terça-feira, 11 de junho de 2019

No 10 de Junho, do discurso crítico ao discurso mobilizador



Não foi a 1.ª vez que as comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades decorreram no interior, nem mesmo em Portalegre. Cada um dos antecessores de Marcelo as levou quatro vezes a cidades do interior. E Portalegre teve-as em 1978 (há 41 anos).
Dizer que as cerimónias de então não retiraram a cidade e o distrito do lento apagamento e da resistência à distância física e política, cujos efeitos temeu o Presidente da República no seu discurso, é esquecer que é importante uma cerimónia como ato simbólico e quiçá ponto de partida para algo mais. Mas não traz a solução para os problemas.   
Na linha do simbolismo inerente ao conceito de “território espiritual”, Marcelo quis inovar e imprimiu nova formatação a estas comemorações repartindo os atos oficiais por si presididos por uma cidade do território nacional físico e por outra no estrangeiro onde vivem portugueses. Assim, em 2016, foi em Lisboa e Paris, em 2017 no Porto e no Rio de Janeiro e São Paulo, em 2018 entre Ponta Delgada e as cidades de Boston, Providence e New Bedford, na costa leste dos Estados Unidos e, este ano, entre Portalegre e a Cidade da Praia e o Mindelo, em Cabo Verde.
Em Portalegre, as cerimónias, repartidas por dois dias (9 e 10) constaram de: cerimónia do içar da bandeira, atividades militares e visita a uma exposição militar; sessão solene em que proferiram discursos o presidente das comemorações, João Miguel Tavares, portalegrense e colunista do Público e o Presidente da República, que condecorou algumas entidades (singulares e coletivas), com destaque para a atribuição da medalha de ouro de serviços distintos a cada um dos estandartes das primeiras 4 Forças Nacionais Destacadas que estiveram, entre 17 de janeiro de 2017 e 11 de março de 2019, na República Centro-Africana em missão ao serviço das Nações Unidas; parada militar com revista às tropas pelo seu comandante supremo; e imponente desfile militar. E é de anotar que, pela 1.ª vez, compareceram os antigos combatentes, que o Presidente Marcelo fez questão de cumprimentar individualmente.  
Assim, em Portalegre, na presença do Presidente de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, que preside atualmente à CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa), houve um desdobramento do “território espiritual”, não só pela presença de 21 mil portugueses naquele país, mas pela comunidade da língua, pois, como assinalou Marcelo, “uma Pátria irmã de muitas outras pátrias que, connosco, partilham uma comunidade de língua e de pessoas”. E hoje, dia 11, as comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das comunidades concluem na cidade do Mindelo, depois de terem decorrido, na noite do dia 10, na Cidade da Praia, com a presença do Presidente português e do seu homólogo cabo-verdiano, do Primeiro-Ministro António Costa, dos ministros da Defesa Nacional e da Educação, respetivamente João Gomes Cravinho e Tiago Brandão Rodrigues, e do Secretário de Estado das Comunidades, José Luís Carneiro.
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O discurso presidencial, como é natural, presta-se para várias interpretações e colagens. Uns veem críticas, outros veem aspetos de mobilização e incremento e outros tentam a colagem.
Em Portalegre, no balanço do deve e haver de ser português, Marcelo exaltou os sucessos, mas destacou a perenidade dos problemas: antigos e novos.
Ora, Marcelo estabeleceu um balanço de deve e haver da condição de ser português e exortou a uma Pátria sem complexos pelo passado, na construção do presente e na afirmação do futuro, num conjunto de vários “portugais” muito para lá das fronteiras geográficas, mas recordou fracassos coletivos, erros antigos ou novos, e falou de exigência ética na vida pública.
