Não foi a 1.ª vez que as comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das
Comunidades decorreram no interior, nem mesmo em Portalegre. Cada um dos
antecessores de Marcelo as levou quatro vezes a cidades do interior. E
Portalegre teve-as em 1978 (há 41 anos).
Dizer que as
cerimónias de então não retiraram a cidade e o distrito do lento apagamento e
da resistência à distância física e política, cujos efeitos temeu o Presidente
da República no seu discurso, é esquecer que é importante uma cerimónia como
ato simbólico e quiçá ponto de partida para algo mais. Mas não traz a solução
para os problemas.
Na linha do
simbolismo inerente ao conceito de “território espiritual”, Marcelo quis inovar
e imprimiu nova formatação a estas comemorações repartindo os atos oficiais por
si presididos por uma cidade do território nacional físico e por outra no
estrangeiro onde vivem portugueses. Assim, em 2016, foi em Lisboa e Paris, em 2017
no Porto e no Rio de Janeiro e São Paulo, em 2018 entre Ponta Delgada e as
cidades de Boston, Providence e New Bedford, na costa leste dos Estados Unidos
e, este ano, entre Portalegre e a Cidade da Praia e o Mindelo, em Cabo Verde.
Em
Portalegre, as cerimónias, repartidas por dois dias (9 e 10) constaram de: cerimónia do içar da bandeira,
atividades militares e visita a uma exposição militar; sessão solene em que
proferiram discursos o presidente das comemorações, João Miguel Tavares,
portalegrense e colunista do Público
e o Presidente da República, que condecorou algumas entidades (singulares e
coletivas), com destaque para a atribuição da
medalha de ouro de serviços distintos a cada um dos estandartes das primeiras 4
Forças Nacionais Destacadas que estiveram, entre 17 de janeiro de 2017 e 11 de
março de 2019, na República Centro-Africana em missão ao serviço das Nações
Unidas; parada militar com revista às tropas pelo seu comandante supremo; e
imponente desfile militar. E é de anotar que, pela 1.ª vez, compareceram os
antigos combatentes, que o Presidente Marcelo fez questão de cumprimentar
individualmente.
Assim, em Portalegre, na presença do Presidente
de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, que preside atualmente à CPLP (Comunidade
de Países de Língua Portuguesa), houve um
desdobramento do “território espiritual”, não só pela presença de 21 mil
portugueses naquele país, mas pela comunidade da língua, pois, como assinalou
Marcelo, “uma Pátria irmã de muitas
outras pátrias que, connosco, partilham uma comunidade de língua e de pessoas”.
E hoje, dia 11, as comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das comunidades
concluem na cidade do Mindelo, depois de terem decorrido, na noite do dia 10, na
Cidade da Praia, com a presença do Presidente português e do seu homólogo
cabo-verdiano, do Primeiro-Ministro António Costa, dos ministros da Defesa
Nacional e da Educação, respetivamente João Gomes Cravinho e Tiago Brandão
Rodrigues, e do Secretário de Estado das Comunidades, José Luís Carneiro.
***
O discurso presidencial, como é natural, presta-se para várias
interpretações e colagens. Uns veem críticas, outros veem aspetos de
mobilização e incremento e outros tentam a colagem.
Em Portalegre, no balanço do deve e
haver de ser português, Marcelo exaltou os sucessos, mas destacou a
perenidade dos problemas: antigos e novos.
Ora, Marcelo estabeleceu um balanço de deve e haver da condição de ser
português e exortou a uma Pátria sem complexos pelo passado, na construção do
presente e na afirmação do futuro, num conjunto de vários “portugais” muito
para lá das fronteiras geográficas, mas recordou fracassos coletivos, erros
antigos ou novos, e falou de exigência ética na vida pública.
Ora, ao ouvirem falar de “insatisfações, cansaços,
indignações, impaciências, corrupções, falências da justiça, exigências
constantes de maior seriedade ou ética na vida pública”, viram o dedo apontado
a episódios de pouca clareza quanto ao desempenho de instituições, como a
supervisão do BdP (Banco de Portugal) na CGD (Caixa Geral
de Depósitos), em
análise em duas CPI (comissões parlamentares de inquérito), novas acusações de corrupção no poder autárquico, pagamento
de prémios a trabalhadores de topo na TAP, entre outros.
