O mistério na vida dos crentes
Celebrar
a solenidade da Santíssima Trindade é meditar e festejar o mistério central da
fé e da vida cristã. A Santíssima Trindade identifica-nos como cristãos. Somos
os únicos crentes que adoram um Deus único em três pessoas, um Deus que não é
solitário nem quer a solidão, mas que é solidário, é família, é comunidade e se
inquieta por que os seus filhos o sejam entre si e com Ele. Desde que batizados
em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a Santíssima Trindade passou a
ocupar o primeiro lugar nas nossas vidas e ações.
Assim, não
se concebe um cristão que não inicie ou não termine o dia sem fazer o sinal da
cruz, invocando a Trindade Santa. Ao iniciar e ao encerrar qualquer oração,
pública ou particular, as pessoas invocam a Santíssima Trindade. Muita gente inicia
e termina o trabalho sob o olhar de Deus Uno e Trino.
Na verdade, a
Bíblia usa claramente as palavras ‘Pai, Filho e Espírito Santo’ e, de cada uma,
diz sempre o Pai, o Filho, o Espírito Santo. Foi assim que Jesus ordenou aos
Apóstolos: ‘Ide por todo o mundo e
batizai em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo’. Não se diz ‘nos
nomes’ deles, porque não há mais que o Deus verdadeiro e único Pai omnipotente,
Filho unigénito e Espírito Santo (cf CIC/Catecismo da Igreja Católica, n.
233). Na sua vida diária, a Igreja usa, umas vezes,
os termos bíblicos, outras, os da reflexão dos concílios. Na Missa da Santíssima
Trindade, usam-se quase sempre os termos bíblicos, exceto no prefácio, em que
se usam os termos dos concílios. Os santos usam as palavras da Bíblia – Pai,
Filho e Espírito Santo. Foi assim que rezou o Anjo de Portugal em Fátima, em
1916, e nós rezamos no rosário e no Sinal da cruz. Na nossa vida pessoal,
começamos a professar a fé e a unir-nos à Santíssima Trindade no dia do
Batismo. E será em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo que o sacerdote
aspergirá o nosso corpo antes da sepultura. As orações da Missa e dos
Sacramentos concluem-se invocando, por meio de Jesus, a Santíssima Trindade. Começamos
e terminamos o dia fazendo o Sinal da Cruz porque vimos e vamos para a
Santíssima Trindade como a fonte e fim de toda a vida. A oração dos salmos
termina sempre pela invocação da Santíssima Trindade. E cada mistério do
rosário conclui-se invocando a Santíssima Trindade.
***
A doutrina – mistério e apelo a vida nova
Embora
tão invocada, nem sempre os cristãos têm consciência do que é a Santíssima
Trindade, verificação que perdura desde os tempos de Santo Agostinho, que em “As Confissões” exclama:
“Quem
poderá compreender a Trindade omnipotente? E quem não fala dela, ainda que não
a compreenda? É rara a pessoa que, ao falar da Santíssima Trindade, saiba o que
diz. Discute-se, debate-se, mas ninguém é capaz de contemplar esta visão sem
paz interior”.
Segundo
o CCIC (Compêndio do
Catecismo da Igreja Católica), este é um mistério inacessível à pura razão humana – mistério revelado
por Jesus Cristo e que é a fonte de todos os outros mistérios da fé cristã (cf CCIC n. 45). A Igreja explica que o Pai, o
Filho e o Espírito Santo não são três princípios das criaturas, mas um só
princípio (Concílio de
Florença em 1442). No
entanto, cada pessoa divina realiza a obra comum segundo a sua propriedade
pessoal (CIC n. 258).
No
decurso dos 1.os séculos, a Igreja preocupou-se com formular a fé
trinitária para
aprofundar a sua inteligência e para a defender contra os ataques que a
deformavam. Para a formulação do dogma da Trindade reuniu concílios e teve de
empregar palavras da cultura humana, tais como ‘substância’, ‘pessoa’ ou
‘hipóstase’, ‘relação’, ‘essência’ e ‘natureza’ – linguagem técnica, que foi
necessária então e ainda hoje é útil. O termo ‘Trindade’ não foi usado por
Jesus, nem aparece na Bíblia, como não aparecem a palavras ‘Missa’,
‘substância’ e ‘natureza’. São termos criados para tentar explicar o conceito
de Deus triuno. A palavra ‘pessoa’ não tem aqui o significado das suas formas físicas
da pessoa humana. Temos de nos libertar dessa carga física para podermos dizer
que em Deus há três pessoas sem ser um grupo como nós.
