quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Eixo estruturante na educação, mas de conhecimento não obrigatório

 

Miguel Carrapatoso escreve, no Expresso on line deste dia 3 de setembro, sob o título Governo de Passos defendia educação para a cidadania e “igualdade de género” como “eixo estruturante” (mas facultativo), que Nuno Crato definira como estratégico o ensino de temas como a igualdade de género, a sexualidade e o combate aos preconceitos, sendo que a disciplina não era obrigatória, mas se assumia como importante “dotar as crianças e os jovens de conhecimentos, atitudes e valores” que os ajudassem “a fazer opções”.

Por isso, assenta em que, apesar de uma educação “livre de preconceitos e de estereótipos de género” ser um dos pontos contestados no manifesto contra a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento (CD), a verdade é que este princípio foi assumido como nuclear pelo então Ministro da Educação durante o Governo de Pedro Passos Coelho e quando Cavaco Silva era Presidente da República. Foi criado um Plano Nacional para tratar o tema, definidas linhas orientadoras e criadas as bases para que as escolas tratassem a disciplina de “Educação para a Cidadania” se assim o quisessem fazer. E Nuno Crato recorda, como refere o Expresso:

Tornar a disciplina obrigatória não fazia muito sentido. Quisemos sempre dar uma grande liberdade às escolas e nunca entrar por uma via de doutrinamento. E recordo-me bem de que o Bloco de Esquerda e alguns setores do PS foram sempre contra este princípio.”.

E aponta o articulista que, apesar da diferença estrutural entre a realidade passada e a presente (aulas de caráter facultativo vs. aulas de caráter obrigatório) muitos dos conceitos e preocupações assumidos hoje já o eram em 2011. Assim, Passos Coelho comprometeu-se, pelo Programa de Governo, a assegurar a execução de “políticas públicas, no âmbito da cidadania e da promoção da igualdade de género, da luta contra a violência doméstica e contra o tráfico de seres humanos, nomeadamente através da execução dos respetivos Planos Nacionais”.

Na sequência, foram aprovados vários planos nacionais de ação, entre os quais o VPNI (“V Plano Nacional para Igualdade de Género, Cidadania e Não Discriminação”) – se era o 5.º, era porque a preocupação pelo tema não foi sentida só então – materializado numa resolução do Conselho de Ministros de 2013, onde se assume:  

O V PNI pretende reforçar a intervenção no domínio da educação, designadamente com a integração da temática da igualdade de género como um dos eixos estruturantes das orientações para a educação pré-escolar, ensino básico e secundário (...)”.

Em 2012 (e mais tarde em 2013), a DGE (Direção-Geral da Educação) desenhou as linhas orientadoras para a “Educação para a Cidadania” onde se lia que “a Educação para a Igualdade de Género” visava “a promoção da igualdade de direitos e deveres das alunas e dos alunos, através de uma educação livre de preconceitos e de estereótipos de género, de forma a garantir as mesmas oportunidades educativas e opções profissionais e sociais”. E a DGE assinalava a importância da Educação para a Saúde e a Sexualidade para dotar as crianças e os jovens de conhecimentos, atitudes e valores que os ajudassem “a fazer opções e a tomar decisões adequadas à sua saúde e ao seu bem-estar físico, social e mental”. Porém, o Governo aduzia:

Não sendo imposta como uma disciplina obrigatória, é dada às escolas a possibilidade de decidir da sua oferta como disciplina autónoma, nos 1.º, 2.º e 3.º ciclos do ensino básico. Deste modo, a educação para a cidadania pode ser desenvolvida em função das necessidades e problemas específicos da comunidade educativa, em articulação e em resposta a objetivos definidos em cada projeto educativo de agrupamento de escola ou escola não agrupada.”.

Por isso e conforme nos fazem crer, o caráter facultativo da disciplina só se alterou em 2018, já que, por decisão do Governo de Costa e do Ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, “Cidadania e Desenvolvimento” foi introduzida no currículo como obrigatória em setembro de 2018, depois de uma fase-piloto no ano letivo anterior. E, apesar de questionarem o facto de a disciplina incluir ensinamentos “sobre matéria de opinião íntima pessoal, moral e religiosa para libertar os alunos de ‘preconceitos e estereótipos’ relativos à questão do género, e alterar ‘costumes, atitudes e valores’ em matéria de sexualidade” (expressões idênticas às tidas como válidas em 2013), o essencial do manifesto está conexo com o direito de pais e alunos invocarem a objeção de consciência para não frequentarem estas aulas, problema que não se colocava até 2018, uma vez que a disciplina não era obrigatória.

***

Tanto no artigo do Expresso como nas declarações de Crato há equívocos que importa esclarecer. Desde logo, confunde-se oferta de escola não imposta em matriz curricular com frequência obrigatória. Que eu saiba, a oferta curricular de escola vincula os alunos à sua frequência, ao invés das AEC (atividades de enriquecimento curricular), que só obrigam depois da assinatura do encarregado de educação. Outra coisa, e bem diferente, é disciplina de opção, que só obriga à frequência dos inscritos nela. Mencione-se, a este respeito, a EMRC cuja classificação não conta para média final do curso, mas cuja frequência é obrigatória durante o ano letivo em que vigora a inscrição. Análogo raciocínio se faz para as disciplinas de opção, mas que têm uma avaliação igual às demais.

