domingo, 30 de junho de 2019

Mas Jesus voltou-Se e repreendeu-os...



É a atitude epistemo-pedagógica do Mestre face à pretensão violenta e musculada dos irmãos Tiago e João de castigar os samaritanos por recusarem dar hospedagem a Jesus e à sua comitiva na passagem para Jerusalém como se relata na primeira parte do texto evangélico tomado para a Liturgia da Palavra do 13.º domingo do Tempo Comum no Ano C (Lc 9,51-62).   
Na verdade, prestes a ser levado deste mundo, Jesus decidiu dirigir-Se a Jerusalém e mandou à sua frente mensageiros, que entraram numa povoação de samaritanos (povo descendente de estrangeiros que ocupavam Israel após a deportação dos israelitas) para Lhe prepararem hospedagem. Mas aquela gente não O quis receber, por ir para Jerusalém.
Vendo isto, Tiago e João, os filhos do trovão (designativo que Jesus lhes deu, pelos visto com razão), disseram: “Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu que os destrua?” – uma alusão ao que fizera Elias aos adversários (cf 2 Rs 1,10-12). Porém, Jesus voltou-Se e repreendeu-os.
E seguiram para outra povoação, provavelmente também de samaritanos, pois, segundo o livro dos Atos (vd At 8,5-25), a Samaria estava recetiva ao cristianismo.
O incidente ilustra praticamente a obrigação de rejeitar a força da violência, a não imposição da nossa vontade, em vez de proposta e aconselhamento, mas respeitando a inteligência e a vontade dos outros e aceitando-os como são; e a obrigação de encontrar vias alternativas na vida para os nossos desígnios. De facto, por mais santos que sejam os nossos objetivos, nunca é lícita a imposição, pela força, dos meios para os atingir ou da inculcação das boas ideias – uma lição contra as contendas e guerras por motivos religiosos.   
Até agora, Lucas situou Jesus na Galileia, mas, a partir daqui, mostra Jesus decididamente a caminhar para Jerusalém com os discípulos, não mais falando, segundo Lucas, da Galileia e da Samaria. Desta caminhada, mais teológica do que geográfica, Lucas não intenta um diário da viagem ou a lista dos lugares por onde Jesus vai passar, mas pretende apresentar um itinerário espiritual em que o Mestre faz com os discípulos a pedagogia do conhecimento e dos valores do “Reino”, presenteando-os com a plenitude da revelação. Todo este percurso, aqui iniciado, converge para a cruz, que trará a revelação suprema que Jesus quer apresentar aos discípulos e onde irromperá a salvação definitiva. Por isso, Jesus exorta os discípulos ao seguimento deste caminho, para se identificarem plenamente com Jesus. E Lucas propõe à sua comunidade o itinerário que os verdadeiros crentes devem calcorrear.
O texto em referência tem uma 1.ª parte (vv. 51-56), que foi sinteticamente transcrita, em que o cenário de fundo nos dá conta da hostilidade entre judeus e samaritanos. Era ancestral a dificuldade de convivência entre os dois grupos; procurando evitar a passagem pela Samaria para evitar maus encontros, os peregrinos que iam a Jerusalém para as grandes festas de Israel utilizavam preferencialmente o caminho do mar (junto da orla costeira) ou o do vale do Jordão.
Como ficou dito, a primeira lição de Jesus ao longo desta “caminhada” ilustra a atitude que os discípulos devem assumir face ao ódio do mundo e à sua rejeição da proposta de salvação. Face à hostilidade manifestada pelos samaritanos, os filhos de Zebedeu advogavam uma resposta agressiva, que retribuísse na mesma moeda, Mas Jesus adverte-os de que o seu caminho não passa nem passará pela imposição da força, violência ou prepotência. No seu horizonte próximo continua a cruz e a entrega da vida por amor, pois é no dom da vida e não na prepotência e na morte que se realizará a sua missão. Ora, por melhores que sejam os seus objetivos e propósitos, os discípulos nunca podem esquecer isto, se estão verdadeiramente interessados em trilhar a rota de Jesus, muito embora, como atesta a História e a experiência de cada um, as tentações de imposição do ponto de vista particularista sejam mais que muitas e muitas vezes se caia nelas.
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Na 2.ª parte da passagem evangélica em causa (vv. 57-62), Lucas apresenta algumas das condições para percorrer, com Jesus, o caminho de Jerusalém para a cruz onde acontecerá o pleno da salvação. E fá-lo através de três candidatos a discípulos.
Ao primeiro, que se autopropõe e se afoita a seguir o Mestre para onde quer que Ele vá, é sugerido que deve despojar-se das preocupações materiais, já que, para o discípulo, o Reino tem de ser infinitamente mais importante do que as comodidades e o bem-estar material:
As raposas têm as suas tocas e as aves do céu os seus ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça”.
Ao segundo, que é instado por Jesus, é referido que o discípulo deve despegar-se dos deveres que, apesar da sua importância (a piedade filial no atinente ao sepultamento dos pais é um dever fundamental no judaísmo, como atestam Gn 49,28 – 50,26; Ex 13,19; Tb 4,3; 6,15), impeça resposta imediata e radical ao dinamismo do Reino:Deixa que os mortos sepultem os seus mortos; tu, vai anunciar o reino de Deus” – disse Jesus.
Ao terceiro, sugere-se que o discípulo deve despegar-se de tudo (até da família, se for necessário), para fazer do Reino a prioridade fundamental; e nada – nem a família – deve adiar ou demorar o compromisso com o Reino: Quem tiver lançado as mãos ao arado e olhar para trás não serve para o reino de Deus” – disse o Mestre. Jesus exige mais do que Elias fez a Eliseu. Arar para o Reino significa renúncia, abnegação, sacrifício; e não se pode olhar para trás sob pena de a lavoura ficar seriamente prejudicada,
Obviamente, não são de ler ao pé da letra tais condições, pois o Mestre quer sobretudo provocar a reflexão, pôr os discípulos a pensar, o que devia fazer qualquer escola. Ou seja, não podemos entender estas exigências como normativas para todas as circunstâncias: Ele mandou cuidar dos pais (cf Mt 15,3-9); e os discípulos (nomeadamente Pedro) fizeram-se acompanhar das esposas nas viagens missionárias (cf 1Cor 9,5). O que estes ensinamentos significam é que o discípulo é convidado a eliminar da sua vida tudo o que possa ser obstáculo no seu testemunho quotidiano do Reino e a despojar-se de si próprio, do orgulho, da vaidade e da tentação do carreirismo.
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Eliseu foi chamado por Deus, pela mão de Elias, para ser profeta em Israel, missão difícil e sujeita a perseguições como sucedera com Elias. Eliseu, que era rico, deixou tudo para ficar ao serviço de Deus. Entretanto, pediu a Elias que o deixasse ir abraçar a família, a que o profeta anuiu, mas avisando que não demorasse, porque Elias já tinha feito o que devia ter feito. Mais: Elias aceitou a incumbência da parte de Deus para chamar e ungir Eliseu, com o risco de a profecia de Eliseu eventualmente vir a denunciar falhas do antecessor, o que não lhe importou: As missões confiadas por Deus urgem!   
O gesto de Elias, ao cobrir Eliseu com a sua capa, indica o apelo do Senhor a uma missão que exige disponibilidade total: assim, Eliseu queima o arado, imola os bois para se encontrar completamente livre na entrega à sua missão. (vd 1Rs 19,16b.19-21).
Também os Apóstolos tinham sido corajosos para seguir o chamamento de Jesus. Deixaram as redes, o seu ganha-pão, deixaram a família, para andarem com Jesus. Com efeito, para seguir a Jesus, é preciso estar disposto a tudo. E o Senhor continua a fomentar no coração de muitos homens e mulheres esta generosidade ao serviço de Deus e dos outros. Por isso, deve a Igreja dar graças por tantos exemplos do nosso tempo, rezar para que não faltem as vocações e rogar pela extinção dos erros e pecados de tantos e tantas, que deslustram o ser e a missão da Igreja.