Para os
Padres, o termo ‘Theologia’ designa o mistério da vida íntima de Deus-Trindade
e o termo ‘Oikonomia’ designa as obras de Deus pelas quais Ele Se revela e
comunica a sua vida (É a
‘Oikonomia’ que nos revela a ‘Theologia’; mas é a ‘Theologia’ que esclarece
toda a ‘Oikonomia’) (vd CIC n. 236).
No
Ocidente, Tertuliano, do século II, foi o primeiro a usar a palavra “Trindade”
para se referir a Deus em três Pessoas. No Oriente, esta tarefa coube a Teófilo
de Antioquia, do século II.
A
doutrina da Santíssima Trindade foi explicitada nos 1.os séculos e definida no Concílio de Niceia (325 d.C.), onde ficou esclarecida a divindade de Jesus; e no
Concílio de Constantinopla (381 d.C.), quando
se defendeu a divindade do Espírito Santo. O objetivo da Igreja foi aprofundar
a fé e defendê-la de três erros que então eram propagados: o modalismo, o
subordinacionismo e o triteísmo. Pelo modalismo, alguns teólogos (Noeto e Praxeias, no século II e
Sabélio, no século III)
reduziam as três Pessoas da Santíssima Trindade a um modo de expressão do único
e mesmo Deus; pelo subordinacionismo, o Bispo Paulo de Samósata e o Padre Ario
de Alexandria. Eles ensinavam que o Pai é o único Deus, enquanto o Filho e o
Espírito Santo são criaturas subordinadas ao Pai; e pelo triteísmo, ensinava-se
que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três substâncias independentes e
autónomas, ou seja, a Trindade são três deuses.
Como diz Santo Atanásio, a nossa fé é esta: cremos na
Trindade santa e perfeita, que é o Pai, o Filho e o Espírito Santo; não há
n’Ela mistura de nenhum elemento estranho; não Se compõe de Criador e criatura;
mas toda Ela é criadora e eficaz; uma só é a sua natureza, uma só é a sua
eficiência e ação. O Pai cria todas as coisas por meio do Verbo, no Espírito
Santo; e deste modo se afirma a unidade da Santíssima Trindade. Por isso, se
proclama na Igreja um só Deus, que está acima de tudo, atua em tudo e
está em tudo. Está acima de tudo como Pai, princípio e
origem; atua em tudo por meio do Verbo; e está em tudo no Espírito Santo.
O apóstolo São Paulo, escrevendo aos coríntios acerca
dos dons espirituais, tudo refere a Deus Pai como princípio de todas as coisas,
dizendo:
“Há
diversidade de dons espirituais, mas o Espírito é o mesmo; há diversidade de
ministérios, mas o Senhor é o mesmo; e há diversidade de operações, mas é o
mesmo Deus que realiza tudo em todos”.
Os dons que o Espírito distribui a cada um vêm do Pai
pelo Verbo. De facto, tudo o que é do Pai é do Filho; e as graças concedidas
pelo Filho, no Espírito Santo, são dons do Pai. E, quando o Espírito está em
nós, em nós está o Verbo de quem recebemos o Espírito; e com o Verbo está o
Pai. Assim se realiza o que diz a Escritura: O Pai e Eu viremos a ele e
faremos nele a nossa morada. De facto, onde está a luz, está o
esplendor da luz; e onde está o esplendor, está a sua graça eficiente e
esplendorosa. – Homiliário patrístico (Cartas de
Santo Atanásio, bispo – Século IV).
A
Bíblia não pretende explicar o mistério íntimo de Deus, até porque isso seria impossível
para nós, mas revela o que Deus fez por nós e é, nessa ação salvadora, que
percebemos a existência de cada uma das pessoas divinas (cf CIC n. 236): Deus é chamado Pai enquanto
criador do mundo e enquanto acompanha a história do mundo com uma ternura que
podemos dizer de pai e de mãe (cf CIC nn. 238 e 239); Jesus revelou que Deus é Pai num sentido íntimo e inédito: é Pai de
Jesus num sentido único, e Jesus é Filho de modo único (cf CIC n. 240); antes da sua Páscoa, Jesus anuncia
o envio de um ‘outro’ Consolador, o Espírito, como outra pessoa divina em
relação ao Pai e ao Filho. E esse envio, após a glorificação de Jesus, revela
em plenitude o mistério da Santíssima Trindade (cf CIC n 240-244).
