domingo, 2 de junho de 2019

Enquanto os abençoava, afastou-Se deles e foi elevado ao Céu


A Ascensão do Senhor, solenidade agendada pela Igreja para a quinta-feira que perfaz os 40 dias do tempo pascal (contados à maneira hebraica e romana) ou para o domingo seguinte, nos países em que a predita quinta-feira não é feriado, reporta-se ao mistério de Cristo que se relaciona com a pessoa e a missão do Filho de Deus. Este, fazendo-Se homem, “por nós homens e para nossa salvação” (do símbolo niceno-constantinoplitano), veio morar com os homens durante algum tempo na visibilidade da condição humana. Chegada a hora que o Pai fixara, voltou para Ele, mas passando pelo sofrimento, morte e ressurreição (trilogia que Lucas sintetiza com o verbo “paskheîn”) para que tenhamos a vida e a tenhamos em abundância (cf Jo 10,10). Por isso, este mistério diz respeito a toda a humanidade, ao mundo inteiro, a cada homem e a cada mulher.
Para referirmos a Ascensão de Jesus, recorremos a imagens da fisicidade (elevou-se, subiu, foi para o alto…). São expressões não tomandas à letra, mas que significam só que Jesus está na glória com o Pai, como diz a fé, a oferecer-nos os inefáveis benefícios que a exaltação de Cristo traz ao mundo – bens celestes que procedem do Espírito Santo prometido por Cristo que subiu ao Céu.  
No Ano C, o episódio da Ascensão é lido no final do 3.º Evangelho (Lc 24,46-53) e no início dos Atos dos Apóstolos (At 1,1-11). Enquanto o 3.º Evangelho reporta a um só dia a ressurreição e a ascensão, o livro dos Atos separa as duas vertentes do mistério por 40 dias (número simbólico da perfeição) a designar o tempo da duração do inteiro ensinamento do Ressuscitado aos discípulos, cujo tema central é o Reino de Deus, como referem várias passagens dos Evangelhos (sobretudo os sinóticos) – tempo simbólico que remete para o dos grandes acontecimentos da economia da salvação, por exemplo, os 40 anos da travessia do Sinai e os 40 dias e as 40 noites da passagem de Jesus pelo deserto, levado pelo Espírito Santo, antes de iniciar a sua pública pregação.    
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O livro dos Atos dos Apóstolos dirige-se, na década de 80 (cerca de 50 anos após a morte de Jesus) a comunidades que vivem em contexto de crise. Passara a fase da expectativa pela vinda iminente do Cristo glorioso para instaurar o Reino e uma certa desilusão apoderou-se das comunidades cristãs. Além disso, surge alguma confusão resultante de questões doutrinais; e da monotonia resulta uma vida cristã pouco empenhada e pouco entusiasmante, o que induz as comunidades a instalarem-se na mediocridade. Com efeito, continua igual o mundo, como continua adiada a esperada intervenção vitoriosa de Deus. E os cristãos interrogam-se sobre quando se concretiza plena e inequivocamente o plano divino de salvação. E neste quadro psicossocial se insere o texto tomado para 1.ª leitura (At 1,1-11) na Liturgia da Palavra da Solenidade da Ascensão, curiosamente comum a cada um dos três anos do ciclo (Anos A, B e C).
Não levando à letra as expressões tiradas da fisicidade e tendo em conta o número simbólico dos 40 dias, verificamos que Lucas, funcionando como catequista, adverte que o desenvolvimento do projeto de salvação em Cristo passa (após a ida de Jesus para junto do Pai onde intercede por nós) para as mãos da Igreja, animada e guiada pelo Espírito. Longe de estar concluída a edificação do “Reino”, ela é uma tarefa que é preciso concretizar na história e que exige o empenho contínuo de todos os crentes, com a orientação das lideranças. Os cristãos, quais discípulos chamados ao seguimento de Jesus e ao apostolado, são instados a redescobrir o seu papel para se tornarem capazes de testemunhar o projeto de Deus, na fidelidade ao “caminho” que Jesus percorreu.
