou eclipsada.
E o DL
n.º 50/2011, de 8 de abril, que dá nova redação ao DL n.º 74/2004, de 26 de março,
redige o n.º 4 do art.º 6.º deste DL nos termos seguintes:
“A matriz curricular dos cursos científico-humanísticos, com exceção dos
do ensino recorrente, inclui a formação cívica, orientada para o
desenvolvimento da educação para a cidadania, para a saúde e sexualidade”.
Acabou
com a Área de Projeto no ensino secundário e criou a disciplina de Formação
Cívica no 10.º Ano com a carga curricular de 45m semanais.
Por sua
vez, o DL n.º 139/2012, de 5 de julho, só deixou as ACND no 1.º CEB.
Assim,
ficamos sem saber se Nuno Crato não autonomizou a educação para a cidadania
como disciplina de oferta obrigatória por parte da escola por razões
ideológicas, por motivos economicistas ou por já temer a objeção de
consciência.
Mas
parece que os critérios economicistas que levaram à produção do DL n.º 50/2011,
de 8 de abril, não se estenderam ao 1.º CEB, porque o professor titular de
turma dá conta do recado todo e as autarquias e empresas costumam colaborar com
a escolinha da sua terra, o que possibilita a área de projeto rentável para a
escola de aldeia ou de bairro. E a cidadania está sujeita a vicissitudes
destas! Até há pouco, ela não era de direita nem de esquerda; agora já não sei.
2020.09.03 –
Louro de Carvalho
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