Estamos a resvalar para terreno perigoso porque
movediço quando os decisores políticos e/ou empresariais, face à sua
incapacidade, desígnios de domínio ou escopo oportunista, culpam os outros,
nomeadamente utentes ou clientes.
Já não é a primeira vez que isto sucede.
Recordo-me de um Ministro da Saúde que atirava com as culpas pela
sobrefrequência dos centros de saúde para cima dos utentes, nomeadamente
aqueles que iam ao médico por tudo e por nada ou os que abusavam da toma de
medicamentos. Esse governante dava o exemplo duma senhora que tomava todos os
dias uma aspirina (aspirina 100). Ora, como ela não sabia
explicar-lhe que lhe fora prescrita para evitar coagulação, dizia que era para
não lhe vir a doer a cabeça. E o responsável pela pasta da Saúde ridicularizou-a
na TV, obviamente sem dizer o nome. Ninguém exigiu ao Governo a medicina
preventiva. Foram os académicos e os políticos que, por motivos plausíveis de
saúde pública, promoveram a prevenção e aconselharam as consultas mesmo sem
haver doença. Porém, quando deram conta de que isso implicava mais pessoal e
mais dinheiro, fizeram a campanha ao contrário: contra os utentes. As consultas
em centro de saúde eram rarefeitas e os utentes iam para a porta às tantas da
madrugada fazer vez. Depois, vieram as críticas às falsas urgências. Facilmente
se entupiam os serviços. E o clamor era contra os doentes que não eram
urgentes, como se o doente, salvo honrosas exceções, fosse capaz de avaliar a
gravidade da sua doença. É óbvio que sempre houve abusos, mas estes não podem
tolher o uso. E só os abusadores devem ser penalizados.
Não foi a sobrefrequência das unidades do SNS
uma das razões que ditou a instituição das taxas moderadoras? Como se as
pessoas tivessem um enorme prazer em ir ao Hospital ou estarem lá internadas…
Enfim, o Estado prefere gastar o dinheiro público a salvar bancos em vez de o
gastar na saúde dos cidadãos, que já estão sobrecarregados com os impostos e contribuições.
E estes têm enorme culpa, não por frequentarem centros de saúde e hospitais,
mas por se absterem nas eleições, por votarem sempre em A ou em B ou em A+B –
ficando sem margem para exigir aos partidos e aos governos transparência e
promoção do interesse público.
Também para justificar os cortes salariais e
sociais no tempo da troika, a grande razão era uma culpa imputada aos clientes,
aos cidadãos: habituaram-se a viver acima das suas possibilidades, o que
desgraçou a nação. E o pior é que os cidadãos acreditaram, não souberam gritar
que foram induzidos a cooperar alegremente com o desígnio devorador dos
sistemas financeiros, das empresas-fantoche e não souberam apontar o dedo às
grandes negociatas políticas e económico-financeiras, com que tanta gente se
governou, como se vê pela paisagem humana que desfila perante as diversas
comissões de inquérito em vez de ser apanhada pela Justiça, que teima em
funcionar muito devagar, mais devagar do que um falecido bispo que chegava a
demorar mais de três horas na missa da visita pastoral, sendo “relativamente
breve”.
***
Agora, o Governo, em vez de se culpar a si
mesmo e aos seus antecessores, próximos e remotos, pelo descalabro no
funcionamento de alguns serviços públicos, atira com as culpas para os utentes.
É verdade. Sua Excelência a Secretária de Estado da Justiça considera que os utentes
das lojas do cidadão que vão para a porta dos serviços antes de estes abrirem
são uma das razões dos atrasos nos cartões de cidadão.
Com efeito, não é fácil fazer o CC (Cartão de Cidadão), renová-lo ou tratar de qualquer assunto relacionado
com este documento. Os problemas de atendimento nos registos em todo o
país são bem conhecidos, assim como as enormes filas que se formam mesmo antes
de os serviços abrirem. Perante este cenário, Anabela Pedroso, aponta o dedo ao
comportamento dos utentes.