O trecho em referência inicia-se com um prólogo (vv. 1-2) que relaciona os “Atos” com o 3.º Evangelho na referência ao mesmo Teófilo a quem foi endereçado o Evangelho e na alusão a Jesus, aos seus ensinamentos e à sua ação no mundo (tema central do 3.º Evangelho). E o prólogo apresenta os protagonistas do livro – o Espírito Santo e os apóstolos (ambos vinculados com Jesus) – e menciona o facto de Jesus ter sido arrebatado ao Céu. Na verdade, tal como prometera o envio do Espírito Santo, também apareceu vivo aos apóstolos depois da sua Paixão, deu-lhes várias provas da ressurreição e falou-lhes do Reino de Deus.
Depois do prólogo, surge o tema da despedida de Jesus (vv. 3-8). Lucas, na sua catequese, começa por fazer referência aos “quarenta dias” que mediaram entre a ressurreição e a ascensão, durante os quais Jesus falou aos discípulos acerca do Reino de Deus. Como foi dito, número 40 é um número simbólico, o número que define o tempo necessário para um discípulo aprender e repetir as lições do mestre, definindo aqui o tempo simbólico de iniciação ao ensinamento do Ressuscitado, levando à releitura do ensinamento anterior à Paixão, mas agora à luz e segundo os critérios da ressurreição, pelo a impertinente (e atual) tentação do messianismo político e espetacular (“É agora que vais restaurar o reino de Israel?”) é rejeitada liminarmente por Cristo.
As palavras de despedida de Jesus (vv. 4-8) sublinham duas vertentes: a vinda do Espírito e o testemunho (em grego “martýrion”) que os discípulos são chamados a dar “até aos confins do mundo”. Está aqui sintetizada a experiência missionária da comunidade lucana: o Espírito irá derramar-se sobre a comunidade crente e dará a força para testemunhar Jesus em todo o mundo, de Jerusalém a Roma, atingindo diversas paragens. É o programa que Lucas desenvolve ao longo do livro, posto na boca do Ressuscitado. O autor mostra com o livro que o testemunho e a pregação da Igreja estão entroncados no próprio Jesus e são impulsionados pelo Espírito.
O último tema é a Ascensão (vv. 9-11), passagem que deve ser interpretada de modo que, pela roupagem dos símbolos, a mensagem apareça com toda a clareza.
Em primeiro lugar, a elevação de Jesus ao Céu (v. 9a). Não se trata de descolagem da terra por parte da pessoa de Jesus, mas dum facto teológico (não de reportagem): na verdade, a ascensão é um modo de afirmar que a exaltação de Jesus é total e atinge dimensões supraterrenas; é o modo literário de descrever o culminar de uma vida vivida para Deus, que “reentra”, por assim dizer, na glória da comunhão com o Pai. Depois, temos a nuvem (v. 9b) que subtrai Jesus aos olhos dos discípulos. Ora, a nuvem, pairando entre o céu e a terra, é, no Antigo Testamento, um símbolo da presença de Deus (cf Ex 13,21.22; 14,19.24; 24,15b-18; 40,34-38). Por outro lado, ao mesmo tempo, esconde e manifesta: sugere o mistério do Deus escondido e presente, cujo rosto o Povo não vê, mas cuja presença adivinha nos acidentes da caminhada. Céu e terra, presença e ausência, sombra e luz, divino e humano, são dimensões agora sugeridas a propósito do Ressuscitado elevado à glória do Pai, mas que se mantém na caminhada com os discípulos.
Por sua vez, os discípulos ficam pasmados a olhar para o céu (v. 10a), o que significa a expectativa da comunidade que espera ansiosamente a segunda vinda de Cristo, a fim de levar a cabo o projeto de libertação do homem e do mundo. Mas talvez seja precisa ação.
Talvez por isso e por fim, surgem dois homens vestidos de branco (v. 10b). Na brancura que sugere o mundo de Deus, indica-se que o testemunho destes homens vem de Deus, tal como o testemunho dos discípulos, pois têm de branquear as suas túnicas no sangue do Cordeiro (cf Ap 7,14). Recordo, a este respeito, que o Padre Laureano Alves, passionista, frisou hoje, em Santa Maria da Feira, a vertente grega do conceito de martírio: o mártir é não só aquele que dá a vida, com o derramamento de sangue por causa de Cristo e do seu Evangelho, mas também aquele que, seguindo-O, dá testemunho de Cristo ressuscitado pela palavra, atitudes e comportamentos, podendo, se necessário for, chegar ao martírio ou testemunho pelo sangue. Na verdade, entre os gregos, “mártyros” era quem, tendo visto e ouvido, não podia deixar de prestar o seu depoimento, correndo os riscos que isso comportava.      