O amor aos pais não pode ser empecilho para a vocação específica a que Deus chama os filhos. Tantos não deixam que a filha vá para religiosa, pensando que não têm quem os trate quando forem velhos, mas deixam que ela case e vá viver para o Brasil ou para a Austrália. Por vezes, são as filhas religiosas que acabam por estar mais perto dos pais nas suas necessidades.
Ora, a generosidade para com Deus acaba por ser recompensada muitas vezes já neste mundo. De facto, Ele não é parco em generosidade, dando cem por um agora e, depois, a vida eterna.
Os sacerdotes, os religiosos e as religiosas, para se manterem na sua vocação, têm de decidir-se a entregar-se a sério à missão que o Senhor lhes confiou, na guarda do coração, na assiduidade da oração, no recurso à confissão e direção espiritual, na generosidade no apostolado.
Os pais deviam sentir alegria por Deus chamar os seus filhos para sacerdotes e/ou religiosos ou as filhas para religiosas. O pai de Teresa do Menino Jesus, São Luís Martin, é exemplo dessa alegria em dar os filhos a Deus. As cinco filhas vieram a ser carmelitas e uma da Visitação. Quando Teresa, com 14 anos, resolve ir para o Carmelo, vai ter com o pai a pedir a sua autorização e fica muito contente ao ver a resposta generosa do pai. Ao invés, muitos pais põem óbices à vocação dos filhos e acabam por ser ocasião, para eles, de afastamento de Deus e de seguimento, tantas vezes, de uma vida sem rumo, sem sentido e de desprimor.
Em maré de santos populares, a Igreja recorda os que souberam viver esta entrega a Deus. Assim, António de Lisboa ou de Pádua seguiu o apelo de Jesus e deixou as comodidades e as riquezas para imitar a Jesus na Sua pobreza e levar a Sua mensagem salvadora a muitos homens. João Batista, que se entregou desde jovem à oração e penitência e depois anunciou a chegada de Jesus e a excelência da missão messiânica, deu a vida pela verdade. O mundo inteiro louva-O nestes dias dizendo que valeu a pena a sua generosidade e sacrifício. E Pedro deixou as barcas e a família para ser Apóstolo de Jesus, arriscou a vida diversas vezes e morreu em Roma pregado numa cruz. Ao louvá-Lo nestes dias, a Igreja diz-nos que a sua vida valeu a pena.
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Os que são especialmente chamados e pretendem ser discípulos mais próximos de Jesus têm de sentir a liberdade de caminharem sem empecilhos e de O seguirem.
As passagens da Carta aos Gálatas (Gl 5,1.13-18) tomadas para 2.ª leitura da dominga aludem à liberdade – palavra que nos agrada e que estamos habituados a ouvir, a proclamar, a gritar e a cantar. Mas será esta liberdade tão apregoada prega Paulo? O Apóstolo prega a “verdadeira liberdade”, a dada por Jesus Cristo. Avisa os Gálatas de que foi para a liberdade que Cristo os libertou (veja-se o hebraísmo libertar para a liberdade, destinado a dar ao verbo “libertar” um sentido mais intenso) não convindo voltar a cair no jugo da escravidão (escravidão que Paulo identifica com a Lei e com a circuncisão).
A liberdade para o cristão não consiste na faculdade de escolher entre duas coisas distintas (isso é muito pouco) e opostas, muito menos será a independência ético-moral em virtude da qual cada um pode fazer o que lhe apetece, sem barreiras de qualquer espécie (isso pode dar em libertinagem). Segundo o Apóstolo, a verdadeira liberdade consiste em viver no amor; e o que nos escraviza, limita e impede de alcançar a vida em plenitude (“salvação”) é o desamor, a frieza, o egoísmo, o orgulho, a autossuficiência. Ora, é preciso superar esse fechamento em nós próprios e fazer da nossa vida um dom de amor. Só é autenticamente livre quem se libertou de si próprio e vive para se dar aos outros. E esta liberdade nasce da vida que Cristo nos dá, ou seja, pela adesão a Cristo, gera-se em cada pessoa um dinamismo interior que a identifica com Cristo e lhe dá uma capacidade infinita de amar, de superar o egoísmo, o orgulho e os limites – a capacidade infinita de viver em liberdade. É o Espírito que alimenta, dia a dia, essa vida de liberdade (ou de amor) que se gerou em nós a partir da nossa adesão a Cristo.
Ao invés, viver na escravidão é continuar a viver uma vida centrada em si próprio (Paulo enumera, em Gl 5,19-21, as obras de quem é escravo), levando a que, chegada a ocasião nos mordemos e devoramos uns aos outros; mas viver na liberdade (“segundo o Espírito”) é sair de si e fazer da sua vida um dom, uma partilha (Paulo enumera, em Gl 5,22-23, as obras daquele que é livre e vive no Espírito), é viver amando o próximo como Cristo nos amou e ensinou a amar, ajudando, quais cireneus atrás de Jesus, a suportar as cargas dos outros.
Cristo libertou-nos pelo sofrimento, pela cruz e sobretudo pela aceitação plena da vontade de Deus Pai, que O levou a dar a vida por nós. A cruz é libertação. O homem santifica-se pelo sofrimento do quotidiano, que pode ser, para os jovens, uma falta de sucesso nos estudos, a dificuldade em arranjar o primeiro emprego, e, para os adultos, a morte dum familiar, uma crise financeira, a doença, o desemprego. Quantas revoltas, quantos desânimos nos assaltam por vezes! Porém, Deus está connosco. É Pai! Espera de nós a aceitação da Sua Paternidade, do Seu Amor. Não é destruindo-nos que nos libertamos, mas aceitando com alegria, com confiança e em toda a plenitude a exigência da Boa Nova de Cristo que é Caminho, Verdade e Vida.
2019.06.30 – Louro de Carvalho

sábado, 29 de junho de 2019

“Fátima, Hoje que caminhos?”


Foi a questão dominante do Simpósio Teológico-Pastoral 2019, que decorreu no Salão do Bom Pastor, Centro Pastoral de Paulo VI, do Santuário de Fátima, de 21 a 23 de junho – três dias de reflexão, diálogo e celebração, cada um deles organizado em torno de um núcleo temático: o 1.º dia, a condição do peregrino; o 2.º dia, a peregrinação a Fátima; e o 3.º dia, a Igreja peregrina.  
As intervenções dos oradores distribuíram-se por 10 conferências: cinco no dia 21; três no dia 22; e duas no dia 23. As do 1.º e 2.º dias foram seguidas de diálogo.
As conferências do 1.º dia foram subordinadas aos seguintes títulos: “Leitura dos movimentos migratórios na atualidade”, por Paulo Rangel; “O homo viator na contemporaneidade”, por Lídia Jorge; “A Criação como paradigma da Peregrinação, por José Rui Teixeira; Fátima: um espaço global e multirreligioso”, por Helena Vilaça; e Turismo, peregrinação, hospitalidade”, por José Paulo Abreu. Os trabalhos do dia terminaram com a celebração da Missa, na Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima [sexta-feira da semana XI do Tempo Comum, São Luís Gonzaga, Memória Obrigatória], às 18,30 horas; e, depois do jantar, às 21 horas, realizou-se o Serão Cultural, no Centro Pastoral de Paulo V, em torno do tema “Exodus – Geometrias da Libertação”, com Celina Tavares (voz e guitarra), José Miguel Costa (piano) e  José Rui Rocha (leituras).
O 2.º dia, iniciado com uma oração em comum, foi preenchido com três conferências subordinadas aos seguintes títulos: “A peregrinação a Fátima. Uma leitura de antropologia teológica”, por António Martins; Os Papas peregrinos de Fátima”, por Marco Daniel Duarte; e “São Francisco Marto: peregrinação e páscoa,  no centenário da sua morte” por Adrian Attard, da Academia Pontifícia Mariana Internacional. A meio da tarde, desenvolveu-se um painel temático em torno de “As marcas da peregrinação a Fátima”, desdobrado em três itens: “Da bênção dos doentes” por José Manuel Pereira de Almeida; “Do serviço do lava-pés”, por Ana Luísa Castro; e “Das procissões de Fátima: a luz, o silêncio e o adeus”, por Carlos Cabecinhas.