Para a insigne governante, os problemas de atendimento nas lojas do cidadão
justificam-se, por um lado, com o aumento da procura por causa das novas regras
da lei da nacionalidade e do Brexit, mas por outro, com o facto de os utentes das lojas do cidadão por irem para a
porta dos serviços quando estes ainda estão encerrados. Assim, pode
ler-se na carta remetida à Assembleia da Republica na passada semana pela
Secretária de Estado:
“Não se pode deixar de dar nota [de] que os
atrasos também são o resultado de um fenómeno próprio e específico da procura
que tem a ver com o facto de a generalidade dos cidadãos optar,
sistematicamente, por se dirigir aos mesmos serviços, à mesma hora – antes da
abertura do atendimento ao público”.
Esquece a governante que é uma questão de sobrevivência face a uma negação
dos serviços públicos. A culpa é da administração e do órgão de topo que a
superintende – o Governo –, que devem alocar muito mais meios humanos,
materiais, financeiros e logísticos ao serviço dos cidadãos. Assim, temos lojas
não do cidadão, mas lojas só de alguns cidadãos.
O “fenómeno” – assim o reporta Anabela Pedroso – é mais notório nos
serviços de Lisboa, nomeadamente no Campus da Justiça (Parque das
Nações), na Conservatória do Registo Civil
de Lisboa (Picoas) e nas lojas do cidadão das
Laranjeiras e de Marvila. O balcão do Campus da Justiça tem registado cerca de
200 cidadãos só para pedido de CC, “muito antes do início do horário de
atendimento ao público, o que encerra imediatamente a entrega de senhas aquando
da abertura de portas”, diz a Secretária de Estado, “fenómeno que não ocorria no ano transato”.
É lá admissível que às 10 horas da manhã estejam esgotadas 200 senhas para
uma valência e não haja mais? É óbvio que os funcionários não podem
multiplicar-se, mas podem multiplicar-se funcionários. E não se pode dar azo a
que o utente tenha de se deslocar mais que uma vez, e sem a certeza de êxito, para
obter um serviço, nem a ter de comparecer às tantas da madrugada.
***
Se mudarmos de agulha e nos virarmos para banco
e outras empresas, a situação não é famosa.
Sobre empresas do Estado ou em que tenha
participação, basta recordar as carruagens que estão obsoletas e inutilizáveis,
os atrasos e as supressões de comboios e autocarros, a degradação da via
férrea, a retirada de bancos de metro, autocarro e comboio para transportar
mais passageiros, a situação da TAP (simultaneamente
com prejuízos e prémios a alguns trabalhadores).
Da banca é notória a notícia de que, ao mesmo tempo que vai deixar
de pagar juros abaixo de um euro pelas poupanças, a CGD (Caixa
Geral de Depósitos) cortou as taxas de muitos depósitos. Sendo que, para garantir um
retorno nestes produtos, o cliente terá de aplicar pelo menos 6.667 euros, pois
o banco público, a partir de 1 de agosto, só pagar juros em poupanças superiores a 6.666 euros. Já são magríssimas as taxas
que a CGD paga pelos depósitos,
mas, a partir de agora, prepara-se para corte e mais cortes – isto depois de
ter por várias vezes aumentado as comissões. Além do que já foi dito sobre
juros, pura e simplesmente, deixará de pagar o juro no final de cada semestre
sempre que o juro for inferior a um euro.
O banco liderado por Paulo Macedo está a avisar os clientes de que vai
baixar o juro semestral das contas Caixapoupança, Caixapoupança
Reformado, Emigrante, Superior e Caixa Projecto de 0,05% para
0,015% (corte de 70%) a partir do dia 1 de agosto.
Estas regras serão transversais a toda a oferta de contas de depósitos e contas
poupança da CGD. Assim, com o corte de juros à vista, as contas Caixapoupança,
Caixapoupança Reformado, Emigrante, Superior e Caixa Projecto exigirão um
“pé-de-meia” superior a 6.666 euros para que se possa extrair algum rendimento.
