terça-feira, 30 de junho de 2020

Caído o mérito da gestão privada, emerge a hipótese da nacionalização


Ante a falta de acordo entre o Governo e os acionistas privados da TAP sobre os termos da ajuda do Estado, a nacionalização é um cenário que volta a estar em cima da mesa. É certo que decorrem negociações, mas o Governo quer dispor de uma “intervenção assertiva”. E o Ministro das Infraestruturas ainda vai submeter proposta ao sócio privado.
Expresso avançou hoje, dia 30, que a companhia será nacionalizada, depois de os acionistas privados terem inviabilizado um acordo na noite do dia 29, relativo à ajuda pública até 1.200 milhões de euros, ao recusarem as condições do Governo. E Pedro Nuno Santos, que tem a tutela sobre a TAP, confirmou a informação pouco depois em audição parlamentar na comissão de Economia e Obras Públicas. Na verdade, a proposta de ajuda estatal foi chumbada no Conselho de Administração. Era preciso ter maioria qualificada, ou oito votos a favor. Os privados abstiveram-se e, por isso, foi chumbada – disse o Ministro. Não obstante, as negociações prosseguem até 1 de julho. E, caso não haja acordo, a nacionalização será a forma de o Estado intervir na TAP. Assim, como disse o Ministro no Parlamento, “se [o sócio privado] aceitar, aceita; se não aceitar, não aceita; e acabou”. O caminho a seguir será o Estado aceitar a proposta duma saída acordada, negativa para todos, “mas que garanta a paz à TAP e evite o litígio futuro”, como frisou o governante.
Pedro Nuno Santos assegurou que, se a proposta do Governo não for aceite, o Estado fará “uma intervenção mais assertiva na empresa”, mas não explicitou que tipo de intervenção.
Assim, a nacionalização é hipótese a ganhar força depois de ter sido dado como iminente um acordo entre o Estado e os acionistas David Neeleman e Humberto Pedrosa, sobre as condições que o Estado pretende impor à gestão. Ainda no dia 29, o empresário americano-brasileiro se afirmava disponível para a entrada do Estado na comissão executiva da empresa, o que o Governo não pretende. Contudo, o principal obstáculo é de natureza financeira, sendo que os privados querem converter em capital todos os empréstimos concedidos à TAP.
Os acionistas estão reunidos em assembleia geral para aprovar as contas do ano passado depois de a transportadora ter anunciado prejuízos de 395 milhões de euros no 1.º trimestre, ainda sem o impacto mais negativo da pandemia, e poderão subscrever o acordo.
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Na predita audição parlamentar, perante questões do PSD sobre a ajuda do Estado, o Ministro insistiu nas virtudes do plano criado e aprovado pela Comissão Europeia, que inclui ajudas de 1.200 milhões de euros e um plano de reestruturação, e disse que o debate mais difícil para quem crê na nacionalização da TAP é saber se vale a pena. Respondendo ao BE, esclareceu que não há um braço de ferro, mas “apenas da atitude intransigente e firme do Estado, que é a de defender o povo português”, estando o Governo disponível para salvar a TAP, mas sob “condições mínimas, equilibradas e razoáveis”. Na verdade, a TAP é uma das maiores exportadoras nacionais, que traz metade dos turistas que chegam a Portugal, ajuda a manter mais de 10 mil postos de trabalho e compra 1.300 milhões de euros por ano a empresas nacionais. Por tudo isso, o governante assenta em que “seria um desastre para o país perder a TAP” e não é verdade que, no dia seguinte, seria substituída “por outra companhia qualquer”. Depois, pelo PSD, aludiu a alegada cláusula secreta do contrato de reprivatização da companhia que permitia a David Neeleman ser indemnizado em caso de nacionalização. Com efeito, o jornalista Pedro Santos Guerreiro evocou-a no Jornal das 8 da TVI24. Segundo tal cláusula, avançou o jornalista, “se algum dia a TAP fosse nacionalizada, Neeleman receberia o valor dos empréstimos que entretanto tivesse feito à TAP mais um valor a partir de uma avaliação profissional a realizar”. Todavia, Nuno Santos rejeitou o secretismo de qualquer cláusula, reiterando que a cláusula foi explicada e abordada num relatório do Tribunal de Contas, de junho de 2018. E, comentando, as notícias que estão a surgir, disse claramente:
Nós ainda vamos submeter a proposta ao nosso sócio privado [a Atlantic Gateway, de David Neeleman e Humberto Pedrosa] e esperamos que seja aceite”.
Para o Ministro, as notícias da inevitabilidade da nacionalização da TAP correspondem a “um jogo negocial feito na comunicação social” em que o Governo não entra e o jogo não acabou. Porém, sobre as declarações de David Neeleman, que se disse pronto a aceitar a presença dum representante do Estado na comissão executiva da TAP, Pedro Nuno Santos ironizou:
É até um bocado ridículo. Pedir 1.500 milhões de euros ao Estado e depois vir dizer que até tem disponibilidade para aceitar um representante.”.
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Já a 20 de abril, Anabela Campos, no Expresso, referia o estado das companhias aéreas que “estão a viver a maior crise de sempre”, frisando que só sobreviverão com o apoio dos Estados. E, sobre a TAP, onde o Estado detém 50% do capital, sobressaía, a par do segredo sobre a solução, o discurso alinhado e concordante de três das mais relevantes figuras do Governo, o Primeiro-Ministro, o ministro das Finanças e o da Economia, a vincar “a relevância estratégica da TAP para o país, para a economia portuguesa e para a ligação de Portugal à comunidade de língua portuguesa”, deixando em aberto a hipótese da nacionalização.
No entanto, o Executivo fará tudo para evitar a nacionalização porque dificultará a confiança no país da parte dos mercados, quando a economia voltar à normalidade, e por ser entendida como gasto desnecessário de dinheiro público pelo Governo. Isto não quer dizer que o Estado não aumente a sua participação, o que acontece por ter de ser injetado dinheiro pelos acionistas, o que os privados não podem ou não o querem fazer. Humberto Pedrosa mostrou-se disponível para o aumento de capital, deixando claro que não tenciona deixar de ser acionista da TAP, e admitia que a TAP precisava de 350 a 400 milhões de euros até final do ano, defendendo como solução um empréstimo com garantia do Estado, convertível em ações, e a entrada dum gestor indicado pelo Estado na comissão executiva – o que o Governo põe em causa. Porém, Neeleman estará com pouca margem de manobra, pois, em março, teve de vender 47% da sua participação na brasileira “Azul”, para liquidar um crédito pessoal de 27 milhões de euros que tinha como garantia parte das ações na Azul, passando a ficar só com 3,34% dos direitos de voto.