Depois do subsequente diálogo, procedeu-se à celebração da Missa, na Capela da Morte de Jesus, no piso inferior da Basílica da Santíssima Trindade [Missa votiva de Nossa Senhora de Fátima]. E, às 21,30 horas, foi o Rosário e a Procissão das Velas, a partir da Capelinha das Aparições.
O 3.º (e último) dia iniciou-se com a celebração da Missa, às 9 horas, na Basílica da Santíssima Trindade [Missa do Domingo XII do Tempo Comum]. Seguiu-se a 9.ª conferência “Variações sobre a Igreja peregrina. Da Lumen Gentium ao pontificado de Francisco”, por Benito Mendez Fernandez; e 10.ª conferência “Maria pôs-se a caminho: caminhos de hoje da Peregrina da fé”, por Nunzio Capizzi. Recorde-se que este é o tema da JMJ de 2022, em Lisboa.
Na apresentação do programa, Marco Daniel Duarte (diretor do Museu do Santuário de Fátima e do Departamento de Estudos e Presidente da Comissão Organizadora do Simpósio) referia que, ao longo de um século, a “condição de peregrino” do ser humano é uma das grandes verdades que Fátima tem proclamado e que, “a partir da Cova da Iria” essa condição será “a mais clarividente metáfora da própria vida humana”, que se ilustra “no espaço”, mas que “ganha pleno e inquestionável sentido, sobretudo no tempo que o ser humano percorre desde o nascimento ao óbito”. E, atento ao que se passa em Fátima, rumo a Fátima e a partir de Fátima, considerava:
A imagem das incontáveis fileiras de homens e mulheres que rumam ao Santuário de Fátima, a pé ou de carro, de mota ou de bicicleta, de avião ou de barco ou até de forma espiritual a partir de outros polos de culto dedicados à Virgem de Fátima espalhados pelo mundo, somada ao trilho luminoso e branco das procissões das velas e das procissões do adeus, é, de facto, uma das mais expressivas imagens para a definição do ‘homo viator’, quer o leiamos no contexto do Cristianismo de sinal católico, quer o leiamos no contexto das inquietações várias – religiosas ou não – que povoam os fóruns académicos e a vida quotidiana”.
Nesse sentido, “investigadores de diferentes academias, nacionais e estrangeiras”, olharam para a humanidade peregrina para “analisarem desafios antigos e desafios novos” e se debruçarem “sobre a condição peregrina”, “sobre a peregrinação a Fátima” e “sobre a Igreja peregrina”. 
A agência Ecclesia, em abril, citando um comunicado que lhe fora enviado, dizia que “o sentido de peregrinar” nortearia o encontro que o Santuário de Fátima estava a organizar para o decurso de três dias com a presença de investigadores nacionais e estrangeiros “convidados a olhar a humanidade peregrina” e a analisar os “desafios inerentes à condição de peregrino”. Relevava a intervenção de Adrian Attard, da Academia Pontifícia Mariana Internacional, no 2.º dia, e as do Padre Benito Mendez Fernandez delegado para o ecumenismo da diocese de Mondoñedo-Ferrol, província eclesiástica de Santiago de Compostela, e do Frei Nunzio Capizzi, Professor da Pontifícia Universidade Gregoriana. E considerava que o tema do Simpósio se insere na reflexão proposta pelo Santuário para o presente ano pastoral “Dar graças por peregrinar em Igreja”, que se integra “no triénio 2017-2020, sob o tema “Tempo de Graça e Misericórdia”, e transcrevia significativos segmentos textuais da explicação programática do Presidente da Comissão Organizadora do Simpósio.
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Na sessão de abertura, o Cardeal Dom António Marto, Bispo da diocese de Leiria-Fátima, que denominou a vida de “aventura”, enquanto “viagem no desconhecido”, começou por dizer:
Procuramos segurança e estabilidade, no meio da mudança rápida e vertiginosa dos acontecimentos, procuramos uma felicidade que não se evapore, há toda uma busca pelo sucesso, por bens, por prestígio”.
E, afirmando que é “este anseio, que de algum modo invade o íntimo de cada humano” e “faz dele ser peregrino”, observou:
Assim, o peregrinar é geralmente um movimento externo, físico, que desloca cada pessoa de um lugar para outro. No entanto, é possível falar de peregrinação interior, aspeto esse que coloca o peregrino na linha da reflexão cristã da interioridade. Tendo em conta os dados sociológicos, não se pode negar que existe hoje uma intensa busca de espiritualidade que se declina em vários códigos interpretativos.”.
Colocando-se na perspetiva dos crentes”, o purpurado caraterizou a peregrinação como uma “parábola da existência humana entendida à luz da fé”, visto que, “no anseio de sentido, latente no coração humano, vemos um desejo ardente de Deus, porque só Ele nos pode encher e satisfazer de modo definitivo, tornar-nos felizes, livres e satisfeitos”. E, apresentando os lugares de peregrinação como “lugares de graça onde, de várias formas se pode fazer a experiência da riqueza e da beleza dos diversos aspetos do peregrinar”, discorreu:
A peregrinação pode ser uma experiência bela e surpreendente de Deus, de interioridade e de renovação espiritual, de evangelização e de testemunho. Deste modo, o peregrino deixa o seu lugar e o seu ritmo quotidiano, (...) e o seu coração abre-se à medida que caminha, tudo adquire nova dimensão, seja o tempo, os encontros que são preciosos como partilha de vida interior, o silêncio que fala da própria vida e de Deus; o próprio Deus é, por vezes, surpresa ou faz acontecer surpresas.”.
Depois, considerou que a peregrinação ao Santuário de Fátima tem particularidades singulares, que lhe são atribuídas pelo conteúdo da Mensagem, na sua dimensão mística e profética, mas também por alguns aspetos simbólicos caraterísticos, como é imagem da Virgem Peregrina, que já deu a volta ao mundo por 16 vezes, percorreu 645.000 Km, e é, hoje, “verdadeiro ícone da peregrinação, juntamente com o mar de luz da procissão das velas, e o adeus de Fátima”.
O prelado leiriense-fatimita salientou ainda a afluência de peregrinos de “quase todos os povos do mundo e de todas as culturas e até de outras religiões”, que chegam a Fátima por ser um “lugar com o ambiente de silêncio e de oração e com os lugares de referência como é a Capelinha das Aparições ou os Valinhos” – tudo o que levou Bento XVI a dizer-lhe pessoal e textualmente: “Não há nada como Fátima em toda a Igreja católica no mundo”. E concluiu:
Fátima abre caminhos para cá chegar e abre caminhos para quem daqui parte para a Igreja e para o mundo, pela dimensão mística da mensagem, face a um certo eclipse cultural de Deus no ocidente, e pela dimensão profética urge a atenção ao problema sempre atual da paz pela cultura do encontro, do diálogo e da reconciliação e pela ação correspondente de uma Igreja em saída da sua autorreferencialidade para as periferias do mundo”.
Antes, o Padre Carlos Cabecinhas, reitor do Santuário, dera as boas-vindas aos cerca de 250 participantes, a quem apresentou o “caminho a que o peregrino se lança” como “símbolo da experiencia humana”. E, depois, justificou o uso da “metáfora da peregrinação” para “refletir acerca da experiencia de fé”, sustentando que a experiencia da peregrinação “não permite apenas aceder à mais profunda compreensão da fé, mas também oferece uma bela metáfora da vida em Igreja”.
Por seu turno, o presidente da Comissão Organizadora do Simpósio, começou por afirmar que, “entre as verdades que Fátima tem proclamado, ao longo de um século, está a de que o ser humano continua a exercer a sua condição de peregrino” e reiterou que “a imagem das incontáveis fileiras de homens e mulheres que rumam ao Santuário de Fátima” é “uma das mais expressivas imagens para a definição do ‘homo viator’, quer o leiamos no contexto do Cristianismo de sinal católico, quer o leiamos no contexto das inquietações várias – religiosas ou não – que povoam os fóruns académicos e a vida quotidiana”.
