É a
atitude epistemo-pedagógica do Mestre face à pretensão violenta e musculada dos
irmãos Tiago e João de castigar os samaritanos por recusarem dar hospedagem a
Jesus e à sua comitiva na passagem para Jerusalém como se relata na primeira
parte do texto evangélico tomado para a Liturgia da Palavra do 13.º domingo do
Tempo Comum no Ano C (Lc 9,51-62).
Na verdade, prestes a ser levado deste mundo, Jesus
decidiu dirigir-Se a Jerusalém e mandou à
sua frente mensageiros, que entraram numa povoação de samaritanos (povo descendente de
estrangeiros que ocupavam Israel após a deportação dos israelitas) para
Lhe prepararem hospedagem. Mas aquela gente não O quis receber, por ir para
Jerusalém.
Vendo isto, Tiago e João, os filhos do trovão (designativo que Jesus
lhes deu, pelos visto com razão), disseram: “Senhor,
queres que mandemos descer fogo do céu que os destrua?” – uma alusão ao que
fizera Elias aos
adversários (cf 2 Rs
1,10-12). Porém, Jesus voltou-Se e repreendeu-os.
E seguiram para outra povoação, provavelmente também de samaritanos,
pois, segundo o livro dos Atos (vd At 8,5-25), a Samaria estava recetiva ao
cristianismo.
O incidente ilustra praticamente a obrigação de rejeitar a força da
violência, a não imposição da nossa vontade, em vez de proposta e aconselhamento,
mas respeitando a inteligência e a vontade dos outros e aceitando-os como são;
e a obrigação de encontrar vias alternativas na vida para os nossos desígnios.
De facto, por mais santos que sejam os nossos objetivos, nunca é lícita a
imposição, pela força, dos meios para os atingir ou da inculcação das boas
ideias – uma lição contra as contendas e guerras por motivos religiosos.
Até agora, Lucas situou Jesus na Galileia, mas, a partir
daqui, mostra Jesus decididamente a caminhar para Jerusalém com os discípulos,
não mais falando, segundo Lucas, da Galileia e da Samaria. Desta caminhada, mais
teológica do que geográfica, Lucas não intenta um diário da viagem ou a lista
dos lugares por onde Jesus vai passar, mas pretende apresentar um itinerário
espiritual em que o Mestre faz com os discípulos a pedagogia do conhecimento e
dos valores do “Reino”, presenteando-os com a plenitude da revelação. Todo este
percurso, aqui iniciado, converge para a cruz, que trará a revelação suprema
que Jesus quer apresentar aos discípulos e onde irromperá a salvação
definitiva. Por isso, Jesus exorta os discípulos ao seguimento deste caminho,
para se identificarem plenamente com Jesus. E Lucas propõe à sua comunidade o
itinerário que os verdadeiros crentes devem calcorrear.
O texto em referência tem uma 1.ª parte (vv. 51-56), que foi sinteticamente transcrita,
em que o cenário de fundo nos dá conta da hostilidade entre judeus e samaritanos.
Era ancestral a dificuldade de convivência entre os dois grupos; procurando evitar
a passagem pela Samaria para evitar maus encontros, os peregrinos que iam a
Jerusalém para as grandes festas de Israel utilizavam preferencialmente o caminho
do mar (junto da orla
costeira) ou o do vale do
Jordão.
Como ficou dito, a primeira lição de Jesus ao longo desta
“caminhada” ilustra a atitude que os discípulos devem assumir face ao ódio do
mundo e à sua rejeição da proposta de salvação. Face à hostilidade manifestada
pelos samaritanos, os filhos de Zebedeu advogavam uma resposta agressiva, que
retribuísse na mesma moeda, Mas Jesus adverte-os de que o seu caminho não passa
nem passará pela imposição da força, violência ou prepotência. No seu horizonte
próximo continua a cruz e a entrega da vida por amor, pois é no dom da vida e
não na prepotência e na morte que se realizará a sua missão. Ora, por melhores que
sejam os seus objetivos e propósitos, os discípulos nunca podem esquecer isto,
se estão verdadeiramente interessados em trilhar a rota de Jesus, muito embora,
como atesta a História e a experiência de cada um, as tentações de imposição do
ponto de vista particularista sejam mais que muitas e muitas vezes se caia
nelas.
***
Na 2.ª parte da passagem evangélica em causa (vv. 57-62), Lucas apresenta algumas das
condições para percorrer, com Jesus, o caminho de Jerusalém para a cruz onde
acontecerá o pleno da salvação. E fá-lo através de três candidatos a discípulos.
Ao primeiro, que se autopropõe e se afoita a seguir o Mestre
para onde quer que Ele vá, é sugerido que deve despojar-se das preocupações
materiais, já que, para o discípulo, o Reino tem de ser infinitamente mais
importante do que as comodidades e o bem-estar material:
“As raposas têm as
suas tocas e as aves do céu os seus ninhos; mas o Filho do homem não tem onde
reclinar a cabeça”.