Ora, ao ouvirem falar de “insatisfações, cansaços, indignações, impaciências, corrupções, falências da justiça, exigências constantes de maior seriedade ou ética na vida pública”, viram o dedo apontado a episódios de pouca clareza quanto ao desempenho de instituições, como a supervisão do BdP (Banco de Portugal) na CGD (Caixa Geral de Depósitos), em análise em duas CPI (comissões parlamentares de inquérito), novas acusações de corrupção no poder autárquico, pagamento de prémios a trabalhadores de topo na TAP, entre outros.
É certo que se trata duma referência breve, mas politicamente significativa e abrangente num contexto de exaltação de virtudes, com menção explícita das falências da justiça e da exigência de ética política. Mas o Presidente sublinhou que “Portugal é muito mais do que fragilidades ou erros”, mas que “não podemos nem devemos omitir ou apagar os nossos fracassos coletivos, os nossos erros antigos ou novos”, já que permanecem com a ameaça de se tornarem constantes.
A seguir, veio o reconhecimento da excelência que inclui a vitória na Liga das Nações:
É bom que se saiba que não é só um secretário-geral das Nações Unidas [António Guterres], ou em presidente do Eurogrupo [Mário Centeno], ou um diretor-geral de uma organização internacional [António Vitorino, na Organização Internacional para as Migrações cabe neste elenco], ou uma equipa vencedora num certame desportivo com maior notoriedade internacional (…) São todos os dias, cá dentro e lá fora, líderes sociais, científicos, académicos, culturais ou empresariais, muitos dos quais nós nem sabemos quem são até que chega a notícia de que um português ganhou um prémio de melhor investigador, ou ainda que uma portuguesa foi considerada a melhor enfermeira num país estrangeiro, ou um artista foi celebrado em outro continente.”.
O facto de Guterres, Centeno e Vitorino serem da família socialista não impediu o Presidente de os enumerar – o que, após a sua preocupação em conferência na FLAD (Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento) com a crise da direita, vista nas recentes eleições europeias, terá provocado novo sobressalto na sua direita de origem, a juntar às reações suscitadas pela dita reflexão na FLAD. E, numa referência à vitória de Portugal na Liga das Nações de Futebol, disse:
Eu sei que um complexo muito nacional, que é um dos traços do nosso pessimismo, não aprecia, por considerar primário ou exorbitante, o que tenho repetido e que ainda no domingo à noite, no Porto, o fiz: Quando somos muito bons, somos dos melhores dos melhores”.
Considerando que a diáspora e o valor da emigração estão sempre presentes, na linha da comunidade de pertença que somos vincou:
Não há muitas nações no mundo assim. Resistimos à perda da independência, resistimos às crises económicas, financeiras, políticas e sociais, resistimos aos erros e fragilidades, e não só sobrevivemos como queremos apostar no futuro”.
Porém, o Chefe de Estado não escamoteou a dimensão da realidade da faixa territorial que recebe as comemorações. Esta zona interior de Portugal, sofre dos males do afastamento do litoral: desertificação humana e envelhecimento populacional, fragilidade económica e desemprego, anemia empresarial e futuro incerto. E observou o Presidente orador:
São cidadãos que não renunciam a ser cidadãos de primeira, tão de primeira como aqueles que nasceram, viveram e morreram nas metrópoles onde mais depressa têm a sua sede os poderes públicos. (…) Um 10 de Junho em Portalegre não acaba no dia 10 de Junho, tem de ser mais do que um rito de passagem, mais do que uma conveniência de ocasião, tem de ser um compromisso de futuro para com esta terra e para com esta gente.”.
Na sequência do que desenvolvera João Miguel Tavares, alertou para o facto de “a falta de esperança e a desigualdade” poderem criar “uma geração de adultos desencantados, incapazes de acreditar num país meritocrático”. Em contraponto e em síntese, vaticinou:
 “Uma só Pátria na riqueza dos portugais que as nossas comunidades criam lá fora e na diversidade dos portugais que a formam cá dentro”.