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Para o carmelita Adrian Attard, que não compareceu, mas enviou o texto que Isabel Varanda leu, a conversão proposta por Fátima deve-se “ao testemunho da existência cristiforme dos videntes”, que se “associaram a Jesus, mediante o Espírito, à história da liberdade de Jesus, ou seja, à sua fé obediencial ao Pai”. Por isso, o seu testemunho “mostra-nos” como a vida quotidiana pode tornar-se ocasião para alcançar a fé. Ora, “quando se reconhece a presença de Cristo que, na sua liberdade, vem ao nosso encontro no concreto da vida real, Ele torna-se a pedra angular para o significado de toda a vida pessoal”. E Attard vincou:
O caminho que cada um está chamado a realizar coloca-o misteriosa e progressivamente num espaço cada vez mais amplo que lhe permite alcançar o mais profundo de si mesmo, sem esquecer aquele que está ao seu lado”.
À distância de cem anos da sua morte, São Francisco Marto continua a ser uma “figura singular” que “conferiu à infância uma importância decisiva, vivendo-a em toda a sua profundidade e plenitude”, manifestada “na proximidade a Deus e ao seu mistério”. Com efeito, “no cumprimento de cada dever, nos atos de mortificação, em todas as ocasiões de zelo, de oblação, de abnegação e de caridade que se lhe apresenta, Deus colocou no coração de Francisco a sua vontade, e este cooperou eficazmente no processo de assimilação ao seu Senhor”. Por isso, “a vida do santo menino ajuda-nos a insistir em alguns pontos de interesse antropológico-espiritual e a clarificar algumas perspetivas para o futuro” – esclareceu.
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É de relevar algo do teor do painel temático da tarde do dia 22, marcado por três intervenções.
O reitor do Santuário, sublinhando o sentido da procissão como “uma caminhada comum” sinal da condição peregrina da Igreja enquanto povo de Deus, disse:
A luz da procissão das velas; o silêncio da procissão do silêncio (exclusiva de Fátima) e a saudade expressa no adeus à Virgem constituem marcas importantes no imaginário deste lugar”.
Em Fátima, particularmente, a procissão é uma forma “de aproximação” à veneranda imagem de Nossa Senhora e, simultaneamente, um  momento de oração, meditação e peregrinação. A este respeito, o Padre Cabecinhas vincou a especial relação entre estas procissões e a própria Mensagem de Fátima, nomeadamente a Procissão das Velas que remete para a “luz de Deus”, relatada nas memórias da Irmã Lúcia por variadas vezes, em concreto, quando descreve a experiência de Francisco, tocado pela Luz de Deus. Já a Procissão do Adeus, sendo um rito de despedida, “um adeus emotivo” dos peregrinos a Nossa Senhora, representa um aspeto indelevelmente ligado à `alma portuguesa: a saudade. E há uma outra procissão, criada por razões funcionais, mas que hoje é um dos momentos mais belos e que mais dizem da experiência que se faz em Fátima: o silêncio. Trata-se da procissão de regresso da imagem à Capelinha, depois da missa da Vigília na noite dos dias 12, entre maio e outubro, durante a qual milhares de peregrinos rezam em silêncio, “o silêncio orante caraterístico de Fátima”. É a mais recente das procissões, mas tornou-se “marcante nos rituais processionais do Santuário”, sendo que, “para muitos, é este silêncio que faz da Cova da Iria um lugar especial”.
Em todos estes momentos, concluiu o reitor, os peregrinos são “os grandes protagonistas de Fátima”. Os peregrinos “criaram estes rituais e são eles que os protagonizam”, quer quando levam as velas acesas, quer “quando se movimentam no recinto para ficarem mais próximos da imagem, quer ainda quando acenam os lenços brancos para se despedirem”.
Outra das “marcas” da peregrinação a Fátima é a bênção dos doentes, no final da missa, particularmente nas grandes celebrações. A partir do Evangelho de São Marcos, o médico e sacerdote José Manuel Pereira de Almeida apresentou este gesto litúrgico como a “expressão da proximidade de Jesus” para com todos os doentes e os que são frágeis. E afirmou:
Jesus, no Santíssimo Sacramento, passa bem junto dos doentes para lhes dizer a Sua proximidade e o Seu amor. E eles – tal como os Pastorinhos – confiam-lhe as suas dores, os seus sofrimentos, o seu cansaço. (…) Como discípulos do Senhor, cada doente quer viver a sua vida como um ‘dom’. Naquele momento podem dizer-Lhe de novo, como os Pastorinhos, que querem oferecer-se a Deus de todo o coração.”.
Depois, assegurou que “a nossa vida de comunhão com Jesus corresponde a vivermos com Ele e como Ele na terra”. E lembrou as palavras  do Papa Francisco, antes da bênção dos doentes em Fátima, no final da missa de canonização dos santos Francisco e Jacinta, a 13 de maio de 2017:
Jesus sabe o que significa o sofrimento, compreende-nos, dá-nos força e consola-nos. Por isso, a bênção dos doentes é a certeza de que Jesus está presente, nos compreende, nos dá força e nos consola.”.
Por fim, foi relevado o lava-pés como outra das grandes ‘marcas’ de Fátima. Ana Luísa Castro (médica religiosa da Aliança de Santa Maria e diretora do Posto de Socorros do Santuário) apresentou o gesto como “um primeiro desejo” dos que, movidos pela compaixão para com os primeiros peregrinos” (um grupo “de cavalheiros e senhoras” que, em 1924, haveriam de formar a Associação de Servitas de Nossa Senhora de Fátima), lançaram mãos à obra no apoio e assistência” a quem chegava a pé. E frisou que o serviço “cabe no desejo de excesso, suscitado por Deus, podemos dizer, então nesse carisma, de se sacrificar para dignificar o outro, para o servir, ao jeito de Jesus na Última Ceia, mas também como única forma de realização plena do que se é chamado a ser em Cristo”.
Tendo atravessado já várias fases, o serviço do lava-pés assiste hoje a uma redução da procura pelos peregrinos. As razões para “esta curva descendente” podem ser consideradas de ordem prática, mas há “outras que nos devem interpelar”, pois deriva da forma “como hoje o homem se coloca diante de Deus”. Com efeito, “temos dificuldade em reconhecer que somos frágeis, que precisamos que nos lavem os pés”, convictos da “autossuficiência” inerente ao homem de hoje, que privilegia o ritmo frenético imposto pelas mãos ao invés da “lentidão que os pés pedem”.
E, porque “os pés feridos são a manifestação física de um mundo interior magoado”, exortou:
Deixemos que os pés definam os nossos mapas, aceitemos percorrer um caminho interior, lento e esforçado, mas que permite ir experimentando os cheiros, as cores e os sons que a vida tem para dar (…).Temos que reaprender a usar os pés”.
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Na sua conferência, Marco Daniel Duarte considerou que “os Papas, ao virem a Fátima, deixam transfigurar o seu olhar” num lugar onde “a ritualidade transcende a mensagem”. Para o historiador, quem quiser compreender melhor Fátima na sua plenitude “deve analisar os discursos dos Papas em Fátima e a propósito de Fátima”.
O orador disse que os Papas, mesmo antes de iniciarem o ciclo das viagens pontifícias a Fátima, fizeram-se representar pelos seus delegados.
Paulo VI foi o primeiro a visitar a Cova da Iria, numa peregrinação de profundo “culto à Mãe de Deus”. Ao chegar a Fátima, lembrou a sua condição de “peregrino entre peregrinos” e, através dessa presença, “sentiu a força histórica da Irmã Lúcia de Jesus”, justamente pelas ovações dos peregrinos ali presentes. E ofertou o seu báculo, um gesto que merece “atenção”, porque não é “comum” um Papa proceder desta forma.
