quarta-feira, 26 de junho de 2019

Procuradores iniciaram nova greve e SMMP endureceu o tom


Os magistrados do Ministério Público (MP) iniciaram hoje, dia 26, mais uma greve de 3 dias e basicamente pelos mesmos motivos por que protestaram em modo de greve em fevereiro passado. E, segundo os dados lançados para a praça, poderá ocorrer uma situação de crise entre Justiça e políticos. Isto, porque o PSD, com Rui Rio à cabeça, e o PS, com António Costa, apresentaram, na Assembleia da República, propostas de alteração ao Estatuto do MP que são altamente criticadas pelos procuradores por alegadamente beliscarem a autonomia do MP.
A primeira greve dos procuradores ocorreu em fevereiro, há menos de seis meses, mas, desta feita, o tom do SMMP (Sindicato dos Magistrados do Ministério Público), que representa a esmagadora maioria dos cerca de 1.600 procuradores no ativo, endureceu. Com efeito, as propostas do PS e do PSD estavam prestes a ir a debate, esta semana, na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (Foram hoje debatidas). É certo que há uma proposta do Governo, que o SMMP considera equilibrada, que parece estar a ser ignorada pela bancada parlamentar socialista, e outra do PCP, também aceitável por introduzir apenas alterações de pormenor.
Entretanto, à boleia do relatório do Conselho da Europa, que acusa Portugal de não ter dado cumprimento às indicações para prevenir a corrupção, tendo sido o país-membro que ficou no fundo do ranking, o Presidente da República veio a terreiro na véspera do início da greve para se colocar ao lado dos magistrados do MP, ligando telefonicamente à Procuradora-Geral Lucília Gago a manifestar-lhe apoio incondicional na luta contra a corrupção, matéria que, para Marcelo, é inseparável da autonomia do MP.
Ora, se as propostas do PS e do PSD fossem aprovadas, ficaria iminente a demissão de vários responsáveis hierárquicos do MP, a começar pela Procuradora-Geral, que deixou o aviso já em fevereiro, o que abriria uma grave crise institucional entre o poder judicial e o poder político.
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Esta greve do MP tem dimensão nacional no 1.º dia, mas será exclusivamente para os distritos judiciais do Porto e Coimbra, no 2.º dia, e apenas para os distritos judiciais de Lisboa e Évora, no 3.º dia.
Os procuradores rejeitam liminarmente as propostas do PS e do PSD para a alteração do Estatuto do MP por considerarem que põem em causa a autonomia do MP.
Na verdade, segundo o SMMP, a proposta socialista colocaria ponto final no paralelismo entre a magistratura judicial e a do MP, não tanto pelo que está escrito na proposta, mas pelas omissões que deixa. Um dos aspetos prende-se com o facto de não ficar claro na proposta original que as atualizações salariais decididas para os juízes também seriam aplicadas ao MP e com a criação de um “regime de direitos e deveres substancialmente diferente” para as duas magistraturas.
Além disso, a proposta socialista inclui mais dois pontos polémicos: a restrição da autonomia financeira da Procuradoria-Geral da República, por exemplo, fazendo depender de autorização do Governo eventuais perícias no âmbito do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal), departamento que investiga os casos mais complexos de corrupção e terrorismo; e a obrigação de o MP justificar e fundamentar qualquer pedido de documentação que faça a uma entidade privada. Neste segundo caso, um procurador que eventualmente precise de aceder a provas documentais que esteja nas mãos de privados, teria de ‘abrir o jogo’ e explicar a razão por que necessita de tal documentação, o que poderia colocar em causa o segredo de justiça e, consequentemente, o êxito da investigação.
Ora, do meu ponto de vista, estas duas medidas, mais do que ferirem a autonomia do MP, constituem devassa prévia e iníqua do processo investigatório. No entanto, interrogo-me sobre o porquê de tanta preocupação em sede legislativa, quando parece não existir, pelo menos epidermicamente, no caso dos megaprocessos de forte impacto público. 
No entanto, as alterações que têm suscitado mais debate político têm a ver com a alteração da composição do CSMP (Conselho Superior do Ministério Público). Ora, o PSD pretende acabar com a maioria de procuradores que existe neste momento no CSMP, ou seja, de uma composição que abrange 11 magistrados do MP (uns nomeados pela procuradora-geral e outros eleitos pelos seus pares) contra sete membros nomeados pelo poder político (cinco pela Assembleia da República e dois pelo Ministro da Justiça), o PSD pretende passar para uma maioria de designados pelo poder político. Em termos práticos, o PSD acabaria com a presença dos quatro procuradores distritais no CSMP, aumentaria o número de designados pela Assembleia da República de cinco para sete e manteria os dois membros que o Ministro da Justiça pode nomear. Assim, o CSMP teria nove membros nomeados pelo poder político contra sete procuradores.
