sábado, 15 de junho de 2019

Santo António, Doutor da Igreja e padroeiro dos pobres


Celebrou-se, a 13 de junho, a Festa de Santo António de Lisboa ou de Pádua, que o calendário litúrgico geral cataloga como memória litúrgica, sendo que em Portugal e em Itália, como em dioceses, paróquias e institutos religiosos que o têm como padroeiro, o calendário lhe dá a categoria de festa. É uma festa ou memória que exprime a aura que o santo granjeou na devoção popular, no devir dos povos e na disseminação de templos – santuários, igrejas e capelas – nichos, bandeiras e imagens, um pouco por todo o mudo.
Seria, porém, muito pobre que da efeméride se ficasse apenas pelo que resta dos arraiais (que remontam a tempos antigos cristianizando as festas solsticiais das colheitas), bandas filarmónicas e conjuntos musicais, marchas populares, fogueiras, sardinhadas e outras diversões. Seria ainda pobre que nos ficássemos apenas pelos casamentos de que se julga ser protetor ou pela instituição militar onde tem enorme acolhimento mercê da proteção que vem concedendo aos militares crentes. Talvez seja pertinente refletir nas palavras do Papa Francisco dirigidas aos peregrinos italianos no final da audiência geral do dia 12,perante milhares de pessoas que o escutavam na Praça de São Pedro, no dia em que assinou a mensagem para o Dia Mundial dos Pobres:
Um pensamento particular dirijo aos jovens, aos idosos, aos doentes e aos jovens esposos: amanhã, celebra-se a memória litúrgica de Santo António de Pádua, insigne pregador e patrono dos pobres e dos que sofrem. Que a sua intercessão vos ajude a experimentar o socorro da misericórdia divina.”.
Como seria bom e comprometedor ter em mente os pobres e doentes ao rezar a Santo António!
Igualmente salutar será atentar na vertente litúrgica e religiosa que a cidade de Lisboa empresta à festividade. Ora, como refere a agência Ecclesia, Missa e procissão de Santo António evocam figura inspiradora para mudança pessoal e social”. De facto, milhares de pessoas participaram, no dia 13, na Eucaristia e na procissão solene que assinalam, anualmente, a Festa de Santo António, junto ao local onde ele nasceu. As celebrações foram presididas por Dom Américo Aguiar, Bispo Auxiliar do Patriarcado, que percorreu as ruas da capital com a relíquia do Santo na mão e junto ao peito, evocando o exemplo dos franciscanos, e declarou no final da procissão:
Que também nós sejamos tocados por esse testemunho sempre, na simplicidade da nossa vida. Não temos de ter tudo para nós, à custa de menos para os outros. Deus providencia e providenciou tudo para todos, o problema é que alguns acham que é tudo para eles e mais nada para os outros.”.
O percurso pelas ruas de Alfama, com termo frente à Sé, foi acompanhado, como é usual, pelas imagens dos santos António, João Batista, Miguel, Estêvão, Vicente e Tiago.
Na homilia da Missa a que presidiu na Igreja de Santo António, Dom Américo desafiou todos os participantes a serem o “sal da terra”, fazendo a diferença. Nestes termos, realçou:
A nossa presença no mundo, na família, no trabalho, é insossa ou é temperada? A nossa presença em algum lado faz a diferença? Se nós desaparecermos da nossa família, do nosso trabalho, dos nossos amigos, do nosso bairro, da nossa comunidade, alguém dá por ela? As coisas ficam insossas? É bom que deem por ela. Significa que somos sal.”.
Lembrando os primeiros passos do Santo, frisou que é preciso parar e ouvir Deus, apontando:
Às vezes não permitimos que Deus faça essa comunicação dentro do nosso ouvido, porque o ruído do mundo é muito elevado. As nossas preocupações, nos nossos problemas, a lufa-lufa, a saúde, a doença, o trabalho, os filhos e os netos, o dinheiro, a falta dele… É tanta coisa de manhã à noite que Deus não tem a oportunidade, o momento de sossego, para nos falar.”.
No final da celebração, Dom Américo ofereceu o solidéu à igreja de Santo António.
Fernando Medina, presidente da Câmara de Lisboa, acompanhou a procissão solene, falando de Santo António como “símbolo” da capital. A este respeito, o Bispo desafiou os portugueses a assumir o seu orgulho nesta figura, que em muitos locais é conhecido como ‘Santo António de Pádua’, a cidade italiana onde faleceu e onde são venerados os seus restos mortais. Deixou outro recado: Santo António é português, mas também temos de fazer por isso. E comentou:
Ficamos chateados quando dizem ‘Santo António de Pádua’, mas nós temos de fazer por isso, todos nós, a cidade. Temos de ter orgulho de testemunhar que o António é nosso, não é só que a taça é nossa, é que o António é nosso.”.