Leonardo
Boff lembra que a Santíssima Trindade deve ser considerada a partir da dimensão
mistérica e da dimensão sacramental. Face à dimensão mistérica, a melhor atitude
é o silêncio e a adoração; e face à dimensão sacramental cabe a celebração e o
esforço para assumir o que ela significa para a nossa vida de fé e de relação
com Deus, com os outros e o mundo. Neste ultimo sentido, o Papa Francisco tem
feito apropriadas pregações. Em 2018, na hora do Angelus, disse:
“Hoje,
domingo depois de Pentecostes, celebramos a Solenidade da Santíssima Trindade.
Uma solenidade para contemplar e louvar o mistério do Deus de Jesus Cristo, que
é um na comunhão de três Pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Para
celebrar com sempre novo espanto Deus-Amor, que nos oferece sua vida de graça e
nos pede para espalhá-lo no mundo. (…). Portanto, a Solenidade da Santíssima
Trindade faz-nos contemplar o mistério de Deus que incessantemente cria, redime
e santifica, sempre com amor e por amor e a toda criatura que o acolhe, dá a
oportunidade de refletir um raio de sua beleza, bondade e verdade.”.
Em 2017,
na hora do Angelus, na Solenidade da
Santíssima Trindade a mensagem foi:
“Deus
é uma ‘família’ de três Pessoas que se amam tanto a ponto de formar uma só.
Esta ‘família divina’ não está fechada em si mesma, mas está aberta,
comunica-se na criação e na história. Entrou no mundo dos homens para chamar
todos a fazer parte dela. O horizonte trinitário de comunhão envolve-nos a todos
e estimula-nos a viver no amor e na partilha fraterna, na certeza de que onde
há amor, há Deus.”.
***
Esta
solenidade e os outros domingos
Todos os
domingos são, de algum modo, dias da Santíssima Trindade, pois neles celebramos
a obra do Pai Criador, do Filho Redentor e do Espírito Santo Santificador. Nos
sete dias da criação, o 1.º foi o da criação da luz, a marca esplendorosa de
Deus (como se viu no
Tabor); a ressurreição
deu-se no 1.º dia da semana; e, no 1.º dia, desceu o Espírito Santo sobre os
Apóstolos. O 1.º dia da semana é, pois, o dia da obra de todas e cada uma das
pessoas divinas.
Este
domingo está colocado depois das festas da Páscoa, o que nos ajuda a perceber que pela
vida de Jesus Cristo chegámos ao conhecimento da Santíssima Trindade. Não
conhecemos este mistério pela filosofia, mas só pela pessoa e obra de Jesus. Por
outro lado, o facto de esta solenidade estar no recomeço do Tempo Comum ajuda a
compreender que a Trindade Santa é a fonte primeira e o fim último de toda a
história do mundo e da nossa vida humana.
Sem os factos
históricos passados com Jesus e as palavras da Anunciação do Anjo, do Batismo
no Jordão, da Transfiguração no Tabor, da última Ceia, da ordem final de Jesus
de batizar todos os povos ‘em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo’, não
conheceríamos o mistério íntimo de Deus: teríamos ficado na fé em um só Deus,
sem mais explicações, como sucede com os Judeus e os Muçulmanos. Este mistério
é especificamente cristão e define a nossa fé, pois as palavras de Jesus,
mantendo a fé num só Deus, deram-nos a conhecer o mistério íntimo de Deus.
Dizemos que Deus é comunidade, que é família, que “há em Deus três pessoas”, o
que é um apelo a vivermos em comunidade e um desafio a que entremos na
comunidade divina.