O plano de resgate do setor aéreo (TAP, SATA, Groundforce, Portway, euroAtlantic, Hifly Portugal, ANA, OGMA, e outros pequenos atores do setor) parecia demorar mais tempo que o previsto mercê da espera da luz verde de Centeno, focado, enquanto presidente do Eurogrupo, no pacote de medidas de apoio aos Estados membros, por causa da pandemia. Entretanto, a Comissão Europeia foi célere na elaboração e aprovação do plano.
A TAP tinha em caixa cerca de 300 milhões de euros no começo da crise, o que lhe permite esperar com alguma tranquilidade a chegada do auxílio estatal. O processo de lay-off, em curso, permite-lhe baixar os custos com pessoal mensalmente para 21 milhões de euros.
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É companhia de bandeira e estão muitos empregos em causa, mas o afã da UE e do Governo não será para salvação da banca, à nossa custa, no âmbito das aquisições de frota por leasing?
2020.06.30 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Motivos por que celebramos na mesma solenidade Pedro e Paulo


A 29 de junho, a Igreja celebra a Solenidade de São Pedro e São Paulo. E a questão que se coloca é porque se juntam os dois apóstolos tão diferentes na mesma celebração.
Diego López Marina, no site do ACI, elenca sete razões ou chaves de interpretação da unicidade desta celebração dual.
A primeira decorre da afirmação de Santo Agostinho de Hipona de que os dois eram como “um só”. Com efeito, num sermão do ano de 395, de que se lê um excerto no Ofício de Leituras da Liturgia das Horas da Solenidade, este Doutor da Igreja afirma que Pedro e Paulo, “na realidade, eram como um só”, pois, embora martirizados em dias diferentes, “deram o mesmo testemunho: Pedro foi à frente e Paulo seguiu-o”. Por isso, “celebramos a festa deste dia para nós consagrado pelo sangue dos dois apóstolos” e, por conseguinte, “amemos e imitemos a sua fé, a sua vida, os seus trabalhos, os sofrimentos, o testemunho que deram e a doutrina que pregaram”.
A segunda razão prende-se com o facto de ambos terem estado detidos na prisão Mamertina ou Tullianum, sita no foro romano na Roma Antiga, e terem sido martirizados na mesma cidade, provavelmente por ordem do imperador Nero. Pedro passou os seus últimos anos em Roma à testa da Igreja durante a perseguição e até ao seu martírio no ano 64. Foi crucificado de cabeça para baixo, a seu pedido, por não se considerar digno de morrer como o Senhor. Foi enterrado na colina do Vaticano e sobre o seu túmulo foi edificada a Basílica de São Pedro. Quanto a Paulo, sabe-se que foi preso e, tendo apelado a César por ser cidadão romano, levado a Roma, onde acabou por ser decapitado no ano 67. Está sepultado na Basílica de São Paulo Extramuros.
Uma terceira razão está espelhada nas palavras de Bento XVI, que na homilia da Solenidade, em 2012, assegurou que “a sua ligação como irmãos na fé adquiriu um significado particular em Roma”, pois esta comunidade cristã “viu neles uma espécie de antítese dos mitológicos Rómulo e Remo, os irmãos a quem se atribui a fundação de Roma”.
Uma quarta razão assenta no facto de serem ex-aequo os “padroeiros principais da Igreja de Roma”, já que, no dizer de Bento XVI, “desde sempre a tradição cristã tem considerado São Pedro e São Paulo inseparáveis: na verdade, juntos, representam todo o Evangelho de Cristo”.
Em quinto lugar, o mesmo Papa Ratzinger apresentou um paralelismo oposto à irmandade entre Caim e Abel no Antigo Testamento, observando:
Enquanto nestes vemos o efeito do pecado pelo qual Caim mata Abel, Pedro e Paulo, apesar de serem humanamente bastante diferentes e não obstante os conflitos que não faltaram no seu mútuo relacionamento, realizaram um modo novo e autenticamente evangélico de ser irmãos, tornado possível precisamente pela graça do Evangelho de Cristo que neles operava”.
Uma sexta chave de leitura decorre do facto de Pedro ter sido escolhido por Cristo – “tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja(Mt 16,18); “apascenta os meus cordeiros” e “as minhas ovelhas” (Jo 21,15.16.17) – e humildemente ter aceitado, apesar das suas fragilidades humanas, a missão de ser “a rocha” da Igreja e apascentar o rebanho de Deus. Assim, o livro dos Atos dos Apóstolos ilustra o seu papel de líder da Igreja depois da Ressurreição e Ascenção de Cristo, pois dirigiu os apóstolos como primeiro Papa, assegurou que os discípulos mantivessem a verdadeira fé e abriu as portas da pregação aos gentios (vd At cap. 10). E Bento XVI, na suprarreferida homilia, desenvolveu:
Na passagem do Evangelho de São Mateus que acabamos de ouvir, Pedro faz a sua confissão de fé em Jesus, reconhecendo-O como Messias e Filho de Deus; fá-lo também em nome dos outros apóstolos. Em resposta, o Senhor revela-lhe a missão que pretende confiar-lhe, ou seja, a de ser a ‘pedra’, a ‘rocha’, o fundamento visível sobre o qual está construído todo o edifício espiritual da Igreja.” (cf Mt 16,16-19).
Por último, é de reconhecer que Paulo também é coluna do edifício eclesial. O apóstolo dos gentios, que, antes da conversão, era chamado Saulo (nome mais grego), depois do encontro com Cristo e conversão, prosseguiu, constituído vaso se eleição, no caminho para Damasco, onde foi batizado e recuperou a visão, que perdera no caminho. Adotou o nome de Paulo (nome latino) e passou o resto da vida pregando o Evangelho sem descanso às nações do mundo mediterrâneo. A respeito de Paulo, é de reter o apontamento iconográfico na predita homilia de Bento XVI:
A iconografia tradicional apresenta São Paulo com a espada, e sabemos que esta representa o instrumento do seu martírio. Mas, repassando os escritos do Apóstolo dos Gentios, descobrimos que a imagem da espada se refere a toda a sua missão de evangelizador. Por exemplo, quando já sentia aproximar-se a morte, escreve a Timóteo: ‘Combati o bom combate’ (2Tm 4,7); aqui não se trata seguramente do combate dum comandante, mas daquele dum arauto da Palavra de Deus, fiel a Cristo e à sua Igreja, por quem se consumou totalmente. Por isso mesmo, o Senhor lhe deu a coroa de glória e o colocou, juntamente com Pedro, como coluna no edifício espiritual da Igreja.”.