João Paulo II foi o segundo Papa a visitar a Cova da Iria e “nada previa que se fizesse peregrino em tão pouco tempo de pontificado”. Em Fátima, teve um gesto simbólico pondo-se de joelhos aos pés de Nossa Senhora e orando na Capelinha das Aparições, um ano depois do atentado e na hora em que ele aconteceu, num “profundo momento de silêncio”. O investigador falou da “relação física” de João Paulo II com a Imagem de Nossa Senhora, presente na Capelinha, onde “ele frente a frente mete no coração a humanidade e trata Maria como uma Mãe, gesto vivível nos seus discursos e orações”. O investigador lembrou a “gratidão” presente nos gestos e nas palavras do Santo Padre, que assumiu uma imagem de peregrino, com gestos idênticos aos dos outros peregrinos.
Em 2010, Bento XVI foi o primeiro a falar do Centenário das Aparições de Fátima, dando indicações orientadoras que o Santuário seguiu. Consagrou ali os sacerdotes ao Coração de Maria. E afirmou o Santuário de Fátima como coração espiritual de Portugal. 
Francisco esteve em Fátima, em maio de 2017, 100 anos depois da 1.ª aparição de Maria. E “um dos primeiros gestos foi o silêncio, seguindo-se a entrega de três ramos de rosas, cuja origem ainda hoje não sabemos, e posteriormente a Rosa de Ouro”. Bergoglio foi o “primeiro Papa a caminhar no Recinto de Oração sem ser num percurso celebrativo”. E, “na bênção aos doentes, o Papa Francisco deu um novo sentido à expressão Jesus escondido”.
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E ressaltam do Simpósio alguns elementos importantes: a dimensão da condição de peregrino do ser humano e da Igreja; as três marcas de Fátima (três procissões – velas, adeus e silêncio; bênção dos doentes; e lava-pés); e a condição de peregrinos dos Papas, iguais aos outros (rezam, cantam, fazem ofertas, acenam adeus, cumprem promessas, celebram datas significativas, caminham…) e diferentes deles (pontificam, pregam, abençoam, são aclamados…). É Fátima em conexão com Jesus Cristo e a Santíssima Trindade, em Igreja e pelo mundo.
2019.06.29 – Louro de Carvalho   


sexta-feira, 28 de junho de 2019

O problemático registo do clero e das atividades religiosas na China


Apesar do Acordo Provisório, de 22 de setembro de 2018, entre a Santa Sé e a República Popular da China, sobre a nomeação dos bispos, a relação do Estado com a comunidade católica apresenta graves fricções. Ainda há dias, a comunicação social denunciava que as autoridades impediram a celebração pública dos funerais dum bispo que falecera e que estava detido por via de sempre se ter recusado a aderir à Igreja Patriótica, sendo que o seu sucessor também está com residência fixa por idêntico motivo. Acresce que, para lá do que o Estado determina, outras entidades tomam iniciativas “não oficiais” que dificultam o exercício da atividade católica.
Recentemente, o Estado publicou nova regulamentação das atividades religiosas que implica o registo civil do clero e das atividades religiosas, a que deve ser aposta uma declaração escrita em como o requerente do registo se dispõe a aceitar, entre outras coisas, o princípio da independência, autonomia e autogestão da Igreja na China.
Perante a perplexidade de muitos clérigos, extensiva aos fiéis crentes, os bispos solicitaram à Santa Sé uma palavra de orientação sobre a atitude a tomar, dado que podem estar em conflito as exigências da fé e da unidade da Igreja e as do Estado chinês. E o Vaticano responde focando quatro pontos basilares: a tutela constitucional da liberdade religiosa; a interpretação da independência da Igreja na China não em sentido absoluto, mas no atinente à esfera política, nos termos do Acordo Provisório; o diálogo consolidado que enforma atualmente as relações entre a Santa Sé e a China; e o facto de muitos bispos ordenados sem mandato apostólico terem pedido e obtido a reconciliação com o sucessor de Pedro.
Assim, hoje, dia 28 de junho, a Santa Sé publicou o solicitado documento cujo teor é o seguinte (em tradução livre):
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Há algum tempo, os Bispos da China Continental apresentaram à Santa Sé uma orientação concreta sobre a atitude a tomar face à obrigação de requerer o registo civil do clero e das atividades religiosas. Com efeito, muitos Pastores estão profundamente perplexos porque a modalidade de tal registo – obrigatória de acordo com os novos regulamentações das atividades religiosas sob pena de não se poder agir pastoralmente – quase sempre envolve a assinatura dum documento em que, não obstante o compromisso das autoridades chinesas em respeitarem a doutrina católica, se deve declarar a aceitação, entre outras coisas, do princípio da independência, autonomia e autogestão da Igreja na China.
Face à complexidade da realidade chinesa e ao facto de não haver no país uma prática de aplicação única dos regulamentos para assuntos religiosos, torna-se particularmente difícil uma tomada de posição sobre o assunto. Por um lado, a Santa Sé não pretende forçar a consciência de ninguém; e, por outro, considera que a experiência da clandestinidade não faz parte da normalidade da vida da Igreja e que a história mostra que os pastores e os fiéis têm recorrido a ela apenas no desejo sofrido de manter intacta a fé (vd n. 8 da Carta de Bento XVI aos católicos chineses de 27 de maio de 2007). No entanto, a Santa Sé continua a exigir que o registo civil do clero ocorra com a garantia de respeito pela consciência e pelas profundas convicções católicas das pessoas envolvidas. Só assim, de facto, se promove a unidade da Igreja e o contributo dos católicos para o bem da sociedade chinesa.
No atinente à avaliação da eventual declaração que deve ser assinada no momento do registo, é de ter em conta que a Constituição da República Popular da China declara formalmente a proteção da liberdade religiosa (art.º 36.º) e que o Acordo Provisório, de 22 de setembro de 2018, reconhece o papel peculiar do Sucessor de Pedro – o que logicamente leva a Santa Sé a entender e a interpretar a “independência” da Igreja Católica na China não em sentido absoluto, isto é, como uma separação da Papa e da Igreja universal, mas na conexão com a esfera política, de acordo com o que sucede em todas as partes do mundo no quadro das relações entre o Papa e uma Igreja particular ou entre Igrejas particulares. Além disso, afirmar que na identidade católica não pode haver separação do Sucessor de Pedro não significa querer fazer duma Igreja particular um corpo estranho à sociedade e à cultura do país em que vive e atua. Depois, o contexto atual das relações entre a China e a Santa Sé, caraterizado por um diálogo consolidado entre as duas Partes, é diferente do que viu o nascimento de organizações patrióticas nos anos 50. Por fim, acresce o relevante facto de, ao longo dos anos, muitos bispos ordenados sem o mandato apostólico terem solicitado e obtido a reconciliação com o Sucessor de Pedro, para que todos os bispos chineses estejam em comunhão com a Sé Apostólica e desejem uma integração cada vez maior com os Bispos Católicos de todo o mundo.
Assim, é legítimo esperar uma nova atitude por parte de todos, mesmo quando se trata de questões práticas sobre a vida da Igreja. Por seu turno, a Santa Sé continua a dialogar com as autoridades chinesas sobre o registo civil de bispos e sacerdotes para encontrar uma fórmula que, no ato do registo, respeite não apenas as leis chinesas, mas também a doutrina católica.
Entretanto, à luz do acima exposto, se um Bispo ou um padre decidir registar-se civilmente e o texto da declaração para registo não parecer respeitoso para a fé católica, o declarante especificará por escrito, no momento da assinatura, que o faz sem prejuízo da fidelidade aos princípios da doutrina católica. Se não for possível fazer este esclarecimento por escrito, o requerente fá-lo-á verbalmente e, se possível, na presença de uma testemunha. Em qualquer caso, é aconselhável que o requerente certifique o seu Ordinário da intenção com que procedeu ao registo. Isto, na verdade, deve ser sempre entendido com o único propósito de favorecer o bem da comunidade diocesana e o seu crescimento no espírito de unidade, assim como uma evangelização adaptada às novas necessidades da sociedade chinesa e à gestão responsável dos bens da Igreja.