***
A
Liturgia da Solenidade no Ano C
Esta Solenidade
não é um convite a decifrar a mistério escondido num Deus em três pessoas, mas
é um convite a contemplar o Deus amor, família, comunidade e que criou os homens
para os fazer comungar neste seu mistério. A 1.ª leitura (Pr 8,22-31), marcada por
um tom poético, carregado de imagens e simbolismo, sugere a contemplação
do Deus criador, cuja bondade e amor se manifestam aos homens na beleza e
harmonia das obras criadas (Cristo é a ‘sabedoria’
de Deus e o revelador do amor do Pai). A 2.ª leitura (Rm
5,1-5)
convida à contemplação do Deus que nos ama e que nos ‘justifica’ de forma gratuita
e incondicional. É pelo Filho que o dom do Pai se derrama sobre nós e nos
oferece a vida em plenitude. E o Evangelho (Jo 16,12-15) convoca-nos
para contemplar o amor do Pai, que Se manifesta na doação e entrega do Filho e
acompanha a nossa caminhada histórica através do Espírito Santo. A meta final
desta história de amor é a nossa inserção na comunhão com o Deus-amor, o Deus-família,
o Deus-comunidade.
Dos provérbios (“mashal”), ditos, sentenças e máximas (do Livro dos
Provérbios), resultantes da reflexão e
experiência dos sábios (israelitas e alguns não israelitas), empenhados em definir as regras de viver bem para
ser feliz, alguns podem ser do século X a. C., mas outros são mais recentes.
O texto da 1.ª leitura da Solenidade integra um bloco
de instruções e advertências que vai de Pr 1,8 a 9,6. É a parte mais recente do
livro (não é
anterior ao séc. IV ou III a. C.). E o
capítulo 8 (donde é retirado o trecho em referência) apresenta um discurso da própria Sabedoria como sendo ela uma pessoa. É o
artifício pelo qual o autor dá força e intensidade dramática à exortação que
lança a acolher e amar a Sabedoria. Na 1.ª parte do discurso (vv. 1-11), o autor apresenta os púlpitos donde a Sabedoria vai
pregar (cume das
montanhas, encruzilhada dos caminhos, entradas das cidades, umbrais das casas) e os alocutários do discurso (todos os
homens), apelando à escuta das palavras
que vai enunciar; na 2.ª parte (vv. 12-21), vêm as
credenciais da Sabedoria (reflexão, ciência, conselho, equidade, força) e o prémio reservado aos que a acolhem; e, na 3.ª
parte (vv. 8,22-31), o autor sagrado reflete sobre a origem da Sabedoria
e a sua função no plano de Deus.
Antes de mais, a sabedoria tem origem em Deus. O hagiógrafo
põe na boca da Sabedoria o termo hebraico “qânâny” (“gerou-me”) para exprimir a responsabilidade de Deus na origem e
génese da sabedoria (v. 22). É a primeira
das obras de Deus: antes de serem lançadas as estruturas do cosmos, já existia a
Sabedoria (vv. 24-29); tinha o
papel de arquiteto (“amon”) interveniente
na criação, ou seja, era o assistente ativo de Deus na obra criadora. Ou, como
referem certas versões que liam como “amun” – “criança” – ali estava a
Sabedoria como uma criança feliz que brinca e se deleita no meio da obra criada
(Também o
arquiteto se deleita com a obra que concebe e gere!). Seja como for, a Sabedoria afirma o seu interesse e
deleite em estar “junto dos filhos dos homens” (v. 31), pelo que se lhes dirige com o objetivo de “ser para os homens” e
desempenhar um papel em prol dos homens, tornando-os sábios e felizes.
Para se entender esse papel, anote-se que a perícopa
está marcada por três palavras, que aparecem no princípio, no meio e no fim:
“Jahwéh” (v. 22), “sabedoria” (“eu” – v. 30) e “homens” (v. 31). Então o objetivo do hagiógrafo, ao dizer que a sabedoria tem origem em
Jahwéh, está em íntima relação com Deus e se destina aos homens, é sugerir que ela
é capaz de pôr os homens em contacto com Deus e criar relação e reciprocidade.
Através da realidade criada que viu nascer, a Sabedoria espevita a inteligência
dos homens, leva-os a Deus, atrai-os para Ele. A Sabedoria, presente desde
sempre na criação, revela aos homens a grandeza e amor de Deus.