É certo que se trata duma referência breve, mas
politicamente significativa e abrangente num contexto de exaltação de virtudes,
com menção explícita das falências da justiça e da exigência de ética política.
Mas o Presidente sublinhou que “Portugal
é muito mais do que fragilidades ou erros”, mas que “não podemos nem devemos omitir ou apagar os nossos fracassos coletivos,
os nossos erros antigos ou novos”, já que permanecem com a ameaça de se
tornarem constantes.
A seguir, veio o reconhecimento da excelência que inclui
a vitória na Liga das Nações:
“É bom que se saiba que não é só um
secretário-geral das Nações Unidas [António Guterres], ou em presidente do
Eurogrupo [Mário Centeno], ou um diretor-geral de uma organização internacional
[António Vitorino, na Organização Internacional para as Migrações cabe neste
elenco], ou uma equipa vencedora num certame desportivo com maior notoriedade
internacional (…) São todos os dias, cá dentro e lá fora, líderes sociais,
científicos, académicos, culturais ou empresariais, muitos dos quais nós nem
sabemos quem são até que chega a notícia de que um português ganhou um prémio
de melhor investigador, ou ainda que uma portuguesa foi considerada a melhor
enfermeira num país estrangeiro, ou um artista foi celebrado em outro
continente.”.
O facto de Guterres, Centeno e Vitorino serem da
família socialista não impediu o Presidente de os enumerar – o que, após a sua preocupação
em conferência na FLAD (Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento) com a crise da direita, vista nas recentes eleições europeias,
terá provocado novo sobressalto na sua direita de origem, a juntar às
reações suscitadas pela dita reflexão na FLAD. E, numa referência à vitória de Portugal
na Liga das Nações de Futebol, disse:
“Eu sei que um complexo muito nacional, que
é um dos traços do nosso pessimismo, não aprecia, por considerar primário ou
exorbitante, o que tenho repetido e que ainda no domingo à noite, no Porto, o
fiz: Quando somos muito bons, somos dos melhores dos melhores”.
Considerando que a diáspora e o valor da emigração estão sempre presentes, na linha
da comunidade de pertença que somos vincou:
“Não há muitas nações no mundo assim.
Resistimos à perda da independência, resistimos às crises económicas,
financeiras, políticas e sociais, resistimos aos erros e fragilidades, e não só
sobrevivemos como queremos apostar no futuro”.
Porém, o Chefe de Estado não escamoteou a dimensão da realidade da faixa
territorial que recebe as comemorações. Esta zona interior de Portugal, sofre dos
males do afastamento do litoral: desertificação
humana e envelhecimento populacional,
fragilidade económica e desemprego, anemia empresarial e futuro
incerto. E observou o Presidente orador:
“São cidadãos que não renunciam a ser
cidadãos de primeira, tão de primeira como aqueles que nasceram, viveram e
morreram nas metrópoles onde mais depressa têm a sua sede os poderes públicos.
(…) Um 10 de Junho em Portalegre não acaba no dia 10 de Junho, tem de ser mais
do que um rito de passagem, mais do que uma conveniência de ocasião, tem de ser
um compromisso de futuro para com esta terra e para com esta gente.”.
Na sequência do que desenvolvera João Miguel Tavares, alertou
para o facto de “a falta de esperança e a desigualdade” poderem criar “uma
geração de adultos desencantados, incapazes de acreditar num país
meritocrático”. Em contraponto e em síntese, vaticinou:
“Uma só
Pátria na riqueza dos portugais que as nossas comunidades criam lá fora e na
diversidade dos portugais que a formam cá dentro”.
E, ao invés das desigualdades dos diversos “portugais”,
disse querer que sejamos
“Uma plataforma entre culturas,
civilizações, oceanos e continentes, que esse futuro preserve a identidade
nacional, a nossa abertura económica aos outros, mas também nos obrigue a uma
maior capacidade para anteciparmos as mudanças, para reforçarmos o orgulho de
sermos portugueses, a começar nas crianças, a continuar nos jovens e a terminar
em todos os portugueses, que têm direito a um futuro melhor”.