Por sua vez, o PS manteria a maioria dos magistrados, mas reduziria o número de procuradores que pode ser eleito pelos seus pares: de seis passariam para quatro.
Como é sabido, o CSMP é o órgão de gestão e disciplina da magistratura do MP, órgão que, liderado por inerência pelo Procurador-Geral da República, em nome e nos termos do princípio do autogoverno das magistraturas, determina a movimentação anual dos magistrados do MP, aprovando ou recusando pedidos de transferência, nomeia os procuradores para todos os cargos hierárquicos do MP, começando pelos procuradores-distritais, passando pelo diretor do DCIAP e pelos responsáveis dos departamentos de investigação e ação penal distritais e acabando nos coordenadores do MP nas diferentes comarcas e jurisdições. A pari, tem a responsabilidade disciplinar, determinando as medidas disciplinares a aplicar, mediante proposta do corpo de inspetores judiciais que escrutinam a ação dos procuradores, podendo, contudo, modificar qualquer sanção ou arquivamento proposto por esses inspetores. E, como é o CSMP quem, na prática, manda no MP, avultava o receio dos procuradores se a composição deste órgão superior passasse a ser dominada pelo poder político.
Por outro lado, há uma outra autonomia a preservar. É que o CSMP não tem participação direta na gestão dos processos criminais, nomeadamente os de corrupção, sendo que os magistrados do MP titulares dos processos têm autonomia definida pela lei para o exercício da ação penal, de modo que os seus superiores hierárquicos (coordenadores ou diretores do DCIAP ou do DIAP) não podem ordenar que um determinado procurador decida de um modo ou de outro. Não obstante, estes podem avocar o processo e redistribui-lo a um magistrado da sua confiança. Todavia, estas normas poderiam mudar, pois o PSD propõe que o CSMP, com maioria clara de representantes do poder político, possa apreciar matérias atinentes à atuação do MP, nomeadamente quando está em causa o respeito pela Constituição da República e os direitos fundamentais nela consagrados. Ora, tal formulação, por demasiado aberta, poderia induzir o CSMP a discutir processos concretos por estarem “em causa os direitos fundamentais” dos cidadãos.
Além disso, um CSMP assim constituído poderia pretender usar de todo o poder de nomeação que detém sobre a hierarquia do MP, o que, em última análise, poderia conduzir a um controlo político desta magistratura.
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Como foi referido, há outras propostas para lá das do PE e do PSD: uma proposta do PCP, que apresenta alterações de pormenor; e outra do Governo, que é vista como equilibrada pelos procuradores. Assim, o SMMP não as rejeita.
Porém, há diferenças significativas entre a proposta do Grupo Parlamentar do PS e a do Governo, o que o SMMP tem explorado politicamente. A proposta do Governo, subscrita e presentada pela Ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, que não altera a composição do CSMP nem mexe no paralelismo entre as duas magistraturas, é considerada a proposta de lei “mais equilibrada e que melhor respeita a Constituição”.
É de anotar que Francisca Van Dunem, procuradora-geral adjunta recentemente promovida a juíza conselheira, não se pronunciou publicamente sobre esta divergência entre o Governo e o PS. Contudo, a Ministra, usando da prerrogativa legal do Ministro da Justiça, fez questão de ir à reunião de 18 de junho do CSMP, convocado de urgência pela Procuradora-Geral Lucília Gago para debater as propostas do PS e do PSD para um novo Estatuto do MP, para assegurar que o fim do paralelismo entre as magistraturas não se iria verificar. E, nessa reunião, o CSMP deliberou por unanimidade “manifestar” de forma “veemente a defesa da manutenção e inerente consagração expressa, no texto legal, do princípio do paralelismo entre as magistraturas, em toda a sua extensão”.
Entretanto, o grupo parlamentar socialista apresentou um aditamento de última hora à sua proposta original, onde se clarifica que vão os procuradores gozar dos mesmos benefícios salariais que foram atribuídos aos juízes conselheiros com o fim de o teto salarial ser determinado pelo vencimento do Presidente da República. Assim e à semelhança dos juízes, os procuradores, nomeadamente os procuradores-gerais adjuntos (categoria equivalente à de juiz conselheiro), terão aumentos salariais significativos.
Porém, o SMMP liderado por António Ventinhas decidiu pela manutenção da greve, aduzindo que o essencial é o ataque à autonomia do MP e não as questões salariais.