Ao mesmo tempo, a Santa Sé entende e respeita a escolha daqueles que, conscientemente, decidem não se registar nas condições atuais. Permanece perto deles e pede ao Senhor que os ajude a preservar a comunhão com os irmãos na fé, mesmo ante as provações que todos enfrentarão. Por sua vez, o Bispo, “nutra e manifeste publicamente a sua estima pelos presbíteros, demonstrando confiança e elogiando-os se o merecerem; respeite e faça respeitar os seus direitos e defenda-os contra críticas infundadas; dirima prontamente controvérsias para evitar que as inquietações prolongadas possam obscurecer a caridade fraterna e prejudicar o ministério pastoral” (Apostolorum Successores, Diretório para o ministério pastoral dos Bispos, 22 de fevereiro de 2004, n. 77).
É, pois, importante que os fiéis leigos não apenas compreendam a complexidade da situação acima descrita, mas também aceitem com grande entusiasmo a dolorosa decisão tomada pelos seus Pastores, seja ela qual for. Que a comunidade católica local os acompanhe com espírito de fé, com oração e com a afeição, abstendo-se de julgar as escolhas dos outros, guardando o vínculo da unidade e usando de misericórdia para com todos.
Em qualquer caso, à espera de um diálogo franco e construtivo entre as duas partes, conforme acordado, com vista a um modo de registo civil do clero mais respeitoso da doutrina católica e, por conseguinte, da consciência das pessoas envolvidas, a Santa Sé pede que as pressões intimidatórias “não oficiais” contra as comunidades católicas não sejam postas em prática, como infelizmente já tem acontecido.
Finalmente, a Santa Sé confia em que todos possam aceitar estas orientações pastorais como uma ferramenta para ajudar aqueles que se encontram a fazer escolhas difíceis, a realizá-las num espírito de fé e unidade. Todos – Santa Sé, bispos, sacerdotes, religiosos e fiéis leigos – são chamados a discernir a vontade de Deus com paciência e humildade nesta parte do caminho da Igreja na China, marcada por tantas esperanças, mas também por dificuldades duradouras.
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O documento responde às muitas perguntas que os bispos reiteradamente dirigiram ao Vaticano, que se reduzem ao seguinte:
Qual o comportamento adequado face ao pedido urgente de se inscrever no registo civil do clero segundo o estipulado por lei pelas autoridades políticas? O que fazer em relação ao dilema de consciência representado por alguns textos problemáticos para que é com frequência solicitada a assinatura?”.
Na sua resposta, a Santa Sé reafirma o princípio fundamental do respeito pela liberdade de consciência, pelo que ninguém pode ser obrigado a dar um passo que, indo contra a sua consciência, não tenha intenção de dar. Por outro lado, recorda o passo dado com o predito Acordo Provisório, de setembro de 2018, sobre a nomeação dos Bispos, que deu início a um novo caminho nas relações sino-vaticanas e levou ao importante resultado da plena comunhão de todos os bispos chineses com o Papa. Contudo, nem de longe foram ultrapassadas todas as dificuldades: o Acordo Provisório só representa o início dum percurso. E, entre as dificuldades subjacentes, conta-se a obrigação de os sacerdotes e bispos se registarem oficialmente junto das autoridades, como prescrito pela lei chinesa, apresentando o respetivo requerimento. Apesar do compromisso de querer encontrar uma solução aceitável e compartilhada, em várias regiões da República Popular da China, é exigido aos sacerdotes a subscrição de declaração cujos itens nem sempre são conformes com a doutrina católica, criando dificuldades de consciência, por exemplo, no atinente à aceitação do princípio de independência, autonomia, e autogestão da Igreja na China.
As Orientações Pastorais da Santa Sé para Bispos e sacerdotes face à exigência das autoridades governamentais para que se registem civilmente articulam a salvaguarda da doutrina católica e a liberdade de consciência com a resposta às necessidades da China e à de cooperar no bem comum daquela sociedade.
Assim, propõe-se o absoluto respeito pela liberdade de consciência de cada um, a proximidade e a compreensão da situação que atualmente as comunidades católicas vivem, algumas sugestões de escolhas de opções concretas que permitam ao clero chinês registar-se sem deixar de lado o que a Igreja Católica sempre acreditou sobre a comunhão com o Sucessor de Pedro.
Obviamente, o documento parte do olhar realista sobre a situação existente e as dificuldades ainda presentes, configura a intenção de ajudar os que se encontram na dúvida respeitando sempre a consciência de cada um na vivência dos sofrimentos, manifesta a vontade de contribuir para unidade dos católicos chineses e de favorecer o exercício público do ministério episcopal e sacerdotal para o bem dos fiéis. De facto, a clandestinidade, como escrevia Bento XVI na sua Carta (citada mais abaixo), “não pertence à normalidade da vida da Igreja” e esta Nota da Santa Sé deixa perceber a lei suprema da “salus animarum”, a salvação das almas, e a intenção de cooperar pela unidade das comunidades católicas chinesas, segundo um olhar evangélico que manifesta proximidade e compreensão pelo que viveram e estão a viver os católicos na China. Na verdade, a mensagem de Francisco,  de 26 de setembro de 2018, aos católicos chineses expressava, por parte do Papa, os “sentimentos de gratidão ao Senhor e de sincera admiração – que é a admiração de toda a Igreja Católica – pelo dom da vossa fidelidade, da constância na provação, da arraigada confiança na Providência de Deus, mesmo quando certos acontecimentos se revelaram particularmente adversos e difíceis”.
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É verdade que a situação atual é diferente da vivida nos anos Cinquenta, quando se originou a criação duma Igreja nacional chinesa separada de Roma. Hoje, pelo Acordo Provisório, as autoridades de Pequim reconhecem o papel peculiar do Bispo de Roma na escolha dos candidatos ao episcopado e tacitamente o seu múnus de Pastor da Igreja Universal; e a Santa Sé continua a trabalhar todas as declarações, solicitadas no âmbito do registo, a fim de serem consonantes não só com as leis chinesas, mas também com a doutrina católica e, portanto, aceitáveis para Bispos e sacerdotes. Assim, considerando a situação peculiar que vivem as comunidades cristãs no país e esperando superar definitivamente o problema, a Santa Sé sugere uma possível modalidade concreta para permitir à pessoa que se encontra em dúvida, com a intenção de se registar, que exprima as suas reservas. É uma sugestão que encaixa na rota inaugurada pela Carta aos Católicos da China publicada em maio de 2007 (já referida), em que Bento XVI reconhecia:
Em numerosos casos concretos, aliás quase sempre, no procedimento de reconhecimento intervêm organismos que obrigam as pessoas envolvidas a assumir posições, a realizar gestos e a assumir compromissos que são contrários aos ditames da sua consciência de católicos”.
E, considerando as dificuldades existenciais dos católicos, acrescentava:
Por isso, compreendo como nestas diversas condições e circunstâncias seja difícil determinar a escolha correta a ser feita. Por este motivo, a Santa Sé, depois de ter reafirmado os princípios, deixa a decisão a cada Bispo que, ouvido o seu presbitério, tem melhores condições para conhecer a situação local, para medir as concretas possibilidades de escolha e para avaliar eventuais consequências dentro da comunidade diocesana”.
Como se vê, já há 12 anos, o Papa mostrava compreensão e autorizava cada bispo a decidir pensando em primeiro lugar no bem das respetivas comunidades. E hoje a Santa Sé realiza uma ulterior etapa pastoral no caminho percorrido em contexto objetivamente diferente do passado.