Então os referidos homens de branco instam os discípulos a continuar no mundo, animados pelo Espírito, a obra libertadora de Jesus; pois, agora, é a comunidade dos discípulos que tem de continuar, na história, a obra de Jesus, com a esperança na segunda e definitiva vinda do Senhor.
O sentido fundamental da Ascensão não é a contemplação cómoda ou supina da elevação de Jesus, mas o apelo ao seguimento das pegadas de Jesus – Caminho, Verdade e Vida –, olhando para o futuro com entrega inequívoca à concretização do seu plano salvador no mundo.
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O Evangelho da Ascensão no Ano C (Lc 24,46-53) situa-nos no dia da Ressurreição. Cristo já se manifestara aos discípulos de Emaús (cf Lc 24,13-35) e aos onze, reunidos no cenáculo (cf Lc 24,36-43). Agora, seguem-se as últimas instruções de Jesus (cf Lc 24,44-49) e a Ascensão (cf Lc 24,50-53).
Ao invés de “Atos”, ressurreição, aparições de Jesus ressuscitado aos discípulos e ascensão são postas no mesmo dia, o que será mais adequado em termos teológicos. Com efeito, Ressurreição e Ascensão não se podem diferenciar; são modos humanos de falar da passagem da morte à vida junto de Deus. Todavia, como “Atos” é posterior, Lucas aprimora o discurso na linha temporal das exigências da aprendizagem discipular e na perspetiva da necessidade de os corações se preparem para a livre receção do dom de Deus a culminar na infusão e efusão do Espírito Santo.  
Também este trecho final do livro (como o trecho inicial de “Atos”) está organizado em dois momentos: despedida dos discípulos (vv. 46-49) e ascensão (vv. 50-53).
No primeiro momento, temos as palavras de despedida. Os discípulos, feita a experiência do encontro pessoal com Jesus ressuscitado, são agora convocados para a missão: Jesus envia-os como testemunhas a pregar a “metanoia” – conversão, transformação radical da vida (mentalidade, coração, valores, atitudes, comportamentos) – e o perdão dos pecados. Não se prega a condenação, a ruína, o anátema, mas prega-se, em nome do Messias, como estava escrito no Antigo Testamento, o arrependimento e o perdão dos pecados. Ou seja, anuncia-se que Deus ama todos os homens e os convida a deixar o egoísmo, o orgulho e a autossuficiência para terem a vida de Homens Novos. Para esta enorme tarefa, os discípulos contam com a força do Alto, isto é, a ajuda e a assistência do Espírito. Estão, nas palavras de Jesus, todos os dados do que é a missão da Igreja: o testemunho apostólico tem como tema central a morte e ressurreição de Jesus, ou seja, a ação do Messias libertador anunciado pelas escrituras (vv. 44.46). De Jerusalém, este testemunho chegará a todas as nações – “percurso” que é explicitado no livro dos “Atos”.
No segundo momento, Lucas descreve a Ascensão, que situa em Betânia, havendo que realçar duas indicações de Lucas: a bênção que Jesus dá aos discípulos antes de ir para junto do Pai, bênção que sugere um dom que vem de Deus e que atinge positivamente toda a vida e toda a ação dos discípulos, capacitados para a missão pela força de Deus; e a alegria dos discípulos, alegria que é o grande sinal messiânico e escatológico e que indica o início do mundo novo, pois o projeto salvador e libertador de Deus está em marcha.