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Em dia de São Pedro e de São Paulo é oportuno refletir sobre a apostolicidade da Igreja. Sempre que recitamos o símbolo niceno-constantinoplitano, professamos a fé na Igreja una, santa, católica e apostólica. E, atentando hoje na caraterística eclesial da apostolicidade, entendemo-la em três sentidos: a Igreja foi e continua edificada sobre “o fundamento dos apóstolos” (Ef 2,20), testemunhas escolhidas e enviadas em missão por Cristo; “conserva e transmite, com a ajuda do Espírito que nela habita, o ensinamento, o depósito precioso, as salutares palavras ouvidas da boca dos apóstolos”; e os sucessores dos apóstolos continuam a ensinar, santificar e dirigir esse corpo até a volta de Cristo (vd CIC/Catecismo da Igreja Católica nn. 857-864.869).
Estes sentidos são muito importantes porque configuram para nós a segurança de que a Igreja é hoje a mesma que foi fundada por Jesus, mas não aprofundam o que significa especificamente ser apóstolo. Por isso,  Pedro e Paulo podem lançar luzes sobre as nossas próprias vidas.
Alguém dirá que Paulo não foi apóstolo, pois não esteve no grupo dos doze escolhidos pelo Senhor, desses amigos íntimos que partilharam a vida e aprenderam em primeira mão o que significa a vida cristã. Até perseguiu cristãos, convicto de que estava a fazer a vontade de Deus. Porém, era apóstolo, tal como Pedro. Com efeito, Paulo declara-se “chamado para ser apóstolo, não por qualquer organização ou autoridade humana, mas por Jesus Cristo e por Deus o Pai, que ressuscitou Jesus da morte” (Gl 1,1). E, na relação com os outros apóstolos, explica: 
Não fui logo consultar criatura alguma. (…) Passados três anos, subi a Jerusalém, para conhecer Cefas. (…) O mesmo Deus que trabalhou para que Pedro estivesse ao serviço dos judeus trabalhou para que eu fosse posto ao serviço dos não judeus. Então, Tiago, Pedro e João, considerados como as colunas da igreja, reconhecendo a atribuição que me fora confiada, deram-nos as mãos, a mim e a Barnabé, em demonstração de concordância. Ficou então assente que nós continuaríamos a nossa missão junto dos não-judeus e eles no meio dos judeus.” (Gl 1,16; 2,8-9).
Apóstolo’ vem da palavra grega ‘apóstolos’, que significa ‘enviado para longe. O apóstolo é, pois, alguém que recebe a tarefa de outrem para ir a um lugar entregar uma mensagem ou realizar uma atividade. Jesus, dizendo aos discípulos “Ide por todo o mundo e proclamai o Evangelho a toda criatura(Mc 16,15), transforma-os em apóstolos porque se lhes explicita a missão. Paulo recebe-a após a caminhada de Damasco. E o n.º 860 do CIC esclarece:
No múnus dos Apóstolos há um aspeto intransmissível: serem as testemunhas escolhidas da ressurreição do Senhor e os alicerces da Igreja. Mas há também um aspeto da sua missão que permanece. Cristo prometeu estar com eles até ao fim dos tempos. A missão divina confiada por Jesus aos Apóstolos é destinada a durar até ao fim dos séculos, uma vez que o Evangelho que devem transmitir é, para a Igreja, princípio de toda a sua vida em todos os tempos. Por isso é que os Apóstolos tiveram o cuidado de instituir [...] sucessores.” (LG, 20). 
E nós, que não nos consideramos tecnicamente sucessores dos apóstolos?
Ora, nós, como membros da Igreja pelo Batismo, também recebemos uma missão de Deus, a de sermos santos e de levar a santidade aos que nos rodeiam. Cada um de nós pode entender-se, pois, como um apóstolo, um enviado por Deus para uma missão específica. Cabe a cada um de nós acolher, como Pedro e Paulo, a missão e colocar o nosso grãozinho de areia para cooperar com a missão de Deus de fazer chegar a salvação a todos. Referem o nn 863 e 864 do CIC:  
Toda a Igreja é apostólica, na medida em que, através dos sucessores de Pedro e dos Apóstolos, permanece em comunhão de fé e de vida com a sua origem (…), na medida em que é ‘enviada’ a todo o mundo. Todos os membros da Igreja, embora de modos diversos, participam deste envio. A vocação cristã é também, por natureza, vocação para o apostolado. E chamamos apostolado ‘a toda a atividade do Corpo Místico’ tendente a alargar o Reino de Cristo à terra inteira.” (cf AA, 2) – n.º 863.
Sendo Cristo, enviado do Pai, a fonte e a origem de todo o apostolado da Igreja, é evidente que a fecundidade do apostolado, tanto dos ministros ordenados como dos leigos, depende da sua união vital com Cristo (cf Jo 15,5; AA 4). Segundo as vocações, as exigências dos tempos e os vários dons do Espírito Santo, o apostolado toma as formas mais diversas. Mas é sempre a caridade, haurida principalmente na Eucaristia, que é como que a alma de todo o apostolado.” (cf AA 3) – n.º 864.
E o Papa, como Sucessor de Pedro e Vigário de Cristo, é o princípio e fundamento perpétuo e visível da unidade, tanto dos bispos como da multidão de fiéis. É Pastor de toda a Igreja e tem poder/serviço pleno, supremo e universal. Por isso, também este é apontado como o dia do Sumo Pontífice e oportunidade de oração pelo Santo Padre e pela unidade dos cristãos.
Hoje o Papa abençoa e entrega os pálios (em 2015, Francisco deixou de impor o pálio nos ombros dos arcebispos, apenas o entrega), faixas de lã que simbolizam o vínculo dos arcebispos metropolitanos com o Sucessor de Pedro. Este ano, mercê da pandemia de covid-19, a missa papal foi acessível a um número reduzido de pessoas, pelo que os arcebispos não receberão o pálio, que apesar de benzido agora, ser-lhes-á entregue posteriormente.
A solenidade é também ocasião de praticar a virtude da caridade. Porém, por causa da covid-19, neste ano, a coleta mundial para o Óbolo de São Pedro, geralmente realizada no domingo mais próximo a São Pedro e São Paulo, foi adiada para 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, conforme anunciado por Matteo Bruni, porta-voz do Vaticano.
Conforme escreve o vaticanista Andrea Gagliarducci, da ACI Stampa, a prática do Óbolo é antiga: “Ao final do século VIII, os anglo-saxões, depois da sua conversão, sentiram-se tão ligados ao bispo de Roma que decidiram enviar, de maneira estável, uma contribuição anual ao Santo Padre”. Recebeu o nome de “Denarius Sancti Petri(Esmola a São Pedro) e a sua prática espalhou-se pela Europa ao longo dos séculos. Em 1871, o Papa Pio IX instituiu-a oficialmente.