E, ao invés das desigualdades dos diversos “portugais”, disse querer que sejamos
Uma plataforma entre culturas, civilizações, oceanos e continentes, que esse futuro preserve a identidade nacional, a nossa abertura económica aos outros, mas também nos obrigue a uma maior capacidade para anteciparmos as mudanças, para reforçarmos o orgulho de sermos portugueses, a começar nas crianças, a continuar nos jovens e a terminar em todos os portugueses, que têm direito a um futuro melhor”.
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Entre as várias reações ao discurso presidencial, destacam-se a do líder parlamentar e presidente do PS e a do líder parlamentar do PSD. Carlos César considerou o discurso “especialmente mobilizador no que toca àquilo que há de bom no nosso país” e “especialmente mobilizador para aqueles que acham que o nosso país precisa de melhorar” e defendeu que o Estado deve “ser capaz de responder a fenómenos como a emergência da corrupção” ou “abuso de poder”.
Por seu turno, Fernando Negrão classificou as palavras de Marcelo “como um discurso de mobilização dos portugueses”, a “chamar os portugueses à vida de cidadão e à vida política, chamar os portugueses à construção de Portugal”, salientando que o discurso aponta:
Aqueles que são responsáveis, designadamente os políticos, têm responsabilidades que não devem exercer com tanta limitação, devem ir mais longe, ser mais ousados, sendo mais ousados na defesa dos interesses de Portugal e dos portugueses”.
O primeiro, omitindo a vertente censória, puxou a barriga para a frente e fixou-se no futuro e no “deve ser”, ao passo que o segundo se remirou mais no tom crítico, aduzindo que é isto o que o seu partido pensa e tem dito.
Para o líder parlamentar do PS, é “muito importante” que haja a “consciência do valor” que o país tem, “daquilo que tem gerado confiança no nosso próprio país, com os cidadãos, com os investidores”, mas alertou para a necessidade de se “ter consciência do “que tem corrido menos bem”. E, quanto à referência presidencial à, sublinhou:
Para fenómenos como a corrupção, só a democracia lhes dá resposta, porque em ditadura eles não são reconhecidos e, muitas vezes, nem sequer conhecidos”.
Afirmou que esta é a razão pela qual o Estado deve ser “capaz de responder a fenómenos como a emergência da corrupção, a manifestações de abuso de poder ou as falhas que os próprios serviços públicos também ainda têm”. Igualmente salientou a capacidade de resposta dos políticos enquanto gerador de confiança dizendo:
Desde logo cumprindo aquilo com que nos comprometemos quando, a diversos títulos, os políticos se candidatam para o exercício do poder. É muito importante que a melhoria da confiança dos portugueses nos seus eleitos ocorra.”.
E frisou que “é também muito importante” que os políticos “melhorem a satisfação dos seus compromissos”.
Por sua vez, o líder parlamentar do PSD sustentou que o abandono do interior “é um problema central da política portuguesa nos últimos anos”, pois o que vem acontecendo no interior “é o reflexo de que o interior do país tem sido abandonado”. E vincou a necessidade de “criar políticas para o interior”, de incorporar “maior preocupação com o interior” e de acabar a “diferença”, o “fosso” existente “entre o litoral e o interior”.
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Quanto ao discurso do presidente das comemorações, que antecedeu a intervenção do Chefe de Estado, é de sublinhar a luta dos portugueses pela liberdade e pela democracia, pela integração europeia e pela moeda única, nas também a incerteza de qual a luta que se trava hoje.
Personalizando a sua intervenção, falou da sua relação com Portalegre, a terra do seu nascimento e vivência até à Universidade, dizendo que não voltou como tantos, mas que se sente em casa. Não sabendo “o que é viver sem liberdade”, confessa dever “ao Portugal democrático e ao Estado português” boa parte do que é, pois, filho de funcionários públicos, fez “o ensino básico e o secundário numa escola pública” e licenciou-se “numa universidade pública”, pelo que Portugal não falhou com ele, antes permitiu que “um simples estudante de uma cidade do interior, sem qualquer ligação à capital e às suas elites, fosse subindo aos poucos na vida e chegasse até aqui”. O seu “crescimento acompanhou o crescimento da democracia portuguesa”; “o país progredia”, e ele “via-o progredir”. Refere que a sua família, como sucedia com tantas, “investia parte do salário a comprar livros e enciclopédias que chegavam pelo correio, a prestações”, livros que “representavam o conhecimento e a educação que as famílias ambicionavam para os seus filhos”. E disse:
“A geração dos meus pais sacrificou-se para que os filhos tivessem o que eles nunca tiveram. Mas é possível que eles tenham tido aquilo que mais nos tem faltado nos últimos vinte anos: um objetivo claro para as suas vidas e um caminho para trilhar na sociedade portuguesa.”.