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Ora, para falar de Santo António dando a ideia global da sua vida e mensagem, a agência Ecclesia (por Paulo Rocha) e a Rádio Renascença (por José Pedro Frazão) ouviram Frei Armindo Carvalho, provincial dos Franciscanos em Portugal desde 2016, que foi missionário em Moçambique e atualmente é guardião da Igreja de Casa de Santo António, em Lisboa – num percurso de vida que privou sempre com Santo António, primeiro em Torres Vedras, no Convento de Santo António do Varatojo, em Maputo, na Igreja de Santo António da Polana, e em Lisboa, na casa onde nasceu o Santo de Lisboa, de Pádua e do mundo inteiro (disse Leão XIII).
Reconhece que a popularidade da devoção antoniana oculta o lado intelectual do Santo, que não é aspeto muito explorado, apesar da declaração como doutor da Igreja. Assim, embora seja “um intelectual de alto gabarito”, parece não se dar muito bem “lá nos altos, nas altitudes das intelectualidades”, pois “desce com muita facilidade à simplicidade” e ao quotidiano do povo, que “o considera como um membro da família”. Com efeito, qualquer circunstância feliz é para relevar o santo e qualquer problema levar a rezar: “Ó Santo António vale-nos!”.
Sobre o facto de António, um muito bom aluno de repente ter ficado impressionado ao ver passar uns Franciscanos a caminho de Marrocos e a sua vida ter mudado com isso, explica:
Isso é já a segunda presença de uma caminhada que começou em Lisboa, depois mudou para Coimbra, onde terminou o seu doutoramento na universidade [aliás, na escola do Mosteiro de Santa Cruz: ainda não havia a universidade] e depois acolheu esses frades, os cinco primeiros que São Francisco, depois do grande Capítulos da Esteiras, lançou como missionários pelo mundo, esses destinados a Marrocos”.
Na passagem a Marrocos pararam em Coimbra (sítio onde a Ordem estava instalada mais perto de Marrocos), em Santo António dos Olivais, paróquia onde o então cónego regrante trabalhava e conheceu a simplicidade, comunicabilidade e alegria daqueles fradinhos e pensou:
Porque é que estas pessoas são tão alegres? Não têm dinheiro, não têm coisas especiais, mas são alegres?
Assim, deixou-se cativar e “ficou a pensar se um dia não poderia ter um hábito castanho e uma vida como aqueles frades simples e humildes, mas alegres e felizes”. E, quando regressaram os restos mortais daqueles mesmos frades martirizados em Marrocos, foi António quem os recebeu (e lá estão ainda em Coimbra). Foi há 800 anos que ocorreu o primeiro encontro com os frades franciscanos. A Ordem foi aprovada oficialmente em 1209 e, como diz o provincial, “começou a lançar-se, sobretudo em grande expansão pela Europa” – Itália, França, Portugal – e para outros lados. E o que encantou António “terá sido esta forma evangélica de viver dos fradinhos de São Francisco”, pois “o Evangelho não é uma pregação, uma teoria que se lança, mas é uma vida”, como Francisco a intuiu: viver o Evangelho é a melhor maneira de viver.
À pergunta se António conheceu Francisco de Assis e se esteve com ele no Capítulo das Esteiras, Frei Armindo diz que isso ocorreu depois de regressar de Marrocos e conta:
“Teve as febres africanas e, como estava muito mal, meteram-no no mesmo barco; segundo consta, o barco foi sujeito a uma grande tempestade e, em vez de chegar a Lisboa, atracou na ilha da Sicília. Santo António saiu ali, havia uns monges beneditinos, também frades franciscanos. (…) Como os franciscanos têm uma ordem de São Francisco – quando um dos irmãos estiver doente, os outros recebam-no e tratem-no como queriam ser tratados e recebidos –, acolheram-no com muita alegria e beneficiaram também da sua presença, ajudaram-no a recuperar a saúde.”.