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Em suma, se Pedro era a princípio o apóstolo dos circuncisos e Paulo o dos incircuncisos – duas vertentes da mesma missão –, Pedro continua o Chefe da Igreja e abre-se à universalidade ou catolicidade; e Paulo, como apóstolo dos gentios, nunca deixa de reconhecer tanto a validade como a insuficiência da narrativa veterotestamentária: encaminhamento pedagógico da Lei para Cristo, mas ineficácia salvífica das obras da Lei, pois a eficácia encontra-se só em Cristo.
2020.06.29 – Louro de Carvalho

domingo, 28 de junho de 2020

Da hospitalidade ao acolhimento total e à missão


O texto da 1.ª leitura da Missa deste XIII domingo do tempo Comum no Ano A (2 Rs 4,8-11.14-16a) é um belo exemplo da hospitalidade premiada que o AT (Antigo Testamento) testemunha no contexto da marcha do Povo dividido em dois reinos (Israel, a norte, e Judá, a sul), com a morte de Salomão (932 a.C.), passando os dois a viver histórias separadas e quase sempre antagónicas.
O episódio do texto ocorre em Israel, no reinado de Jorão (853-842 a.C.), quando as relações que Israel teima em estabelecer com outros países circunvizinhos o tornam vulnerável às influências religiosas estrangeiras favorecendo a entrada de cultos diversos.
Neste ambiente, surge o profeta Eliseu, discípulo de Elias que, na esteira do mestre, luta contra o sincretismo religioso e procura restituir os israelitas à via da fidelidade à aliança. Integrando uma comunidade de “filhos de profetas” (seguidores incondicionais do Senhor), vive pobre e oferece ao Povo apoio face aos abusos dos poderosos. É denominado, 29 vezes, ‘ish Elohim (“homem de Deus”), intérprete da Palavra de Deus junto dos outros homens, Palavra poderosa que opera maravilhas e é capaz de transformar a realidade. Os milagres a ele atribuídos exprimem vivamente da força de Deus, que pelo profeta intervém na história e salva os pobres.
O episódio em referência acontece em Sunam, pequena cidade do sul da Galileia, perto de Meggido, em casa duma mulher rica e sem filhos, e consta de dois momentos: a hospitalidade da mulher ao profeta, recompensada com o anúncio do nascimento de um filho (cf 2Rs 4,8-17); e a repentina doença e morte desse filho, que exigirá peculiar intervenção do profeta para lhe devolver a vida (cf 2Rs 8,18-37).
O texto desta dominga leitura relata a generosa hospitalidade que Eliseu encontra nesta casa. A mulher não se limita a oferecer-lhe uma refeição sempre que o profeta passava por Sunam, nas suas passagens (idas e voltas) para o monte Carmelo; manda também construir para ele um quarto no terraço da casa e mobila-o adequadamente, para que possa recolher-se. E fá-lo, é certo, na linha do sacramento da hospitalidade oriental, mas sobretudo por reconhecer que Eliseu é um homem de Deus, por quem Deus age no mundo. Ora, ajudando o profeta, a mulher mostra a sua adesão ao Senhor e a sua disponibilidade para colaborar com Deus no seu desígnio de salvação.
Em resposta a tamanha generosidade, Eliseu anuncia-lhe o nascimento dum filho, anúncio com um valor especial, dada a suposta impossibilidade de o casal ter filhos. Assim se percebe que a colaboração com Deus é fonte de vida e de bênção. E quem acolhe um profeta por ser profeta – e não só pelo hábito da hospitalidade – recebe a recompensa de profeta, que dá nova energia.
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Por seu turno, o final do Discurso Missionário (Mt 10,37-42), hoje proclamado, é pronunciado ante os missionários, animando-os, mas é direcionado para quem os acolhe – acolhimento que se reveste de extrema importância, pois é como acolher o próprio Cristo e Aquele que O enviou. E Dom António Couto, Bispo de Lamego, diz que “para tornar este aspeto visível e audível, neste pequeno texto de seis versículos, o verbo ‘acolher’ (déchomai), palavra-chave do texto, faz-se notar por seis vezes (Mateus 10,40 [4 vezes].41 [2 vezes]).” (vd Jornal da Madeira, de hoje).
Para se perceber o objetivo de Mateus, ao compor este texto e pô-lo na boca de Jesus, é de considerar a década de 80, em que o evangelista escreve para uma comunidade onde a tarefa missionária estava bem enraizada, mas em que as condições políticas do imperador Domiciano e a hostilidade crescente do império para com o cristianismo trazem a comunidade confusa. Neste contexto, Mateus compõe um “manual do missionário” para revitalizar a opção missionária da comunidade, sugerindo que a missão dos discípulos é anunciar Jesus e continuar a percorrer o caminho de Jesus – mesmo que acarrete a dádiva total da vida. Apresenta, nesse sentido, um conjunto de valores e atitudes por que se deve pautar a ação dos missionários.
Pode o texto em causa dividir-se em duas partes: a primeira (vv. 37-39), com um conjunto de exigências radicais para quem quer seguir Jesus; a segunda (vv. 40-42), com a indicação de que toda a comunidade deve anunciar Jesus e com o anúncio duma recompensa a quem acolher os mensageiros do Evangelho. 
Seguir Jesus não é fácil e consensual, nem concita encorajamento ou aplauso; é, antes, enveredar pelo caminho radical, que obriga, muitas vezes, a ruturas e exigentes opções. Mateus não admite meias-tintas: a primeira lealdade é sempre com Jesus. Se a alternativa for escolher entre Jesus e a família (cf v. 37), a opção discipular tem de recair em Jesus (ora, sendo a família era a estrutura que dá sentido à vida das pessoas, a rutura com ela é medida extrema, que supõe um desenraizamento social quase completo). Embora o discípulo não tenha necessariamente de cortar relações com a família para seguir Jesus, contudo não pode deixar que a família ou os afetos o impeçam de responder ao desafio do Reino com coerência e radicalidade. E, se a alternativa for a opção entre Jesus e as próprias seguranças (cf v. 38), a escolha do discípulo deve a da tomada da cruz e o seguimento de Jesus. Com efeito, escolher Jesus e segui-Lo até à cruz não é caminho de fracasso e de morte, mas de vida. Na verdade, se o homem, preocupado em proteger os seus esquemas de segurança, se fecha no seu egoísmo e autossuficiência, perde a vida; mas, se aceita viver na obediência ao desígnio de Deus, que se espelha na dedicação aos irmãos, encontra a vida definitiva (cf v. 39).