Estas Orientações Pastorais sugerem a possibilidade de os Bispos e os sacerdotes pedirem, no momento da inscrição – o acréscimo, por escrito ou verbalmente, se possível com a presença de uma testemunha – da asserção de que independência, autonomia e autogestão da Igreja sejam entendidas sem deixar de lado a doutrina católica, ou seja, como independência política, autonomia administrativa e autogestão pastoral, como sucede com todas as Igrejas locais do mundo. E também instam a que o sacerdote informe imediatamente o respetivo Ordinário sobre a sua inscrição e as circunstâncias em que foi realizada. Por outro lado, quem não se queira registar nestas condições, não deve ser submetido a indevidas pressões.
Por fim, deve anotar-se que não há ingenuidade nestas Orientações pastorais. A Santa Sé está consciente dos limites e das “pressões intimidatórias” que sofrem muitos católicos chineses, mas quer mostrar que se pode olhar em frente e caminhar sem desvios dos princípios fundamentais da comunhão eclesial. É a solicitude papal que permite ancorar estas Orientações na esperança cristã seguindo o Espírito que leva a Igreja a escrever páginas novas aqui e agora.
Por outro lado, a China evidencia para a Igreja as consequências da incarnação do mistério eclesial na sociedade em que, a par dos sinais de Deus, emerge o mistério iniquidade a causar sofrimento ou a desviar os crentes da verdadeira rota. Foram também as tentações, a que Ele não cedeu, e os sofrimentos que a hostilidade, a negação, a traição ou incredulidade, de que foi vítima, os custos da incarnação do Filho de Deus para estar no mundo dos homens, próximo deles, vivendo a nossa vida.
Resta que se ore a Deus para que a Igreja na China saiba encontrar a forma de prevalecer incarnada e inculturada naquela sociedade, mas bem conectada com o desígnio e a força do Alto e muito firme no seu agir missionário.  
2019.06.28 – Louro de Carvalho

Insuficiência de professores qualificados pode marcar a próxima década


Poderá marcar a próxima década que está mesmo à porta a insuficiência de professores qualificados para as necessidades do sistema educativo português. Di-lo o CNE (Conselho Nacional de Educação), que se debruçou sobre o tema e avança com várias recomendações sobre a qualificação e valorização de educadores e professores do ensino básico e do secundário. E a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) vaticina que, na próxima década, 1 em cada 2 professores tem de ser substituído.
Para o CNE, o cenário poderá complicar-se se não forem tomadas medidas, se não forem desenvolvidas soluções que atenuem a quebra de candidatos nos cursos ligados à educação, se não forem dadas respostas aos desafios num futuro bem próximo. Todos conhecemos os dados: a classe docente está francamente envelhecida; prevê-se a saída de cerca de 30 mil professores nos próximos 8 anos, continua a diminuir a procura de cursos de formação – o que torna a renovação um caso sério. Por isso, aquele órgão consultivo do Ministério da Educação (ME) sustenta que é necessário rejuvenescer a classe, aumentar a estabilidade, reforçar a autonomia e valorizar a profissão docente, o que postula a alteração das condições do seu exercício e o estímulo à construção de uma imagem positiva dos professores, bem como melhores condições de trabalho, novas regras de ingresso nos cursos ligados à educação e mais formação em contexto escolar em contacto com os alunos.
O CNE identifica o “problema de insustentabilidade que urge antever e solucionar” e frisa que a desvalorização da profissão docente é “um elemento crítico”. Assim, o relatório do CNE vinca:
A imagem pública da função de professor é hoje muito diferente da de outros tempos. A pressão colocada sobre a escola, exigindo-lhe mais do que alguma vez lhe foi exigido, a massificação do ensino com o alargamento da escolaridade obrigatória e um acesso à informação que disputa o tradicional espaço escolar, são exemplos de responsabilidade acrescida para o desempenho docente, o que cria desafios que as políticas educativas têm tido dificuldade em acompanhar”. 
Considerando a poupa atratividade hodierna da função docente – pois as escolas superiores de educação têm menos alunos, há cursos que nada têm a ver com educação, tendo a formação e a qualificação dos educadores e professores vindo a ser desvalorizadas – o CNE lembra:
A ação docente não é um simples exercício técnico ou de saber fazer, mas antes um conhecimento profissional específico, essencialmente orientado para as situações da prática com que o professor lida”.
E, tomando em linha de conta que a formação envolve conhecimentos científicos, técnicos e pedagógicos, o CNE sublinha:
A formação inicial e a contínua representam duas faces de um propósito que se quer complementar no sentido de capacitar os docentes para os desafios educativos que as circunstâncias exigem”. 
Assim, a forte aposta na revalorização da profissão docente, que o CNE defende, passa pela maior dignificação da carreira e pela melhoria da qualidade das condições de trabalho – o que requer profunda reflexão sobre o sistema educativo do lado dos docentes, que inevitavelmente induzirá o rejuvenescimento da classe, o aumento da estabilidade, o reforço da autonomia dos docentes num trabalho cooperativo na escola. Para isso, julga-se necessário um planeamento prospetivo com a caraterização e provisão das necessidades sistémicas, nos diferentes grupos de recrutamento, antecipando a implementação das medidas mais adequadas. 
Uma das preditas medidas, segundo o CNE,  terá de ser a elaboração de novas regras de ingresso para o primeiro ciclo de estudos do curso de Educação Básica, prevendo um tempo complementar ou integrado de formação científica em Matemática ou em outras áreas em que os alunos revelem maiores dificuldades, durante a licenciatura, sendo que as instituições de Ensino Superior devem assegurar a participação do candidato a professor em contextos pedagógicos dinâmicos, em ações diretas com os alunos. Por seu turno, os agrupamentos de escolas devem aprofundar relações, assinar protocolos e deverão fazer tudo para que o período de formação prática supervisionada se aproxime mais “do tempo contínuo dos estágios, ou seja, cerca de um ano letivo, por períodos contínuos de docência, em semanas inteiras de tempos curriculares, ou em outros períodos escolares completos, de acordo com as especificidades dos níveis de ensino”. Além disso, impõe-se a substituição do período probatório por um ano de indução, isto é, um ano letivo completo de exercício profissional, com apoio da escola e de um docente do mesmo grupo de recrutamento e com experiência profissional. E deverá contar para efeitos de avaliação de desempenho docente e de avaliação das escolas a formação em contexto: com oficinas e projetos de longa duração. 
Depois, vem a renovação progressiva do corpo docente em todas as escolas, que é fundamental. Ora, nesse sentido e no quadro da sua autonomia, a escola deveria abrir mais vagas “resultantes de uma efetiva e mais ajustada diminuição do serviço docente aos professores com mais anos de serviço e da redução do número de alunos por turma”. E o CNE recomenda que seja incluído um número de horas de formação no horário letivo anual dos professores – formação ao longo do ano – para lá do tempo de dispensa de serviço docente. Isto no âmbito dum projeto definido pela escola e pelo docente, que valorize ações em contexto relevantes para o desenvolvimento profissional e para a melhoria das práticas pedagógicas.
Sobre isto, o presidente da CONFAP (Confederação Nacional das Associações de Pais) concorda, no geral, com as recomendações do CNE. Todavia, na sua declaração de voto, faz observações e sublinha algumas questões, realçando:
Ingressar na profissão docente implica gostar de ensinar, mas sobretudo gostar do que se ensina, pelo que não se pode deixar de observar a Matemática como fundamental para o exercício da profissão docente e particularmente no 1.º Ciclo, onde se inicia todo o gosto pela aprendizagem”. 
Neste sentido, o líder da CONFAP adverte:
A vontade ou a necessidade de se atraírem jovens para a docência não pode descuidar a valorização de saberes essenciais. Por outro lado, é preciso garantir que quem assume a responsabilidade de orientar e apoiar as crianças no início das suas vidas académicas o faz com verdadeiro gosto pelo que ensina em todas as áreas.”.
E garante que a CONFAP “continuará a bater-se pelo reconhecimento do mérito de todos os professores, pela importância que têm na complementaridade com as famílias na educação das nossas crianças e no desenvolvimento dos nossos jovens”. 