Ao segundo, que é instado por Jesus, é referido que o
discípulo deve despegar-se dos deveres que, apesar da sua importância (a piedade filial no atinente ao
sepultamento dos pais é um dever fundamental no judaísmo, como atestam Gn 49,28
– 50,26; Ex 13,19; Tb 4,3; 6,15), impeça resposta imediata e radical ao dinamismo do Reino: “Deixa que os mortos sepultem os seus mortos;
tu, vai anunciar o reino de Deus” – disse Jesus.
Ao terceiro, sugere-se que o discípulo deve despegar-se de
tudo (até da família, se
for necessário), para
fazer do Reino a prioridade fundamental; e nada – nem a família – deve adiar ou
demorar o compromisso com o Reino: “Quem
tiver lançado as mãos ao arado e olhar para trás não serve para o reino de Deus”
– disse o Mestre. Jesus exige mais do que Elias fez a Eliseu. Arar para o Reino
significa renúncia, abnegação, sacrifício; e não se pode olhar para trás sob
pena de a lavoura ficar seriamente prejudicada,
Obviamente, não são de ler ao pé da letra tais condições,
pois o Mestre quer sobretudo provocar a reflexão, pôr os discípulos a pensar, o
que devia fazer qualquer escola. Ou seja, não podemos entender estas exigências
como normativas para todas as circunstâncias: Ele mandou cuidar dos pais (cf Mt 15,3-9); e os discípulos (nomeadamente Pedro) fizeram-se acompanhar das esposas nas
viagens missionárias (cf
1Cor 9,5). O que estes
ensinamentos significam é que o discípulo é convidado a eliminar da sua vida
tudo o que possa ser obstáculo no seu testemunho quotidiano do Reino e a despojar-se
de si próprio, do orgulho, da vaidade e da tentação do carreirismo.
***
Eliseu foi
chamado por Deus, pela mão de Elias, para ser profeta em Israel, missão difícil
e sujeita a perseguições como sucedera com Elias. Eliseu, que era rico, deixou
tudo para ficar ao serviço de Deus. Entretanto, pediu a Elias que o deixasse ir
abraçar a família, a que o profeta anuiu, mas avisando que não demorasse,
porque Elias já tinha feito o que devia ter feito. Mais: Elias aceitou a
incumbência da parte de Deus para chamar e ungir Eliseu, com o risco de a
profecia de Eliseu eventualmente vir a denunciar falhas do antecessor, o que
não lhe importou: As missões confiadas por Deus urgem!
O gesto de Elias, ao cobrir Eliseu com a sua capa, indica o
apelo do Senhor a uma missão que exige disponibilidade total: assim, Eliseu queima
o arado, imola os bois para se encontrar completamente livre na entrega à sua
missão. (vd 1Rs 19,16b.19-21).
Também os
Apóstolos tinham sido corajosos para seguir o chamamento de Jesus. Deixaram as
redes, o seu ganha-pão, deixaram a família, para andarem com Jesus. Com efeito,
para seguir a Jesus, é preciso estar disposto a tudo. E o Senhor continua a
fomentar no coração de muitos homens e mulheres esta generosidade ao serviço de
Deus e dos outros. Por isso, deve a Igreja dar graças por tantos exemplos do
nosso tempo, rezar para que não faltem as vocações e rogar pela extinção dos
erros e pecados de tantos e tantas, que deslustram o ser e a missão da Igreja.
O amor aos
pais não pode ser empecilho para a vocação específica a que Deus chama os
filhos. Tantos não deixam que a filha vá para religiosa, pensando que não têm
quem os trate quando forem velhos, mas deixam que ela case e vá viver para o
Brasil ou para a Austrália. Por vezes, são as filhas religiosas que acabam por
estar mais perto dos pais nas suas necessidades.
Ora, a
generosidade para com Deus acaba por ser recompensada muitas vezes já neste
mundo. De facto, Ele não é parco em generosidade, dando cem por um agora e,
depois, a vida eterna.
Os sacerdotes,
os religiosos e as religiosas, para se manterem na sua vocação, têm de
decidir-se a entregar-se a sério à missão que o Senhor lhes confiou, na guarda
do coração, na assiduidade da oração, no recurso à confissão e direção
espiritual, na generosidade no apostolado.
Os pais
deviam sentir alegria por Deus chamar os seus filhos para sacerdotes e/ou
religiosos ou as filhas para religiosas. O pai de Teresa do Menino Jesus, São
Luís Martin, é exemplo dessa alegria em dar os filhos a Deus. As cinco filhas
vieram a ser carmelitas e uma da Visitação. Quando Teresa, com 14 anos, resolve
ir para o Carmelo, vai ter com o pai a pedir a sua autorização e fica muito
contente ao ver a resposta generosa do pai. Ao invés, muitos pais põem óbices à
vocação dos filhos e acabam por ser ocasião, para eles, de afastamento de Deus
e de seguimento, tantas vezes, de uma vida sem rumo, sem sentido e de desprimor.