Seguindo com eles para Assis, prossegue Frei Armindo, participou no Capítulo das Esteiras (o primeiro passados três anos da existência da Família Franciscana, desta nova força da Igreja, no qual também participou Francisco), por convocação de Frei Elias, então o ministro geral, que não sabia onde estava Francisco: se na Terra Santa, como era um sonho dele, se em Marrocos, para continuar a presença dos frades. Contudo, apareceu ali, o que foi motivo de grande alegria para todos os frades, à volta já de 3 a 4 mil. E António estava presente. A história não descreve os pormenores do encontro ocasional de António com Francisco, mas Frei Armindo discorre:
Francisco viu aquele frade, um pouco desconhecido, apresentaram-no como um homem de Lisboa, que se converteu há pouco tempo, e um homem de Ciência. (…) Só mais tarde, cerca de meio ano, quando foi ordenado um padre, no Convento de Rieti, no final havia sempre alguém que dizia umas palavras, que deixava uma mensagem. Como não apareceu nenhum frade para falar, o superior disse: ‘Tu, António, vais fazer o sermão’. Ele, por obediência, foi fazer o sermão e saiu-lhe tão bem – a primeira parte, segundo dizem os historiadores, foi assim uma partilha muito simples, muito humilde, mas depois pegou nas ciências da Palavra de Deus que ele tinha, até se dizia que sabia todo o Novo Testamento de cor, não precisava de ir ao papel, lançou-as no ambiente que estavam a viver – que foi muito admirado e aplaudido.”.
Francisco chamou-o e disse-lhe “tu vai ensinar Teologia aos meus irmãos” e o ministro geral disse “tu vais pregar”. E, assim, ficou investido na dupla missão de professor e pregador.
Francisco chama-lhe o “meu bispo”, visto que, ao tempo, os doutores eram os bispos. E António sabia as Escrituras e era o homem que conhecia a Palavra de Deus e a sabia viver e pregar.
Admite o provincial que temos um Santo António mais erudito, mais doutor em Itália, e mais popular em Portugal, embora a diferença não seja assim “muito grande”. Contudo, a sua popularidade em Portugal “é maior, ao nível do povo simples, humilde”. Com efeito, a festa de Santo António atrai multidões, “não só daqui da nossa Lisboa nem do nosso retangulozinho que é Portugal, mas de todo o mundo, que enchem toda aquela rua”.
E o guardião da igreja de Santo António tem uma explicação para o facto de em Itália o Santo ter mais a fama de doutor e em Portugal ter entrado de uma forma mais vincada na religiosidade popular: “Portugal nunca teve a pregação de Santo António, ele pregou em Itália, em França, mas em Portugal nunca pregou”. E acrescenta:
Ao que se diz, veio a Portugal uma vez com dupla presença, com o dom da ubiquidade, para salvar o pai de uma sentença de morte que era injusta. Então ele aparece, mas com o dom da ubiquidade, e salva o pai da morte. De resto, nunca pregou em Portugal nem nunca terá pregado em português, mas em italiano, em francês.”.
Acha pouco chamar a Santo António um santo casamenteiro e diz:
Também, casamenteiro, aquele que acha as coisas perdidas, aquele que desenrasca os doentes, é o santo dos pobres, é o santo daqueles que são simples e que reconhecem que precisam de alguém para os ajudar”.
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Tendo em conta que o Papa Francisco, no dia 12, lhe chamou o “padroeiro dos pobres e de quem sofre”, foi pedido ao entrevistado que falasse da obra social desenvolvida a partir da Igreja de Santo António, do pão de Santo António, e que reflexo tem na promoção de quem é mais necessitado. A isto respondeu:
O pão de Santo António não é bem para matar a fome, o que nós vendemos hoje… As obras sociais de Caneças e de Dona Maria que são as obras de assistência a crianças pobres, em colaboração com a Segurança Social. Mas o pão de Santo António inicialmente nasceu exatamente para dar comida a quem tem fome. O inovador deste projeto foi um frade chamado João da Santíssima Trindade que era natural de Geraldes, perto de Peniche, e que foi nomeado ministro provincial, o segundo ministro provincial da Província renascida.”.
Refere que o frade teve atenção especial do patriarca de Lisboa, que sabia da devoção dele a Santo António e também dos seus dotes oratórios e qualidades humanas e relacionais. Pediu-lhe que fosse o primeiro reitor da igreja de Santo António, porque até aí, depois do terramoto de Lisboa, em 1755, a evolução foi “muito complexa até que se chegou à atual igreja”, que “será mais ou menos uma réplica da primeira, que está por baixo”, em escombros. E, nessa igreja, que hoje acolhe peregrinos de todo o mundo, é que foi instituído o pão de Santo António. Depois, Frei Armindo fala da tradição dos últimos 98 anos:
Todas as semanas há o pão de Santo António, duas vezes por semana. Muda às vezes conforme os reitores – hoje tem uma vertente um pouco mais de alimentação completa, a partir de ofertas do supermercado, de restaurantes que são distribuídas, mas antes era o pão mesmo que alimentava. Aquele pão pequenino é mais um símbolo da comunhão que Santo António faz com o mundo inteiro.”.