A tradição judaica identifica Sabedoria com a Torah. Os
autores do Novo Testamento, bem conhecedores dos livros sapienciais, atribuem a
Jesus algumas das caraterísticas que este texto atribui à Sabedoria: Paulo
chama a Jesus sabedoria e sabedoria de Deus (cf 1Cor 1,24.30); considera que Jesus, como a sabedoria de Pr 8,
existe antes de todas as coisas e desempenhou um papel privilegiado na criação
do mundo (cf Cl 1,16-17); e o
“prólogo” do 4.º Evangelho atribui ao
Lógos (Jesus) as marcas da sabedoria criadora de
Pr 8 (diz que
Jesus é anterior à criação – cf Jo 1,1) e que Ele
deu existência a todas as obras (cf Jo 1,3; credo de Niceia). Os Padres da Igreja, por seu turno, veem nesta
sabedoria, pré-criada e anterior à restante obra de Deus, traços de Jesus
Cristo ou do Espírito Santo, só faltando dar o passo para a conceção de
Sabedoria incriada!
***
A terminar a sua 3.ª viagem missionária (ano 57 ou 58), e preparando-se para partir para Jerusalém, Paulo
escreve aos romanos. Com efeito, terminada a sua missão no oriente (cf Rm
15,19-20), queria levar o Evangelho ao
ocidente. E aproveita a carta para contactar a comunidade de Roma e dar-lhe
conta, bem como a todos os crentes os problemas que o ocupavam (sobretudo o
da unidade, problema bem presente na comunidade de Roma, afetada por alguma
dificuldade de relacionamento entre judeo-cristãos e pagano-cristãos).
Paulo sublinha que o Evangelho é a força que congrega
e salva todo o crente – judeu, grego ou romano –, sem distinção. E, vincando
que todos os homens vivem imersos no pecado (cf Rm 1,18-3,20), acentua que é a “justiça de Deus” que dá vida a
todos sem distinção (cf Rm 3,1-5,11). No texto
da 2.ª leitura da Solenidade, Paulo, partindo da ideia de que todos os crentes
(judeus,
gregos e romanos) foram
justificados pela fé, enaltece a ação de Deus, por Cristo e pelo Espírito, no
sentido de “justificar” todo o homem.
Na linguagem bíblica, a justiça, mais do que um
conceito jurídico, representa um conceito relacional. Define a fidelidade a si
próprio, ao seu modo de ser e aos compromissos assumidos no âmbito duma relação.
Nestes termos, se Jahwéh Se manifestou na história do Povo como o Deus da
bondade, misericórdia e amor, falar da sua justiça não quer dizer que Ele
aplique os mecanismos da Lei se o homem infringir as normas; significa, antes,
que a bondade, a misericórdia, o amor, próprios do divino ser, se manifestam sempre
e em todas as demais circunstâncias, ainda que o homem tenha procedido incorretamente.
Ora, o Apóstolo, ao falar do homem justificado, refere-se ao homem pecador que,
por iniciativa do amor e da misericórdia de Deus, recebe um juízo de graça que
o liberta do pecado e lhe dá, gratuitamente, acesso à salvação, sendo-lhe
apenas pedido que acolha, humilde e confiadamente, uma graça que não depende
dos seus méritos e se entregue todo nas mãos de Deus. Este homem, objeto da
graça de Deus, é nova criatura (cf Gl 6,15): é o homem
ressuscitado para a vida (cf Rm 6,3-11), vive do
Espírito (cf Rm 8,9.14), é filho
de Deus e coerdeiro com Cristo (cf Rm 8,17; Gl 4,6-7), de quem se tornou irmão, é potencialmente o espelho da Trindade Santa na
vida pessoal e de relação.
Este acesso gratuito à salvação, que é dom de Deus,
tem os seus frutos, em que sobressaem a paz, a esperança e o amor. A paz não se
entende no sentido usual – psicológico e social – de tranquilidade e
serenidade, mas no sentido teológico semita de relação com Deus, de plenitude
de bens, pois Deus é a fonte de todo o bem. A esperança é o dom que nos leva a
superar as dificuldades e a dureza da caminhada, apontando para o futuro
glorioso da vida em plenitude. Não é o otimismo fácil e evasivo, mas a certeza
de que as forças da morte não terão a última palavra e que as forças da vida
triunfarão. E o amor de que fala Paulo é o amor de Deus ao homem (vv. 5-8), pois o cristão é alguém a quem Deus ama e, como
prova desse amor que age em nós pelo Espírito, está Jesus de Nazaré que Deus “Se
entregou à morte por nós quando ainda éramos pecadores”. Tudo o que enche a
vida do crente e lhe dá sentido é dom do Pai que, por Jesus, mostra o seu amor
e que, pelo Espírito, derrama esse amor continuamente sobre nós.