Em maré de
santos populares, a Igreja recorda os que souberam viver esta entrega a Deus.
Assim, António de Lisboa ou de Pádua seguiu o apelo de Jesus e deixou as
comodidades e as riquezas para imitar a Jesus na Sua pobreza e levar a Sua
mensagem salvadora a muitos homens. João Batista, que se entregou desde jovem à
oração e penitência e depois anunciou a chegada de Jesus e a excelência da
missão messiânica, deu a vida pela verdade. O mundo inteiro louva-O nestes dias
dizendo que valeu a pena a sua generosidade e sacrifício. E Pedro deixou as
barcas e a família para ser Apóstolo de Jesus, arriscou a vida diversas vezes e
morreu em Roma pregado numa cruz. Ao louvá-Lo nestes dias, a Igreja diz-nos que
a sua vida valeu a pena.
***
Os que
são especialmente chamados e pretendem ser discípulos mais próximos de Jesus
têm de sentir a liberdade de caminharem sem empecilhos e de O seguirem.
As
passagens da Carta aos Gálatas (Gl 5,1.13-18) tomadas para 2.ª leitura da
dominga aludem à liberdade – palavra que nos
agrada e que estamos habituados a ouvir, a proclamar, a gritar e a cantar. Mas
será esta liberdade tão apregoada prega Paulo? O Apóstolo prega a “verdadeira
liberdade”, a dada por Jesus Cristo. Avisa os Gálatas de que foi para a
liberdade que Cristo os libertou (veja-se
o hebraísmo libertar para a liberdade, destinado a dar ao verbo “libertar”
um sentido mais intenso) não convindo voltar a cair no jugo da escravidão (escravidão que Paulo identifica com a Lei e com a circuncisão).
A liberdade para o cristão não consiste na faculdade de escolher
entre duas coisas distintas (isso é muito pouco) e opostas,
muito menos será a independência ético-moral em virtude da qual cada um pode
fazer o que lhe apetece, sem barreiras de qualquer espécie (isso pode dar em libertinagem). Segundo o Apóstolo, a verdadeira
liberdade consiste em viver no amor; e o que nos escraviza, limita e impede de
alcançar a vida em plenitude (“salvação”) é o desamor, a
frieza, o egoísmo, o orgulho, a autossuficiência. Ora, é preciso superar esse
fechamento em nós próprios e fazer da nossa vida um dom de amor. Só é
autenticamente livre quem se libertou de si próprio e vive para se dar aos
outros. E esta liberdade nasce da vida que Cristo nos dá, ou seja, pela adesão
a Cristo, gera-se em cada pessoa um dinamismo interior que a identifica com
Cristo e lhe dá uma capacidade infinita de amar, de superar o egoísmo, o orgulho
e os limites – a capacidade infinita de viver em liberdade. É o Espírito que
alimenta, dia a dia, essa vida de liberdade (ou
de amor) que se gerou em nós a partir da nossa adesão a Cristo.
Ao
invés, viver na escravidão é continuar a viver
uma vida centrada em si próprio (Paulo
enumera, em Gl 5,19-21, as obras de quem é escravo), levando a
que, chegada a ocasião nos mordemos e devoramos uns aos outros; mas viver na
liberdade (“segundo o Espírito”) é sair de si e
fazer da sua vida um dom, uma partilha (Paulo
enumera, em Gl 5,22-23, as obras daquele que é livre e vive no Espírito), é viver amando
o próximo como Cristo nos amou e ensinou a amar, ajudando, quais cireneus atrás
de Jesus, a suportar as cargas dos outros.
Cristo libertou-nos pelo sofrimento, pela cruz e sobretudo
pela aceitação plena da vontade de Deus Pai, que O levou a dar a vida por nós. A
cruz é libertação. O homem santifica-se pelo sofrimento do quotidiano, que pode
ser, para os jovens, uma falta de sucesso nos estudos, a dificuldade em
arranjar o primeiro emprego, e, para os adultos, a morte dum familiar, uma
crise financeira, a doença, o desemprego. Quantas revoltas, quantos desânimos
nos assaltam por vezes! Porém, Deus está connosco. É Pai! Espera de nós a
aceitação da Sua Paternidade, do Seu Amor. Não é destruindo-nos que nos
libertamos, mas aceitando com alegria, com confiança e em toda a plenitude a
exigência da Boa Nova de Cristo que é Caminho, Verdade e Vida.
2019.06.30
– Louro de Carvalho
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