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Foi neste contexto de discussão da matéria da autonomia do MP e da prioridade do combate à corrupção, que o Conselho da Europa considera ineficaz em Portugal, a par da falta de mecanismos de prevenção eficiente da mesma corrupção, que o Presidente da República decidiu intervir para dar um apoio de peso poucas horas antes do início da greve. Ligou à Procuradora-Geral da República e fez questão de dizer publicamente porque o fez: para, como declarou à agência Lusa, “manifestar um apoio incondicional e, mais do que isso, um incentivo, quanto ao combate à corrupção”. E também disse “como via com apreço a crescente expressão desse combate visível nos últimos tempos por parte da atividade do Ministério Público, atividade essa visível ao longo dos últimos anos e que não tem parado de se manifestar”. Ademais, o Presidente considera que “é impossível separar” o combate à corrupção (“é, de facto, uma prioridade nacional” – disse) “do respeito estrito da autonomia” do MP. E acrescentou:
A Constituição consagra-o e importa em todas as circunstâncias ter presente o respeito da autonomia do Ministério Público, nomeadamente no seu estatuto legal. Incluindo o domínio do paralelismo que esse estatuto consagra já neste momento relativamente ao plano funcional, quer da magistratura, quer dos magistrados.”.
Além de coincidirem com as principais reivindicações do SMMP, as declarações de Marcelo podem ser encaradas como anúncio de um pré-veto presidencial à iminente aprovação daquelas alterações legislativas por parte de socialistas e de socialdemocratas. Já não é a primeira vez que o faz neste contexto, pois, já em dezembro de 2018, aquando da marcação da greve de três dias que se concretizou no final de fevereiro, o Presidente afirmou que tinha como “inoportuna” a revisão do Estatuto do MP desejada pelo PS e pelo PSD, que, na ocasião, para o deputado Jorge Lacão (PS) constituiu, na sua interpretação, “um veto por antecipação”.
Obviamente, o combate à corrupção está intimamente conexo com a autonomia do MP. No entanto, do meu ponto de vista, é menos grave mexer na composição do CSMP (por si não afeta a autonomia), nos termos propostos pelo PSD e como o PS tem defendido para órgãos superiores noutras instituições, no âmbito da direção estratégica participada (em que os respetivos profissionais têm de estar em minoria), do que o CSMP bulir com a autonomia doa procuradores titulares dos processos, mexer com a autonomia financeira da PGR ou exigir-se a autorização do Governo, mediante pedido justificado fundamentado, para o procurador aceder a documentação que esteja em poder de entidades privadas. Estes três últimos itens é que ferem a verdadeira autonomia do MP, não a composição do CSMP, pois os procuradores manter-se-iam em maioria.
Não se estranha já, por mais crítica que seja, a intervenção presidencial durante um processo legislativo, uma vez que a isso nos habituou, como não é de admirar, por estranha que pareça, essa da insinuação de veto antecipado. Marcelo é Marcelo e as atuais circunstâncias políticas não o levam a mudar.  
Obviamente que é exagerada a eventual, mas prometida, posição da Procuradora-Geral Lucília Gago de ter ameaçado em dezembro de 2018 que se demitiria, se fosse aprovada a proposta do PSD de alterar a atual maioria de magistrados do CSMP. Recorde-se o que disse então:
Qualquer alteração relativa à composição do Conselho Superior do Ministério Público que afete o seu atual desenho legal – designadamente apontando para uma maioria de membros não magistrados – tem associada grave violação do princípio da autonomia”.
Ademais, tal alteração representaria uma “radical alteração dos pressupostos que determinaram” a aceitação que fez do cargo de Procuradora-Geral da República por convite do Presidente da República. E aqui se faz luz para compreender o telefonema de Marcelo a Lucília Gago.
Também a revista Sábado noticiou que o procurador João Marques Vidal, diretor do DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal) de Coimbra, e João Rato, diretor do DIAP do Porto, apresentariam a demissão, se as propostas de alteração do PS e do PSD fossem avante, e que outros responsáveis hierárquicos do MP poderiam seguir-lhes passos, o que, a concretizar-se, poderia provocar uma grave crise institucional entre o poder político e o poder judicial.
Estas posições, mais do que a autonomia do MP, revelam sobretudo a sua índole corporativista. Ninguém pode mexer com o estatuto dos cerca de 1600 procuradores, cujo estatuto não é de independência, mas de autonomia. Eles estão junto dos tribunais em representação do Estado para zelar pelo interesse público. Não são irresponsáveis face às suas propostas e decisões. Querem estar em paralelo com as magistraturas judiciais, mas não aceitam como os advogados a condição de parte face ao tribunal. Aí, a própria configuração da sala de audiências os coloca um pouco acima das partes e ao lado dos juízes. E também o nosso ordenamento jurídico confere aos advogados um estatuto singular de liberdades responsável.
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Enfim, os magistrados do MP podem ficar descansados: o poder legislativo acabou por ceder às suas pressões, rejeitando – sabe-se porquê – as propostas do PS e do PSD que lhes estragavam o caldo corporativista. Podem fazer cessar a greve. São poucos, mas bons!...  
2019.06.26 – Louro de Carvalho   

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