Dito de outro modo: são precisos, pelo menos, 6.667 euros na
conta para haver pagamento do juro semestral por parte da Caixa.
A redução dos juros dos depósitos não é novidade no panorama português, nem
no europeu, sobretudo tendo em conta o ambiente de baixos juros promovido
pelo BCE (Banco Central Europeu), que mostrou disponibilidade, nas últimas semanas, para baixar ainda mais
as taxas, a fim de promover o crescimento económico. E fonte oficial da CGD
explicou:
“A menor capacidade de
remuneração de depósitos e poupanças pelo setor bancário assenta na necessidade
de ajustamentos progressivos de modo a assegurar a sustentabilidade do setor,
no atual contexto”.
E lembrou que, no caso do banco público, se “tem vindo a reforçar a
proposta de valor para os clientes detentores de Contas Caixa, (Azul,
Platina, L, M, etc.) bem como a
criar oportunidades para que os clientes realizem uma maior diversificação das
suas carteiras, através do investimento em seguros financeiros, fundos ou PPR”.
Dentro do que é a oferta da CGD, um simples depósito online “DP Netpr@zo”
não renderá juros se tiver menos de 2.000 euros com a nova regra que entra em
vigor em agosto. Isto tendo em conta que a taxa bruta anual nesta aplicação é
de 0,050%. Ainda assim, é melhor do que a oferecida no Depósito a Prazo
Variável, cuja remuneração está indexada à média da Euribor a 12 meses. Tendo
em conta que esta taxa está em “terreno” negativo, a remuneração será de 0%,
levando o banco a apresentar a mesma remuneração praticada já há algum tempo
pelo BPI.
***
Perante esta notícia, a DECO (Associação
de Defesa dos Consumidores) já tomou posição crítica, dizendo que que se trata duma decisão
“imoral” porque é o banco público a penalizar o pequeno aforrador e porque abre
a porta para que outros bancos sigam o mesmo caminho.
A este respeito, o economista da DECO António Ribeiro considerou:
“Não é correto o que a Caixa está a fazer.
Isto significa que todos os depósitos com prazo de um ano e abaixo de 6.670
euros não vão render qualquer juro, penalizando os pequenos
aforradores. É por isso é que é imoral. O banco público devia incentivar
as poupanças.”.
E o mesmo economista, notando que a DECO tem feito pressão junto das
autoridades para que se promovam as poupanças através da redução dos impostos
dos depósitos e a criação de novos produtos de dívida pública para o retalho,
declarou:
“A Caixa abriu a porta, agora
vamos ver como vão atuar os outros bancos”.
***
Paulo Moutinho escreveu no ECO um artigo intitulado “Agora
é a vez de a Caixa ficar a dever”, em que discorre sobre o modo como a CGD,
queixando-se dos “milhares de milhões que
lhe ficaram a dever”, se prepara agora “para fazer o mesmo, retendo, euro a
euro, os juros das poupanças dos seus clientes”.
Mas há uma grande diferença: os responsáveis pelos milhares
de milhões em dívida não são os clientes que agora vão sofrer os cortes, cuja
vida é escrutinada até ao ínfimo pormenor para a concessão de um crédito à
habitação e a quem se exige hipoteca e eventualmente fiadores, para a concessão
de crédito ao consumo – são os grandes devedores, a quem tudo foi facilitado
sem garantias pessoais, patrimoniais ou fiduciárias, e os decisores, que agora
não se lembram de nada ou que alegam que se tratava de bons negócio, mas que
infelizmente correram mal.
Os cidadãos, os contribuintes, os eleitores, os clientes são
culpados, pois só pagaram e não bufaram. Continuaram a votar em quem os
explorou, não exigiram transparência e luta pelo bem comum. Não levantaram a
sua voz crítica, não se associaram, não se manifestaram, a não ser quando estavam
em jogo os seus interesses diretos e não tanto quando estava em causa o bem
comum, o interesse público, a salvação da respublica.