E, falando de alguns procedimentos e efeitos do pão de Santo António, explicita:
Há saquinhos que pedem daqui para muitos lados do mundo e que vão pelo correio; outros levam com eles nos saquinhos, exatamente para simbolizar esta relação que Santo António tem – não só no hoje, no dia 13 de junho, mas também durante o ano pode-se comer esse pão, que nunca apodrece. É tratado de uma forma especial, de maneira que nunca ganha bolor nem apodrece… Se comer daqui a um ano ou dois ainda se pode comer. Está mais rijo, mas pode-se comer.”.
Reconhecendo que a vida social é diferente da de outros tempos, nem por isso a dimensão da partilha com os que menos têm deixa de existir e não se perde com a agitação da cidade destes dias, bem como a interioridade do coração. E explana:
Não vão tanto à procura de uns ‘milagrinhos’, mas [por] uma devoção de louvor a Santo António. Por exemplo, todas as semanas tiram-se centenas de papelinhos do quadro especial envidraçado que há lá, que dizem ser uma réplica de Giotto. Não sei se se confunde a festa e marchas com a festa do coração das pessoas. Mas essa festa do coração das pessoas não deixa de existir, ligada à festa da relação. Se se viver o encontro com Santo António, na simplicidade do coração, e depois se dança e se canta e se toca música com os amigos e a família, isso é uma partilha muito simpática.”.
Questionado até que ponto o turismo está a transformar a Igreja de Santo António, observa:
A Igreja de Santo António, a que chamamos Igreja-Santuário, é um dos passos da rota das peregrinações religiosas: passam por Lisboa, vão a Fátima, seguem para Santiago de Compostela… Hoje, está um pouco diferente: houve uma alteração da Câmara Municipal, que é proprietária da Igreja. E,  quando, noutros tempos, os autocarros chegavam lá e deixavam os turistas, depois eram chamados no regresso, agora já não sobem. Só os carros e os tuck-tuck…”.
À pergunta se isso fez diminuir o número de devotos, admite-o pelo que dizem, mas vinca:
Nós trabalhamos muito com os guias: cada ano, fazemos 3 ou 4 encontros de fim de semana e partilhamos as experiências deles e usamos a influência que eles têm na visita ao Santuário de Santo António. Não por uma intenção comercial, longe de nós! Mas a passagem por Santo António contribui para a compra do pão dos Pobres, as obras de assistência social e para a manutenção da Igreja.”.
Sobre a necessidade de criar outras soluções de acessibilidade os grupos voltarem a Santo António, responde à boa maneira franciscana, verificando a situação:
É um problema que não sei responder porque depende da orientação do trânsito na cidade.  Começaram a fazer um elevador, a partir do Campo das Cebolas e até à Sé, mas parou há mais de dois anos. Isso seria uma alternativa: os autocarros paravam no Campo das Cebolas, as pessoas subiam no elevador e estavam lá em cima…”.
No atinente ao que há do Santo em todo o mundo, além de Lisboa e Pádua, fala das imagens e das geminações. No atinente às imagens diz apenas, o que não é pouco:
Creio que não há nenhuma igreja na Europa que não tenha uma imagem de Santo António! Tenho andado por muitos lados e há três anos estive em Sevilha e fui visitar a Catedral. Procurei uma imagem de Santo António, nos altares e não encontrei nada… À saída, e pensando que os sevilhanos não gostavam de Santo António, perguntei a uma Senhora: ‘Não há aqui uma imagem de Santo António?’ – ‘Sim, em cima’, respondeu ela.”.
E, em relação ao mecanismo das geminações, conta já quatro:
Nós já celebrámos a geminação com Santo António de Brive, no Sul de França, em 2008, onde há uma grande comunidade de portugueses emigrantes, numa manifestação linda à volta da cultura portuguesa (porque Santo António é português, embora digam que é de Pádua. Mas é de todo o mundo, como disse o Papa Leão XIII). Essa foi a 1.ª geminação. A 2.ª foi na Basílica de Pádua, de forma mais pomposa, onde tive o privilégio de presidir à Eucaristia, repleta, onde assinámos o protocolo entre Lisboa e Pádua. Foi uma alegria ver aquela assembleia da Basílica, de pé a aplaudir o ato da geminação. A 3.ª foi com a Afragola, em Nápoles, que têm uma devoção “louca” a Santo António. E a 4.ª foi em Ceuta, no ano passado, onde estão as marcas dos portugueses, quando lá passaram, não apenas nos monumentos, mas na cultura do povo, que é muito relacionada com Santo António, onde foi inaugurada uma casa de retiros em honra de Santo António.”.
***
Enfim, se turismo, festas, templos e templetes, imagens, devoções e geminações, fora da lógica da alienação, contribuírem para a partilha e a atenção solidária com os pobres e todos os que sofrem, tudo isto será bem-vindo pelo bem da humanidade e glória de Deus! E o Santo gostará.
2019.06.14 – Louro de Carvalho    

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