***
Entre as várias reações ao discurso presidencial,
destacam-se a do líder parlamentar e presidente do PS e a do líder parlamentar
do PSD. Carlos César considerou o discurso “especialmente mobilizador
no que toca àquilo que há de bom no nosso país” e “especialmente mobilizador
para aqueles que acham que o nosso país precisa de melhorar” e defendeu que o
Estado deve “ser capaz de responder a fenómenos como a emergência da corrupção”
ou “abuso de poder”.
Por seu turno, Fernando Negrão classificou as palavras
de Marcelo “como um discurso de mobilização dos portugueses”, a “chamar os
portugueses à vida de cidadão e à vida política, chamar os portugueses à
construção de Portugal”, salientando que o discurso aponta:
“Aqueles que são responsáveis,
designadamente os políticos, têm responsabilidades que não devem exercer com
tanta limitação, devem ir mais longe, ser mais ousados, sendo mais ousados na
defesa dos interesses de Portugal e dos portugueses”.
O primeiro, omitindo a vertente censória, puxou a barriga
para a frente e fixou-se no futuro e no “deve ser”, ao passo que o segundo se
remirou mais no tom crítico, aduzindo que é isto o que o seu partido pensa e
tem dito.
Para o líder parlamentar do PS, é “muito importante”
que haja a “consciência do valor” que o país tem, “daquilo que tem gerado
confiança no nosso próprio país, com os cidadãos, com os investidores”, mas alertou
para a necessidade de se “ter consciência do “que tem corrido menos bem”. E,
quanto à referência presidencial à, sublinhou:
“Para fenómenos como a corrupção, só a
democracia lhes dá resposta, porque em ditadura eles não são reconhecidos e,
muitas vezes, nem sequer conhecidos”.
Afirmou que esta é a razão pela qual o Estado deve ser
“capaz de responder a fenómenos como a
emergência da corrupção, a manifestações de abuso de poder ou as falhas que os
próprios serviços públicos também ainda têm”. Igualmente salientou a
capacidade de resposta dos políticos enquanto gerador de confiança dizendo:
“Desde logo cumprindo aquilo com que nos
comprometemos quando, a diversos títulos, os políticos se candidatam para o
exercício do poder. É muito importante que a melhoria da confiança dos
portugueses nos seus eleitos ocorra.”.
E frisou que “é também muito importante” que os
políticos “melhorem a satisfação dos seus compromissos”.
Por sua vez, o líder parlamentar do PSD sustentou que
o abandono do interior “é um problema central da política portuguesa nos
últimos anos”, pois o que vem acontecendo no interior “é o reflexo de que o interior
do país tem sido abandonado”. E vincou a necessidade de “criar políticas para o
interior”, de incorporar “maior preocupação com o interior” e de acabar a “diferença”,
o “fosso” existente “entre o litoral e o interior”.
***
Quanto ao discurso do presidente das comemorações, que antecedeu a
intervenção do Chefe de Estado, é de sublinhar a luta dos portugueses pela
liberdade e pela democracia, pela integração europeia e pela moeda única, nas também
a incerteza de qual a luta que se trava hoje.
Personalizando a sua intervenção, falou da sua relação com Portalegre, a
terra do seu nascimento e vivência até à Universidade, dizendo que não voltou como
tantos, mas que se sente em casa. Não sabendo “o que é viver sem liberdade”, confessa
dever “ao Portugal democrático e ao
Estado português” boa parte do que é, pois, filho de funcionários públicos,
fez “o ensino básico e o secundário numa escola pública” e licenciou-se “numa
universidade pública”, pelo que Portugal não falhou com ele, antes permitiu que
“um simples estudante de uma cidade do interior, sem qualquer ligação à capital
e às suas elites, fosse subindo aos poucos na vida e chegasse até aqui”. O seu “crescimento acompanhou o crescimento
da democracia portuguesa”; “o país progredia”, e ele “via-o progredir”. Refere que
a sua família, como sucedia com tantas, “investia
parte do salário a comprar livros e enciclopédias que chegavam pelo correio, a
prestações”, livros que “representavam
o conhecimento e a educação que as famílias ambicionavam para os seus filhos”.