E as consequências são como no dizer de Moutinho:
“Foram
perdas de milhares de milhões de euros para as quais agora se procura encontrar
o culpado, ou os culpados, de um ‘buraco’ que todos os portugueses foram
chamados a tapar. Por uns quantos ‘empresários’ que ficaram
a dever, milhões de contribuintes ficaram a ‘arder’ com uma fatura que pesou, e
ainda pesa, nas carteiras de todos nós.”.
Por
isso mesmo, Paulo Macedo prometeu devolver toda a ajuda que recebeu para manter
de pé o banco público e a primeira prova de que vai cumprir são os 200 milhões que
“se prepara para entregar ao Estado”. Seria plausível
se isso não resultasse da esmifração das receitas que os clientes alocam ao
banco. De facto, pouco a pouco, a CGD seguiu no encalço dos outros bancos, os
privados. E verifica Moutinho:
“Sobe
uma comissão, outra e mais outra… E, quando já subiu todas, volta a subi-las mais uma vez. Isto ao mesmo
tempo que fomenta o crédito com ‘decisão rápida’, mas despreza as poupanças num
país em que o hábito de o fazer é praticamente inexistente. A taxa de poupança
de 4,5% do rendimento disponível é prova disso.”.
Não sendo “o banco com as comissões mais caras”,
nunca se preocupou “em dar remunerações atrativas aos depósitos que os
portugueses lhe confiam”. Por outro lado, a CGD usa e abusa do estatuto de banco
do Estado; e o abuso, agora, concretiza-se numa baixa maior dos juros das aplicações a prazo e no luxo da
não remuneração a quem tem menos dinheiro e que de boa-fé lhe tem confiado a
pretensa ninharia das suas poupanças, “muitas delas suadas”, que
iriam render uns magros cêntimos. Pagam os pequenos os custos dos grandes.
Ou, como dizia o Padre António Vieira, um peixe grande come muitíssimos peixes
pequenos. Imagine-se agora o que farão muitos peixes grandes. Se fossem os
peixes pequeninos a comer um peixe grande, ainda se compreenderia: era mal, mas
era menos mal.
Como diz
Moutinho, “o banco que mais clientes tem
vai seguir o remédio de Mário Centeno, cativando dinheiro que não é seu
procurando, assim, apresentar, tal como o Ministro das Finanças, um excedente
no final do ano para depois voltar a fazer o brilharete de dar dividendos”.
É deslealdade que não ilustra a imagem do banco público nem a “confiança que se
quer que os portugueses tenham no setor financeiro, vital para que os bancos
possam fazer o seu negócio: guardar dinheiro, fomentar as poupanças, conceder
crédito e patrocinar bons investimentos” – observa o editor. A CGD alegará que
a política monetária do BCE obriga a medidas como esta de não pagar juros
abaixo do euro; os bancos veem-se a braços com juros em mínimos históricos e
com a hipótese de baixarem mais. Porém, quando subirem os juros, o banco estatal dará um desconto nos juros do
crédito a habitação? Será, antes como o que sucede com o barril de petróleo. Sobe
o preço do barril e os combustíveis sobem desmesuradamente. Baixa o preço do barril,
mas o preço do combustível costuma teimar em manter-se e, se desce, desce muito
pouco. Costa dirá que e a vida, mas será preciso dizer que é a pouca vergonha.
A CGD (como outros bancos) tem o cliente
preso pelo crédito à habitação, sendo que a CGD foi criada para rendibilizar a
poupança do pequeno cliente, nomeadamente o que era funcionário do Estado, e
chegou a ser o instrumento executório da política financeira e económica do
Estado. Tem, assim, responsabilidades acrescidas no seu histórico e, por isso,
no desenho do futuro dos portugueses. Se culpa cliente, que faça abater a culpa
sobre o grande devedor e sobre os que o criaram ou apoiaram. Quando não, é tão
iníqua como os governos que a tutelam.
De resto, reestruturar fechando balcões,
despedindo pessoal, aumentando comissões e deixando de pagar juros qualquer um
faria sem precisar de ganhar mais que o Primeiro-Ministro.
2019.06.25 –
Louro de Carvalho
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