No atinente à recompensa prometida a quem acolhe os mensageiros da Boa Nova, Mateus elenca 4 grupos de pessoas que integram a comunidade com a responsabilidade do testemunho: apóstolos (v. 40), profetas (v. 41a), justos (v. 41b) e pequenos (v. 42) – todos com o encargo do anúncio da Boa Nova. Os apóstolos – que acompanharam sempre Jesus e O viram ressuscitado – são as testemunhas primordiais, pois deles se diz que quem os recebe, recebe Jesus; os profetas são os pregadores itinerantes que, em nome de Deus, interpelam a comunidade e que a ajudam a ser consequente com os valores do Evangelho; os justos seriam talvez os cristãos procedentes do judaísmo, que procuram viver, no seio da comunidade, em coerência com a Lei de Moisés; e os pequenos são, além das crianças, os discípulos que não integram de forma plena a comunidade por estarem em processo de amadurecimento da opção (os catecúmenos, que esperam, na descoberta da fé, o pleno compromisso com Jesus). Em todo o caso, todos formam a comunidade cristã, pelo que têm por missão o anúncio do Evangelho.
Ora, acolher os Doze (e seus sucessores), os discípulos, os missionários e evangelizadores de todos os tempos, não consiste só em recebê-los em casa, mas sobretudo em expor-se ao anúncio que trazem. Não basta abrir-lhes as portas da casa, ainda que isso seja importante para quem deixou tudo por Cristo e de vez em quando precisa dum tempo de hospitalidade. É, antes, a abertura do coração à mensagem de que são portadores, vendo que, por trás deles, está Jesus, que os enviou. Com efeito, na cultura judaica, o enviado de um homem é como se fosse esse mesmo homem.
Este acolhimento não é fácil, porque o anúncio provoca divisão, requer postura pró ou contra Cristo, postula escolha que não admite compromissos ou retóricas, divide a humanidade, a família e o coração de cada um. Não raro esperamos que os profetas nos ajudem a justificar os nossos compromissos, o nosso modo tíbio de viver. Porém, o profeta é radical. E acolher um profeta é quase como tornar-se profeta também. Assim, tanto o acolhedor como o acolhido terá a mesma recompensa. E ensina o Bispo de Lamego, que “acolher Jesus ou os seus enviados é aceitar expor-se à cirurgia da Palavra, que divide junturas e medula e julga as disposições e intenções do coração” (Heb 4,12), e que não consiste em “organizar uma festa de amigos”, mas em “aceitar conviver com um bisturi dentro de nós, com um fogo a arder dentro de nós” (cf Jr 20,9; Lc 24,32). Ora, “é tão complicado ou tão simples como oferecer um copo de água fresca a um missionário”; e o “copo de água fresca pode trazer pela mão a eternidade” (vd Mt 10,42).
A questão fundamental é: a tarefa de anunciar o Evangelho pertence a todos os membros da comunidade cristã; e os missionários que testemunham a Boa Nova e entregam a vida ao serviço do Reino devem ser acolhidos com entusiasmo, generosidade e amor. E estes missionários devem levar a comunidade à afeição e à prática das bem-aventuranças (vd Mt 5,3-12a), bem como à prática das obras de misericórdia (vd Mt 25,31-46).
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A passagem da Carta aos Romanos (6,3-4.8-11), proclamada como 2.ª leitura, é um grande texto batismal. Pelo Batismo, o cristão renuncia ao egoísmo e ao pecado para viver uma vida nova. Tendo o pecado passado a absolutamente incoerente e absurdo, pois o cristão enxertou-se em Cristo, é preciso ter consciência do compromisso de viver a vida de Cristo: no amor, na partilha, no dom total de si a Deus e aos homens. A cruz de Cristo, como expressão última de uma vida liberta do egoísmo e tornada dom radical, é o golpe decisivo no pecado. Com efeito, a ressurreição do Senhor mostra a vida nova que brota de um “não” resoluto ao egoísmo.
Os cristãos, enxertados em Cristo pelo Batismo, entram a fazer parte do Corpo de Cristo e passam a receber de Cristo a vida que os alimenta. Se neles circula a vida de Cristo, o pecado cede o lugar a essa vida de dádiva, amor, entrega, serviço que conduz à ressurreição, à vida definitiva. O Batismo sepulta o pecado e ressuscita para a vida nova, donde o pecado tem de estar ausente. Batizados na morte de Cristo e com Ele sepultados e ressuscitados, formamos com Ele uma só realidade e vivemos com Ele, por graça, a vida nova.
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Por tudo isto, é justo cantar, saboreando a bondade de Deus, e reconhecer a sua presença no meio de nós com a aclamação terûʽah (Salmo 89,16), o intraduzível grito ruidoso de emocionante alegria, mas que exprime o melhor modo de o povo fiel assinalar junto de si a presença favorável de Deus. Este salmo real começa por celebrar o próprio Deus como rei de Israel e do universo. E, como salmo messiânico, recorda em discurso direto (vv. 4-5) a aliança de Deus com a casa de David (2Sm 7), prometendo que a tornaria firme para sempre. Este entusiasmo não anula nem minimiza o tom de lamentação e súplica com que o salmo termina (vv. 39-53), o que significa que o tempo em que o salmo foi composto estava marcado por acontecimentos trágicos, vividos no presente ou relembrados do passado. Mas a esperança e o louvor a tudo se sobrepõem, de modo que o salmo termina em doxologia:  
Bendito seja o Senhor para sempre! Amen! Amen!”.
Não obstante, acolhemos e cantamos Deus e o seu Messias, como o Reino maravilhoso do amor (agapê – o amor, que exprime a natureza de Deus) já estabelecido no meio de nós e cujo ninho e pregoeiro é a comunidade cristã.
2020.06.28 – Louro de Carvalho

sábado, 27 de junho de 2020

A pandemia de covid-19 tornou ainda mais atual a ‘Laudato Si’



Di-lo o franciscano Frei Hermínio Araújo, em entrevista à Renascença e à Ecclesia, de 26 de junho, onde aborda a temática do guião do “Ano Laudato si” e, no âmbito dos desafios da pandemia de covid-19, aponta que “não podemos pensar que vivemos fazendo as mesmas coisas de uma forma diferente”, diz recear que “acabe tudo na mesma”, sendo o dinheiro a falar mais alto e acusa os políticos de estarem a “brincar com coisas sérias” e não quererem saber do sofrimento das pessoas.
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Referindo-se, em concreto, ao vademecum de orientação para aplicação da ‘Laudato Si’ recentemente divulgado pela Santa Sé sob o título A caminho para o cuidado da Casa Comum’, considera-o “um excelente guia” que “nos quer pôr a caminho”, tal como encíclica, que é o seu ponto de partida. Não se trata dum livro de receitas ou de instruções, mas dum conjunto de propostas que vêm na esteira da ‘Laudato Si’ e do ‘Cântico das Criaturas’.