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Por sua vez, a OCDE deu a conhecer, a 19 de junho, um relatório sobre a situação dos professores no universo dos países que a integram, resultante do TALIS (Teaching and Learning International Survey), o inquérito feito aos professores, de cinco em cinco anos.
Nos termos do documento, sobressai um facto inquestionável: os professores portugueses estão cada vez mais velhos. Com efeito, Portugal é um dos países da OCDE onde a classe está mais envelhecida, sendo a sua média de idade de 49 anos. Além disso, verifica-se que cerca de metade dos professores tem mais de 50 anos e que a faixa etária acima dos 60 já representa 20% da classe. Estão piores que Portugal apenas a Bulgária, a Estónia, a Lituânia e a Geórgia.
Em todo o caso, é de anotar que o envelhecimento da profissão não é exclusivo do sistema educativo português e que, nos últimos 5 a 10 anos, a esmagadora maioria dos países viu a idade da classe docente aumentar.
Agora, aquele organismo internacional desenhou uma linha muito concreta no horizonte e garante que, durante a próxima década, Portugal vai ter de substituir, à conta das aposentações (na idade legal, na idade pessoal ou por antecipação), 1 em cada 2 professores no ativo.  
Defendem os relatores do TALIS, sobre os países que acusam maior envelhecimento docente:
Estes países vão ver-se a braços com o desafio de atrair e preparar um número elevado de professores nos próximos anos, a não ser que assistam também a um decréscimo do número de estudantes”.
A idade média dos professores portugueses de 49 anos contrasta com os 44 anos de média da OCDE. Por outro lado, 47% (quase metade) tem mais de 50 anos e a faixa etária acima dos 60 já representa 20% da classe docente portuguesa, como já foi dito. Os números ficam em patamar superior quando se olha para a idade dos diretores de escola ou de agrupamento de escolas: a média fica nos 54 anos, com 23% a ter mais de 60 anos. Do universo dos diretores escolares, só 43% é que são mulheres, quando a sua presença no ensino não superior ronda os 77%.
Feitas as contas e sem contar com aposentações antecipadas ou por invalidez, nos próximos 15 anos, 67% dos professores portugueses (dois terços) terão idade suficiente para se aposentarem.
Como se disse, Portugal, com a média nos 49 anos, é um dos países da OCDE onde os professores são mais velhos; só a Bulgária, a Estónia, a Lituânia e a Geórgia têm uma classe docente mais envelhecida que a portuguesa, com a idade média a chegar aos 50 anos neste último país. Do outro lado da tabela, entre os 38 países analisados no TALIS, está a Turquia, onde a idade média é de 36 anos.
Ora, como a idade média de aposentação na OCDE é de 64,3 anos para os homens e de 63,7 anos para as mulheres, os sistemas educativos vão ter de renovar pelo menos um terço da sua força de trabalho nos próximos 15 anos, se o número de estudantes se mantiver estável. Mas, no caso português, a perspetiva piora, pois é previsível que mais de metade dos professores ativos se aposente nos próximos 10 anos. Por isso é que tem de substituir um em cada dois.
E a este problema Portugal soma outro: os cursos superiores de educação estão a atrair cada vez menos alunos, o que poderá criar um problema de oferta em alguns grupos de recrutamento no curto prazo. Aliás, foi este um dos problemas levantados pela Fenprof no 13.º congresso, que decorreu em Lisboa, a 14 e 15 de junho. Diz o Programa de Ação desta federação sindical, aprovado no encontro, que “dos 21 cursos de formação inicial de docentes lançados este ano letivo pelas instituições de ensino superior, em 12 houve menos de 10 candidatos”, sendo apontada como uma das culpadas deste cenário a falta de atratividade da profissão. Por outro lado, a Fenprof exige, para combater o envelhecimento da profissão, um regime específico de aposentação para os professores, problema há muito levantado pelos seus sindicatos.
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Pela 1.ª vez, o TALIS analisa os motivos que levam os professores a enveredar por esta carreira. Os resultados portugueses alinham pela média da OCDE: 93% dos inquiridos enveredaram pelo ensino para influenciar o desenvolvimento das crianças ou contribuir para a sociedade; mas, contra uma média de 67% na OCDE, 84% dos professores portugueses escolheram a carreira como primeira opção. Ora, esta ideia de serviço público (os motivos financeiros só influenciaram a decisão de 60% a 70%) leva a OCDE a sustentar a existência de um alto nível de profissionalismo entre os professores e a da margem para atrair as novas gerações para a profissão, inferindo que, se há vontade de ser professor, cabe aos governos dos diferentes Estados criar políticas que tornem a carreira mais atrativa. Ou seja, a OCDE defende que, para ter professores e diretores de qualidade, urge criar uma classe motivada através de condições de trabalho gratificantes. 
Entre as preditas condições (dizem-no os próprios professores convidados pela OCDE a definir as áreas prioritárias de investimento na educação), conta-se o recrutamento de mais professores, o que levará à redução do número de alunos por turma, e o de mais pessoal auxiliar. Depois, vem o aumento de salários como outra condição para melhorar a atratividade da carreira. Com efeito, como é possível um professor contratado ou em início de carreira, com salário tão magro, suportar as excessivas despesas de deslocação ou aceder a renda de casa a preços proibitivos e sem um suplemento salarial para residência ou deslocação como têm outros trabalhadores?
No entanto, a OCDE, considerando que os orçamentos de educação “normalmente competem com uma variedade de outras políticas públicas prioritárias”, admite como pouco provável que aumentem num curto espaço de tempo na maioria dos países”. Por isso, aconselha “diálogos construtivos” com os representantes dos professores sobre a “forma de melhor alocar recursos limitados para melhorar as condições financeiras e de trabalho da profissão ao longo do tempo, em linha com o progresso no profissionalismo e com uma maior produtividade”. Lindo!
Também considera o TALIS que “aumentar o status e o prestígio da profissão” é um objetivo primordial para atrair candidatos e garantir a renovação contínua” fazendo face às aposentações. Assim, sustenta a importância de os próximos 10 a 15 anos serem planeados, “tendo em conta as alterações demográficas, quer na força de trabalho, quer na população estudantil”. E deixa um recado sobre ações de recrutamento:
Devem retratar os professores e diretores como peças chaves da sociedade e do desenvolvimento de futuras gerações. Essas campanhas não devem ficar em silêncio sobre as condições financeiras e de trabalho e devem exaltar os seus aspetos gratificantes.”.
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Também o ME assume que os professores, em Portugal, estão cada vez mais envelhecidos – assunção badalada à boleia do relatório da OCDE revela que os docentes têm em média 49 anos.
É uma idade superior, em 5 anos, à média dos restantes países-membros. Por isso, a OCDE recomenda ao Governo a renovação de metade do número de professores, na próxima década.
O Secretário de Estado da Educação João Costa garantiu à Antena 1 estarem em marcha medidas para inverter esta realidade, mas sem as especificar, tal como disse pretender que os professores portugueses possam dedicar mais tempo à atividade letiva, e menos a burocracias (que ocupam muito do tempo dos docentes), sem dizer como.
Ao invés, Mário Nogueira, da Fenprof, pede urgência na renovação dos docentes e fala numa rutura iminente devido à falta de oportunidade para os professores em início de carreira. Pelo que sugere medidas concretas, como ficou referido supra, aliás em linha com o recomendado pela OCDE e pelo CNE.
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Por fim, há que motivar os jovens para o estudo. Com efeito, um em cada 6 jovens da UE não estudava nem trabalhava em 2018 (cerca de 15 milhões de pessoas), mas Portugal ficou abaixo desta média, sendo o 9.º país com menos jovens “nem nem”. Segundo o Eurostat, cerca de 16,5% dos jovens europeus entre os 20 e os 34 anos não estudava, trabalhava ou estava em estágio. Em Portugal, a percentagem era de 11,9% (ocupando o 9.º lugar dos países com menos jovens nessa situação). Havia, ainda assim, mais mulheres portuguesas (12,8%) do que homens (10,9%) nessa condição.
Há, pois, ainda muito por fazer!
2019.06.27 – Louro de Carvalho