O mencionado Padre Laureano Alves chamou a atenção dos participantes na celebração da Missa para o facto de Lucas ter colocado a Ascensão em Betânia, para onde Jesus conduziu os discípulos – Betânia, terra onde estava Maria, Marta e Lázaro, que, ressuscitado por Jesus, serviu de garantia visível de que o Pai glorificaria o Filho e se glorificaria no Filho, amigos de Jesus. Assim, a Ascensão dá-se, não no Calvário, lugar de ignomínia, mas em terra de amigos, de família constituída a partir da Palavra de Jesus e do seguimento do Caminho, Verdade e Vida. Depois, enfatizou o fator da bênção e fez a remissão para a primeira bênção de que fala a Bíblia (vd Gn 1,28): tendo criado o homem e a mulher à sua imagem e semelhança, como coroa de toda a criação, “abençoando-os, Deus disse-lhes: Crescei, multiplicai-vos, enchei e submetei a terra…”. E tem razão o sacerdote, porquanto, sendo a ação de Cristo uma nova criação, segundo a qual o Filho de Deus, desceu para que o homem (todos os homens) se eleve como Ele Se eleva, esta criação mereceu a nova bênção dada por Jesus ao novos promotores da nova humanidade: têm de crescer (ou seja, receber a força do Alto) e multiplicar-se (ir por todo mundo, desde Jerusalém ao confins da Terra, fazendo discípulos em todas as nações). Se a missão de Jesus tem em Jerusalém o ponto de chegada, a missão dos discípulos tem ali o ponto de partida (para os confins).
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Por fim, o trecho da Carta aos Efésios na 2.ª leitura (Ef 1,17-23) aparece na 1.ª parte da carta, que é talvez um dos exemplares duma “carta circular” enviada às igrejas da Ásia, quando Paulo está na prisão (em Roma, provavelmente), através de Tíquico, cerca dos anos 58/60. Veem alguns nela uma síntese da teologia paulina, num momento em que a missão do apóstolo está praticamente terminada na Ásia. O texto em causa integra uma ação de graças, em que Paulo agradece a Deus a fé dos Efésios e a caridade que eles manifestam para com todos os irmãos na fé.
A esta ação de graças, Paulo une uma fervorosa oração a Deus para que os destinatários da carta conheçam “a esperança a que foram chamados” (v. 18). E a prova de que o Pai pode realizar essa esperança, ou seja, conferir aos crentes a vida eterna como herança, é o que ele fez com Jesus: ressuscitou-O e sentou-O à sua direita (v. 20), exaltou-O e deu-Lhe soberania sobre todos os poderes angélicos (Paulo acautela-os da tendência de alguns em dar importância exagerada aos anjos, colocando-os, até, acima de Cristo – cf Cl 1,6). Tal soberania estende-se, à Igreja – o corpo do qual Cristo é a cabeça, o que é deveras significativo para afastar a Igreja da autorreferência. De facto, a ideia de que a comunidade cristã é corpoo corpo de Cristo – formado por muitos membros, já aparece nas grandes cartas, acentuando-se sobretudo a relação dos vários membros do corpo com a Cabeça e entre si (cf Rm 12,3-8; 1Cor 6,12-20;10,16-17;12,12-27), mas nas cartas do cativeiro, Paulo retoma a noção de corpo de Cristo para vincar a relação existente entre a comunidade e Cristo e entre os diversos membros da comunidade.
Neste texto, em concreto, há dois conceitos significativos que definem a relação entre Cristo e a Igreja: o de cabeça (em grego, “kephalê”) e o de plenitude (em grego, “pleroma”). Chamar a Cristo cabeça da Igreja quer dizer que os dois formam uma comunidade indissolúvel e que há entre eles comunhão total de vida e destino; que Jesus é o centro à volta do qual o corpo se articula, a partir do qual e em direção ao qual o corpo cresce, se orienta e constrói (é a origem e o fim desse corpo); e que a Igreja/corpo se submete à obediência a Cristo/cabeça: só de Cristo a Igreja depende e só a Ele deve obediência. E chamar à Igreja a plenitude de Cristo quer dizer que nela reside a totalidade de Cristo, sendo ela o recetáculo (a habitação) onde Cristo Se torna presente para o mundo: é através desse corpo (em que todos são livres e interdependentes) onde reside que Jesus continua todos os dias a realizar o projeto de salvação em prol dos homens. A partir desse corpo, Cristo enche o mundo e atrai a Si o universo, até que Cristo “seja tudo em todos” (v. 23).
Por isso, este corpo (a crescer e a multiplicar-se) tem a bênção e o acompanhamento de Jesus, uma bênção concomitante ao gesto “eucarístico” e pelo qual os discípulos reconheciam o Senhor!
2019.06.02 – Louro de carvalho

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