Concorda que uma das observações feitas a este documento é a falta de uma adequada Teologia da Criação como forma de olhar para o que nos rodeia, colhendo mais inspiração no ‘Cântico das Criaturas’ e minimizando a ideia do castigo de expulsão do paraíso terreal. E observa:
Às vezes encontramos algumas reações a determinadas posições do magistério pontifício atual, [da parte] de pessoas que não estão bem informadas, não estão por dentro desta Teologia da Criação. E corremos o risco de o Papa estar a falar em cebolas e as pessoas entenderem batatas. A Teologia da Criação, neste manual ‘A Caminho para o cuidado da Casa Comum’, não está muito explícita, evidentemente, são coisas muito práticas, mas isso também é importante.”.
É preciso que todos entendam, mas para não se perder o essencial, diz o entrevistado que este manual não deve ser lido sem a encíclica e que esta se deve ler com o ‘Cântico das Criaturas’, até porque ela “não integra tudo o que está no ‘Cântico das Criaturas’ e o que aí está é importante para perceber isto tudo”, sobretudo “para esta fase de pandemia e pós-pandemia”.
Não sendo a “Laudato si’ uma “encíclica verde”, nem um documento só para católicos (nem só para crentes), mas para chegar às pessoas, Frei Hermínio julga que não está a chegar às pessoas”, mas que “tem chegado a algumas”. De facto, ao apontar as boas práticas, de Portugal referem-se duas iniciativas: a ‘Casa Velha – Ecologia e Espiritualidade’; e a rede ‘Cuidar da Casa Comum’. Por outro lado, cita a nossa Conferência Episcopal. Porém, embora apareçamos bem na encíclica, ainda estamos muito aquém dum “caminho que tem de ser feito” a nível geral e da Igreja e “em realidades muito concretas”, como por exemplo as paróquias, a catequese…”.
E importa que se faça esse trabalho de reflexão, porque o manual “é uma espécie de dossiê”, onde não está tudo ao nível dos conteúdos, “mas em termos metodológicos está praticamente tudo ali incluído, para que nada fique de fora”, pois “o princípio da inclusão é o grande princípio da encíclica, porque tudo está interligado, tudo deve ser incluído, e esse é o grande princípio inspirador da Teologia da Criação de São Francisco de Assis”. Não é só “mais um assunto” na vida da Igreja, da sociedade e do mundo”, mas “o assunto fundamental”, pois “aborda questões transversais”. Por isso, embora não fale de tudo, o manual contém tudo o que é essencial e abre “perspetivas numa linha de inclusão”. Por isso, não é só “mais um assunto entre os diversos assuntos da vida da Igreja e do mundo”, nem do Pontificado. Na verdade, acentua o entrevistado, o Papa, logo na inauguração do pontificado, disse ao “que vinha, que a questão fundamental é o ‘cuidar’: cuidar da Terra e dos pobres, cuidar da vida frágil”.  
Tendo a ideia de que tudo está interligado e tendo o mundo sido duramente atingido nos últimos meses por um vírus que, surgindo numa ponta do mundo, pode atingir a população dos cinco continentes, o franciscano foi questionado se “este é o momento de fazer opções concretas de vida”, pois, segundo a ‘Laudato si’ e os apelos do Papa e da Santa Sé, “cada pequeno gesto pode fazer a diferença. E a resposta vem no sentido de que “a mudança já está a acontecer, mas vai demorar muito tempo”, verificando que algumas oportunidades “já foram perdidas” e outras “vão ser perdidas, inclusivamente na vida da Igreja, se os responsáveis mais diretos acharem que isto é só um tema entre muitos outros, se não perceberem que este é o tema transversal a todos os temas”. Ora, “se virmos isto como mais um tópico, vamos perdendo constantemente oportunidades, e então o ‘grito da Terra’ e o ‘grito dos pobres’ não é devidamente acolhido”.
Considerando que, apesar de a pandemia ser uma ameaça global e de, em teoria, estarmos todos ‘no mesmo barco’, os seus efeitos colaterais não são iguais para todos, com as populações mais pobres a serem mais afetadas, Frei Hermínio entende que o ‘grito dos pobres’ “está a ser escutado, mas precisa de ser mais e mais, porque de facto aquela que foi uma espécie de máxima da pandemia naquela fase inicial, o ‘vai ficar tudo bem’, não é verdade”. E prossegue:
Há muita coisa que já não está bem, há muito sofrimento que não está a ser devidamente acolhido, há muito grito que não está a ser escutado e precisa de ser escutado. Imaginem-se aquelas pessoas que perderam um ente querido e nem sequer tiveram oportunidade  de se despedir dele de uma forma conveniente. (…) O luto é um processo de adaptação à perda que tem de ser feito, portanto, há aqui sofrimentos que precisam de ser devidamente levados a sério.”.
Parte da chave de leitura do pontificado de Francisco, o verbo ‘cuidar’, para vincar o seu aspeto operativo e concreto e ponderar que, ao visar “a experiência dos sofredores”, o cuidado “chama-se compaixão” e, como “a compaixão cristã é algo de essencial”, “o grito da Terra e o grito dos pobres” são “duas faces da mesma moeda”. E a quem diga que “agora temos que acolher mais o grito dos pobres, e o grito da Terra tem de esperar um pouco”, o franciscano responde:
Se não acolhemos devidamente o ‘grito da Terra’, vão aumentar os pobres. O grande desafio é perceber que estas duas coisas estão interligadas, e nesta fase de pandemia e pós-pandemia temos de levar isto muito a sério, até para mostrar àqueles que dizem – e isto acontece sempre quando a Igreja aborda questões sociais – que ‘a Igreja deve estar noutro âmbito’. Não, vamos todos levar isto muito a sério e pensar nisto.”.
Depois, chama à colação dois textos fundamentais para a Igreja – as bem-aventuranças e Mateus 25 (com as Obras de Misericórdia e a expressão fundamental: ‘o que fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos foi a mim que o fizestes’) – para dizer que só percebemos o “irmão mais pequenino numa perspetiva contemplativa ao jeito das bem-aventuranças, quando nos disponibilizamos para acolher Deus na vida”, pois não há experiência de Deus “sem experiência de contacto direto com aquele com quem o próprio Jesus Cristo Se quis identificar”. E cita Simone Weil, mística de origem judia que se aproximou do cristianismo (ter-se-á batizado), que diz: ‘A prova de que alguém encontrou Deus não está no modo como fala de Deus, mas no modo como fala das coisas terrenas.