Na verdade, o DL n.º 139/2012, de 5 de julho, na alínea m) do seu art.º 3.º (princípios orientadores), estabelece o “reforço do caráter transversal da educação para a cidadania, estabelecendo conteúdos e orientações programáticas, mas não a autonomizando como disciplina de oferta obrigatória”.

Ora, enquanto vertente transversal, a temática não deixa de ser pertinente e obrigatória em todas as disciplinas, para todos os professores e para todos os alunos. Depois, se é um dos eixos estruturantes, como é que pode o seu conhecimento ser facultativo? E mais uma vez é de explicitar que esta vertente não é obrigatória como disciplina e que a escola podia ou não estabelecê-la como disciplina e cuja frequência nunca foi tida como não obrigatória, mas apenas decorrente do projeto educativo da escola, que vincula toda a comunidade, depois de aprovado pelos seus órgãos de direção, administração e gestão.

Que a vertente da educação para a cidadania é uma preocupação antiga vê-se ao longo da história recente da educação. Desde logo, a seguir à revolução abrilina, as escolas que ministravam o ensino experimental estabelecido pelo Prof. Doutor Veiga Simão tinham no currículo a área de Educação Cívica e Politécnica, que Sottomayor Cardia aboliu, não se por via da sua vinculação ao Estado Novo se ao PREC.

A reforma de Roberto Carneiro estabeleceu a disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social (DPS) e a Área Escola para corporizar a educação para a cidadania (vd art.os 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). É certo que, em alternativa à disciplina de DPS, os alunos poderão optar pela disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC) ou de outras confissões, mas era obrigatória a frequência de uma destas disciplinas.

Até se formaram professores para DPS, as aulas arrancaram em muito poucas escolas.

Entretanto, o n.º 1 do art.º 6.º do DL n.º 6/2001, de 18 de janeiro, estabelece que “a educação para a cidadania bem como a valorização da língua portuguesa e da dimensão humana do trabalho constituem formações transdisciplinares, no âmbito do ensino básico”. Isto depois de o seu art.º 5.º estipular que os currículos do ensino básico integram áreas curriculares disciplinares e áreas curriculares não disciplinares (ACND), sendo estas: área de projeto (dois professores), visando a conceção, realização e avaliação de projetos, através da articulação de saberes de diversas áreas, em torno de problemas ou temas de pesquisa ou de intervenção, de acordo com as necessidades e os interesses dos alunos; estudo acompanhado (dois professores), visando competências que permitam a apropriação pelos alunos de métodos de estudo e de trabalho e proporcionem o desenvolvimento de atitudes e de capacidades que favoreçam uma cada vez maior autonomia na realização das aprendizagens; e formação cívica (um professor), espaço privilegiado para o desenvolvimento da educação para a cidadania, visando o desenvolvimento da consciência cívica dos alunos como elemento fundamental no processo de formação de cidadãos responsáveis, críticos, ativos e intervenientes. Além disso, a escola, no âmbito da sua autonomia, deve desenvolver outros projetos e atividades que contribuam para a formação pessoal e social dos alunos, nas quais se inclui, nos termos da Constituição e da lei, a EMRC, de frequência facultativa (só esta é que é de frequência facultativa). Ademais, todas as grelhas curriculares estão subordinadas à grande temática Educação para a Cidadania. 

Por sua vez, o n.º 1 do art.º 6.º do DL n.º 7/2001, de 18 de janeiro, estabelece que “a educação para a cidadania bem como a valorização da língua portuguesa e da dimensão humana do trabalho constituem formações transdisciplinares, no âmbito do ensino secundário”. E as matrizes curriculares inscrevem a Área de Projeto, com dois professores, na componente de formação pessoal e social e com três tempos letivos semanais.

Já o DL n.º 74/2004, de 26 de março, coloca a Área de Projeto só no 12.º ano, só com um professor e não lhe dá o cariz de formação pessoal e social. E o n.º 4 do seu art.º 6.º estabelece que “a matriz curricular dos cursos científico-humanísticos, com exceção dos de ensino recorrente, inclui a Área de Projeto, que pretende mobilizar e integrar competências e saberes adquiridos nas diferentes disciplinas”. A educação para a cidadania ficou eclipsada.

E o DL n.º 50/2011, de 8 de abril, que dá nova redação ao DL n.º 74/2004, de 26 de março, redige o n.º 4 do art.º 6.º deste DL nos termos seguintes:

A matriz curricular dos cursos científico-humanísticos, com exceção dos do ensino recorrente, inclui a formação cívica, orientada para o desenvolvimento da educação para a cidadania, para a saúde e sexualidade”.

Acabou com a Área de Projeto no ensino secundário e criou a disciplina de Formação Cívica no 10.º Ano com a carga curricular de 45m semanais.

Por sua vez, o DL n.º 139/2012, de 5 de julho, só deixou as ACND no 1.º CEB.

Assim, ficamos sem saber se Nuno Crato não autonomizou a educação para a cidadania como disciplina de oferta obrigatória por parte da escola por razões ideológicas, por motivos economicistas ou por já temer a objeção de consciência.

Mas parece que os critérios economicistas que levaram à produção do DL n.º 50/2011, de 8 de abril, não se estenderam ao 1.º CEB, porque o professor titular de turma dá conta do recado todo e as autarquias e empresas costumam colaborar com a escolinha da sua terra, o que possibilita a área de projeto rentável para a escola de aldeia ou de bairro. E a cidadania está sujeita a vicissitudes destas! Até há pouco, ela não era de direita nem de esquerda; agora já não sei.

2020.09.03 – Louro de Carvalho

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