Porém, enquanto naqueles tempos se sabia por que se lutava. Hoje a incerteza é a mãe das angústias. Não é que sejamos diferentes, mas a coisa pública tornou-se distante dos cidadãos. E interrogou-se como se chegou a isto, que revela o desinteresse pela política como consequência dos nossos próprios fracassos:
A integração na Europa do euro não correu como queríamos. Construímos autoestradas onde não passam carros. Traçámos planos grandiosos que nunca se cumpriram. Afundámo-nos em dívida. (…) Três vezes – três vezes já – tivemos de pedir auxílio externo em 45 anos de democracia. (…) Criámos comissões de inquérito para encontrar responsáveis. Descobrimos um país amnésico, cheio de gente que não sabe de nada, que não viu nada, que não ouviu nada. Percebemos que a corrupção é um problema real, grave, disseminado, que a Justiça é lenta a responder-lhe e que a classe política não se tem empenhado o suficiente a enfrentá-la.”.
E verificou como são trágicos os efeitos da corrupção:
A corrupção não é apenas um assalto ao dinheiro que é de todos nós – é colocar cada jovem de Portalegre, de Viseu, de Bragança, mais longe do seu sonho”.
Falou da falta de esperança, no refúgio na emigração, no cinismo dos poderes, na desvalorização do mérito, nas desigualdades.   
Ao invés do Presidente da República, que diz frequentemente que os portugueses, quando querem, são os melhores do mundo, opinou não haver “razão para os portugueses serem melhores do que os finlandeses, os nepaleses ou os quenianos”, mas assegurou que “também não precisamos de ser melhores”, pois, “para quem ainda acredita numa ideia de comunidade, os portugueses são aqueles que estão ao nosso lado”. E criticou:
Partilhamos uma língua, um país com uma estabilidade de séculos, sem divisões, e é uma pena que por vezes pareçamos cansados de nós próprios. Tivemos História a mais; agora temos História a menos. Passámos da exaltação heroica e primária do nosso passado, no tempo do Estado Novo, para acabarmos com receio de usar a palavra ‘Descobrimentos’.”.
Referindo que Luís de Camões já cantava os seus amores por uma escrava de pele negra, “tão bela e tão negra que até a neve desejava mudar de cor” (um dos melhores textos antirracistas, ditado pela paixão, que leu na íntegra), sustentou que “precisamos de um pouco menos de Lusíadas e de um pouco mais de lírica camoniana”, ou seja, “menos exaltação patriótica e mais paixão por cada ser humano” – fórmula “adequada aos tempos que vivemos”. E, convicto de que “sozinhos somos ninguém”, reportou-se à pergunta bíblica caímica “Acaso sou eu o guarda do meu irmão?”, com a “única resposta numa sociedade decente: “Sim, és.” Com efeito, num país algo desencantado, “o grande desafio está em tentar desenvolver um sentimento de pertença que vá além dos prodígios do futebol” e induza o culto da solidariedade para todos independentemente do lugar, etnia ou condição social e económica em que se enquadrem. E disse que aos “políticos que dirigem Portugal e representam os seus cidadãos, compete-lhes contribuir para esse esforço, propondo-nos um caminho inteligível e justo”.
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Enfim, um belo dia do povo, da política, das forças armadas, da lusofonia!   

2019.06.11 – Louro de Carvalho

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