Como, para a ‘Laudato si’, ‘a espiritualidade cristã propõe como forma alternativa de entender a qualidade de vida um estilo de vida profético e contemplativo, que gere profunda alegria sem a obcecação pelo consumo’, Frei Hermínio vê aqui um desafio “profundamente católico” e de “transformação interior das pessoas e da sociedade”, de modo que “não entender isto é passar completamente à margem da experiência católica”.
Aproveita para apresentar Francisco de Assis como a sua primeira referência depois de Cristo, sendo dos modelos mais universais, e para assegurar que “é a partir das coisas terrenas que nos aproximamos de Deus” e que nada tem de católico julgar-se em sintonia com Deus fugindo do mundo. É fundamental o amor a Deus e ao próximo, mas “o próximo são todos os seres”. Assim, “o ‘Cântico das Criaturas’ é o cântico de todos os seres”: inclui “tudo e todos, todas as criaturas, simbolicamente nos 4 elementos: o ar, a água, a Terra e o fogo”. E o ser humano entra com “os pacificadores e os compassivos”, e os “que têm uma visão da vida e da morte numa perspetiva, num horizonte de generosidade. E “isto é muito católico”.
Tendo em conta a grande atualidade desta mensagem, diz que, mesmo se este Ano ‘Laudato Si’ não servir para mais nada, já valeu a pena se houver mais uma pessoa que perceba que isto é transversal, que não é só mais um assunto, mas o assunto de todos os assuntos.
Reconhece que a muito relevante novidade da noção de pecado ecológico que a encíclica traz ao de cima, para ajudar as pessoas a perceber o que está em causa na relação com a natureza e na necessidade de mudar estilos de vida, não está a ser devidamente trabalhada pela Igreja. Com efeito, na “perspetiva da ecologia integral, o pecado ecológico não é mais um para somar à lista”, pois “todos os pecados são ecológicos”. Na verdade, o conceito teológico de pecado não é o de transgressão duma lei ou norma; “no conceito bíblico, é uma rutura de relação”. Por isso, “a questão ecológica é, sobretudo, relação”. Assim, o documento em causa coloca-se no âmbito da Doutrina Social da Igreja, mas é mais do que isso. “Pensamos nas questões éticas, morais, da prática, mas isto é antes, é um modo de ser diferente”. E, no contexto da pandemia, é de referir que, “depois de sair disto, não podemos pensar que vivemos fazendo as mesmas coisas de uma forma diferente”, nem fazendo “coisas diferentes”, mas sendo “pessoas diferentes”.
Além das escolhas pessoais, há as que têm de ser tomadas por quem tem de governar. A isto o entrevistado diz recear “que acabe por ficar tudo na mesma, que o dinheiro continue a falar mais alto”, o que sucederá se nos pusermos “ao nível da mera práxis, do jogo político…”. E chama a atenção para a palavra-chave subjacente à encíclica e com que o manual começa: ‘conversão’, que “não é, essencialmente, uma conversão ética”: “se a mudança não é mais a fundo, é apenas para a gente se “desenrascar”, as coisas não acontecem. Exige-se “uma mudança ontológica, uma mudança do coração”, que não se limita a mudar práticas, mas “é mudar atitudes, mudar a forma de ser”, de que derivam as práticas. “A conversão ecológica de que se fala é, sobretudo, uma conversão espiritual”, que  “pode não ser religião, pois o manual “fala para crentes e não crentes, numa perspetiva ecuménica, inter-religiosa, (…) para agnósticos e ateus. E adverte:
Temos de nos entender numa perspetiva de experiência espiritual, que é essencialmente a experiência de relação da pessoa com ela própria, da pessoa com os outros, da pessoa com tudo, com todos, e, se é crente, com Deus. (…) A conversão ecológica é uma conversão para todos, porque tem a ver com a mudança de formas de ser.”.
O manual contém propostas para a saúde e defesa da vida e considera que eliminar vidas humanas não é aceitável. E o franciscano, invocando o facto de ser das pessoas que em Portugal estão mais por dentro desta problemática, pois é dos padres que está há mais tempo no acompanhamento espiritual em cuidados paliativos, entende que a “questão da eutanásia é estar a brincar com coisas sérias”. E, embora respeite os argumentos da liberdade de quem pede para não continuar a viver, diz que “essa é uma falsa questão”, que temos de levar a sério as pessoas e o seu sofrimento e que “a maior parte das pessoas nem sabe do que está a falar, quando fala de paliativos, nem lhe interessa saber…”.
Neste âmbito, acusa os responsáveis políticos de, salvo algumas exceções, de não saberem nem quererem saber dos cuidados paliativos e de baralharem as coisas, para concluir que agora “estar a introduzir o debate da eutanásia é brincar com coisas muito sérias” contrastando mesmo com tantos e tantas que, no contexto de pandemia, lutaram e lutam para salvar vidas. E explica:
Isto é uma questão de espiritualidade, aliás os próprios cuidados paliativos levam isso muito a sério. Qualquer profissional de cuidados paliativos, mesmo não crente (…) tem um profundo respeito por quem está nos cuidados paliativos e leva muito a sério o acompanhamento espiritual das pessoas, leva muito a sério o acompanhamento da angústia existencial. O argumento de que ‘tenho o direito de pedir a morte porque não quero sofrer’ é uma falsa questão. (…) Quem sabe o que são cuidados paliativos, sabe que isto não é assim.”.
Por fim, esclarece que não se trata de “conversa de padre”, desafiando a que ouçam os que não são padres e não só os que estão mais ligados à religião, sendo que, segundo garante, “há evidência científica até à exaustão para perceber que a espiritualidade é uma mais-valia” e que “o sofrimento existencial pode ser acompanhado”. 
2020.06.27 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 26 de junho de 2020

“A caminho dos cuidados da casa comum”


No passado dia 18 de junho, pelo 5.º aniversário da publicação da Encíclica ‘Laudato si’, como se pode ler no “Vatican News”, a Santa Sé divulgou um documento sob o título “A caminho dos cuidados da casa comum”, que exorta os cristãos a uma relação saudável com a Criação, oferecendo-lhe uma orientação às ações dos católicos nesta magna causa, concretizada em evidências, apelos, exortações, sugestões e propostas.
A apresentação esteve a cargo de: Paul Paul Gallagher, Secretário de Relações com os Estados, da Secretaria de Estado;  Fernando Vérgez Alzaga, LC, Secretário-geral da Província do Estado da Cidade do Vaticano;  Angelo Vincenzo Zani, Secretário da Congregação para a Educação Católica (dos Institutos de Estudos); Bruno Marie Duffé, Secretário do Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral; Aloysius John, Secretário-geral da Caritas Internationalis ; e Tomás Insua, cofundador e diretor executivo do Movimento Global pelo Clima Católico.