E disse:
“A geração dos meus pais
sacrificou-se para que os filhos tivessem o que eles nunca tiveram. Mas é
possível que eles tenham tido aquilo que mais nos tem faltado nos últimos vinte
anos: um objetivo claro para as suas vidas e um caminho para trilhar na
sociedade portuguesa.”.
Porém, enquanto naqueles tempos se sabia por que se
lutava. Hoje a incerteza é a mãe das angústias. Não é que sejamos diferentes,
mas a coisa pública tornou-se distante dos cidadãos. E interrogou-se como se
chegou a isto, que revela o desinteresse pela política como consequência dos
nossos próprios fracassos:
“A integração na Europa do euro não correu
como queríamos. Construímos autoestradas onde não passam carros. Traçámos
planos grandiosos que nunca se cumpriram. Afundámo-nos em dívida. (…) Três
vezes – três vezes já – tivemos de pedir auxílio externo em 45 anos de
democracia. (…) Criámos comissões de
inquérito para encontrar responsáveis. Descobrimos um país amnésico, cheio de
gente que não sabe de nada, que não viu nada, que não ouviu nada. Percebemos
que a corrupção é um problema real, grave, disseminado, que a Justiça é lenta a
responder-lhe e que a classe política não se tem empenhado o suficiente a
enfrentá-la.”.
E verificou como são trágicos os efeitos da corrupção:
“A corrupção não é apenas um assalto ao
dinheiro que é de todos nós – é colocar cada jovem de Portalegre, de Viseu, de
Bragança, mais longe do seu sonho”.
Falou da falta de esperança, no refúgio na emigração,
no cinismo dos poderes, na desvalorização do mérito, nas desigualdades.
Ao invés do Presidente da República, que diz
frequentemente que os portugueses, quando querem, são os melhores do mundo,
opinou não haver “razão para os portugueses serem melhores do que os finlandeses,
os nepaleses ou os quenianos”, mas assegurou que “também não precisamos de ser
melhores”, pois, “para quem ainda acredita numa ideia de comunidade, os
portugueses são aqueles que estão ao nosso lado”. E criticou:
“Partilhamos uma língua, um país com uma
estabilidade de séculos, sem divisões, e é uma pena que por vezes pareçamos
cansados de nós próprios. Tivemos História a mais; agora temos História a
menos. Passámos da exaltação heroica e primária do nosso passado, no tempo do
Estado Novo, para acabarmos com receio de usar a palavra ‘Descobrimentos’.”.
Referindo que Luís de Camões já cantava os seus amores
por uma escrava de pele negra, “tão bela e tão negra que até a neve desejava
mudar de cor” (um dos melhores textos antirracistas, ditado pela paixão, que leu na
íntegra), sustentou que “precisamos de um
pouco menos de Lusíadas e de um pouco mais de lírica camoniana”,
ou seja, “menos exaltação patriótica e mais paixão por cada ser humano” –
fórmula “adequada aos tempos que vivemos”. E, convicto de que “sozinhos somos
ninguém”, reportou-se à pergunta bíblica caímica “Acaso sou eu o guarda do meu irmão?”, com a “única resposta numa
sociedade decente: “Sim, és.” Com efeito,
num país algo desencantado, “o grande desafio está em tentar desenvolver um
sentimento de pertença que vá além dos prodígios do futebol” e induza o culto
da solidariedade para todos independentemente do lugar, etnia ou condição social
e económica em que se enquadrem. E disse que aos “políticos que dirigem
Portugal e representam os seus cidadãos, compete-lhes contribuir para esse
esforço, propondo-nos um caminho inteligível e justo”.
***
Enfim, um belo dia do povo, da política, das forças
armadas, da lusofonia!
2019.06.11 – Louro de Carvalho
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