***
No contexto da última ceia e do subsequente discurso
de despedida que antecede a “hora” de Jesus, depois de constituir a comunidade
do amor e do serviço (cf Jo 13,1-17) e
apresentar o mandamento fundamental que dá corpo à vida dessa comunidade (cf Jo 15,9-17), Jesus define a missão da comunidade no mundo: testemunhar acerca de Jesus, com a ajuda do
Espírito (cf Jo 15,26-27). No
entanto, adverte que o caminho do testemunho deparará com a oposição decidida
da religião estabelecida e dos poderes letais que dominam o mundo (cf Jo
16,1-4a). Em contrapartida, os discípulos
contarão com o Espírito Santo, que os ajudará e lhes dará segurança e coragem na
perseguição (cf Jo 16,8-11). Mais: a
comunidade peregrina pela história encontrar-se-á diante de circunstâncias
históricas novas, ante as quais terá de fazer opções. E aí verá a presença do
Espírito, que ajudará a responder novos desafios e, como Paráclito que é, ajudará
a interpretar as circunstâncias à luz da mensagem de Jesus (cf Jo
16,12-15), como interpretará junto do Pai a
nossa linguagem e junto de nós a linguagem de Deus.
Na perícopa evangélica da Solenidade o tema fulcral tem
a ver com a ajuda do Espírito aos discípulos em marcha pelo mundo e pela
história. Diz Jesus que há muitas outras coisas que eles não podem compreender
de momento (v. 12). Porém, o Espírito da verdade que os
guiará para a verdade comunicar-lhes-á tudo o que ouvir a Jesus e interpretará
o que está para vir (v. 13). Isto não
quer dizer que Jesus não tenha revelado tudo o que havia para revelar ou que a
sua proposta de salvação tenha ficado incompleta. As palavras de Jesus acerca
da ação do Espírito referem-se ao tempo da existência cristã no mundo, o que
vai da morte de Jesus à “parusia”. Assim, os discípulos, no tempo da Igreja,
continuarão a captar, na fé, a Palavra de Jesus e a guiar a vida por ela
através do Espírito da verdade, que fará com que a proposta de Cristo continue
a ecoar todos os dias na vida da comunidade e no coração de cada crente.
Ademais, o Espírito ensinar-nos-á a entender a nova ordem que se segue à cruz e
à ressurreição e a discernir, a partir das circunstâncias concretas em que a
vida nos coloca, como proceder para continuar fiel a Jesus.
De facto, o Espírito não apresenta nova doutrina, fará,
antes, com que a Palavra de Jesus seja a referência da comunidade e que esta
saiba aplicar a cada circunstância a proposta de Jesus. Para tanto, o Espírito vai
buscar ao próprio Jesus (“receberá do que é meu e vo-lo anunciará” – v. 14) essa verdade que transmite continuamente aos
discípulos. Nestes termos, Jesus continuará presente e em comunhão com os
discípulos, como prometeu, comunicando-lhes a sua vida e amor. Assim, a função
do Espírito é realizar a comunhão entre Jesus e os discípulos em marcha pela
história. Tal como é o abraço de comunhão entre Pai e Filho, é o abraço de
comunhão entre Jesus e os discípulos e o disseminador do Lógos Spermaticós, de modo que, segundo Justino, o Verbo de Deus está,
como que em semente, inculcado nos corações de todas as pessoas tornando-as a
todas “membros”, ao menos potenciais, da única Igreja de Cristo.
A última expressão deste texto (v. 15) assinala a comunhão entre o Pai e o Filho, que atesta
a unidade entre o plano salvador do Pai, espelhado nas palavras de Jesus e
tornado realidade na vida da Igreja, por ação do Espírito, que nos torna
espelhos da Trindade Santa, vivendo na lucidez e na força evangélicas e
construindo comunidade incrementadora e difusiva do bem.
***
Por fim, a reciprocidade Deus-Homem
Como recorda Santo Agostinho, o nosso coração é um
coração inquieto que não se satisfaz com nada menos do que Deus e não descansa
enquanto não repousar em Deus. Contudo, como afirmou Bento XVI na homilia da
Epifania, de 2012: Também o coração de Deus vive inquieto
relativamente ao homem e não descansa enquanto não nos tiver encontrado.
2019.06.16 – Louro de
Carvalho
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