Trata-se dum texto redigido pela “Mesa Interdicasterial da Santa Sé sobre ecologia integral”, criada em 2015 para estudar como promover e implementar a ecologia integral, tendo como participantes as instituições ligadas à Santa Sé envolvidas nesta área, algumas Conferências Episcopais e Organismos Católicos. E, ainda que elaborado antes da pandemia da covid-19, este manual ou guia de ação destaca a mensagem principal da Encíclica: tudo está ligado, não há crises separadas, mas uma única e complexa crise socioambiental que postula uma verdadeira conversão ecológica.
Desde logo, vinca a necessidade duma conversão ecológica, que implica a mudança de mentalidade conducente ao cuidado da vida e da Criação, ao diálogo com o outro e à consciência da profunda conexão entre os problemas do mundo. São de valorizar, nesta ordem de ideias, iniciativas como o “Tempo da Criação” e as tradições monásticas que ensinam a contemplação, a oração, o trabalho e o serviço, com vista a educar para o conhecimento da ligação entre o equilíbrio pessoal, social e ambiental.
Reafirmando a centralidade da vida e da pessoa humana, uma vez que “não se pode defender a natureza se não se defende todo o ser humano”, patenteia a indicação para desenvolver, entre as novas gerações, o conceito de “pecado contra a vida humana”, a “cultura do cuidado” e a “cultura do desperdício” – três itens conexos com a vida condigna do ser humano.
Na sequência da valorização da vida e da pessoa humana, vem a família, seu ninho fundamental, como “protagonista da ecologia integral”, alicerçada nos princípios basilares da “comunhão e fecundidade”, podendo tornar-se “lugar educativo privilegiado onde se aprende a respeitar o ser humano e a Criação”. Por isso, os decisores políticos são instados a “promover políticas inteligentes para o desenvolvimento familiar”.
E, ampliando o círculo da responsabilidade pelo cuidado da “Casa Comum”, é instada a escola a ganhar “uma nova centralidade”, tornando-se espaço de desenvolvimento da capacidade de discernimento, pensamento crítico e ação responsável. Assim, o manual sugere a facilitação das conexões casa-escola-paróquia e o lançamento de projetos de formação para a “cidadania ecológica”, isto é, a promoção de “um novo modelo de relacionamento” entre os jovens que vá além do individualismo em prol da solidariedade, da responsabilidade e do cuidado. Também é chamada a universidade – pela sua tripla missão de ensinamento, pesquisa e serviço à sociedade – a girar em torno do eixo da ecologia integral, incentivando os estudantes a assumirem “profissões que facilitem mudanças ambientais positivas”. Por conseguinte, é-lhe deixada a sugestão específica de “estudar a teologia da Criação, na relação do ser humano com o mundo”, consciente de que o cuidado da Criação postula “uma educação permanente”, um verdadeiro “pacto educativo” entre todas as entidades envolvidas.
Este vade mecum, na tradição católica, reafirma categoricamente que o compromisso com o cuidado da casa comum não é uma opção secundária, mas “é parte integrante da vida cristã”. Mais é “uma excelente área” para o diálogo e colaboração ecuménica e inter-religiosa, pois, com a sua “sabedoria”, as religiões podem incentivar um estilo de vida “contemplativo e sóbrio” que leve à “superação da deterioração do Planeta”.
É de relevar o capítulo dedicado à comunicação e à sua “profunda analogia” com o cuidado da casa comum, pois baseiam-se na “comunhão, relacionamento e conexão”. No contexto duma “ecologia dos media”, os meios de comunicação são chamados a destacar as ligações entre “o destino humano e o ambiente natural”, fortalecendo os cidadãos e combatendo as “fake news”.
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No âmbito do tema da alimentação, recordam-se as palavras do Papa Francisco: “A comida que é jogada fora é como se fosse roubada dos pobres(LS, 50). Daí, a condenação do desperdício alimentar como ato de injustiça, o apelo à promoção duma agricultura “diversificada e sustentável”, em defesa dos pequenos produtores e dos recursos naturais, e a necessidade urgente duma educação alimentar saudável quantitativa e qualitativamente.
Depois, vem o forte apelo ao combate a fenómenos como a apropriação de terras, os grandes projetos agroindustriais poluidores, bem como o apelo à proteção da biodiversidade – apelo que se repete no capítulo dedicado à água, cujo acesso é “um direito humano essencial”, pelo que se impõe o combate ao desperdício e aos critérios utilitários que levam à privatização deste bem natural. Na mesma ordem de ideias, se apela à redução da poluição, à descarbonização do setor energético e económico e ao investimento em energia “limpa e renovável”, acessível a todos.
Também estão no coração da ecologia integral os mares e oceanos como “pulmões azuis do planeta”, que exigem uma governança focada no bem comum de toda a família humana e na subsidiariedade. Destaca-se a urgência da promoção duma “economia circular” que não vise a exploração excessiva dos recursos produtivos, mas a sua manutenção a longo prazo, com vista à sua reutilização. E, porque tudo tem o seu valor, deve superar-se o conceito de ‘rejeição’. Ora, tudo isso será possível só através da interação entre inovação tecnológica, investimento em infraestrutura sustentável e crescimento da produtividade dos recursos.
Nestes termos, o setor privado é chamado a operar com transparência na cadeia de suprimentos, urgindo a reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis e a tributação das emissões de CO2. E, no campo do trabalho, espera-se a promoção do desenvolvimento socioeconómico sustentável para erradicar a pobreza; caminhos socioprofissionais em prol dos marginalizados; trabalho digno, salários justos, combate ao trabalho infantil e à informalidade; uma economia inclusiva, na promoção do valor da família e da maternidade; e a prevenção e erradicação de “novas formas de escravidão”, como o tráfico.
Também o mundo das finanças deve desempenhar o seu papel em torno do “primado do bem comum” e no esforço de pôr fim à pobreza. Com efeito, como se lê no texto, “a própria pandemia da covid-19 mostra como é questionável um sistema que reduz a assistência ou permite grandes especulações mesmo em infortúnios, voltando-se contra as pessoas mais pobres”. Assim, impõe-se o fim dos paraísos fiscais, a sanção das instituições financeiras envolvidas em operações ilegais e o estabelecimento da ponte entre os que têm acesso ao crédito e os que não o têm. E exorta-se à promoção de “uma gestão dos bens da Igreja inspirada na transparência, coerência e coragem” na perspetiva da sustentabilidade integral.
A nível das instituições, enfatiza-se a “primazia da sociedade civil”, ao serviço da qual se deve dedicar a política, os governos e as administrações; propõe-se a globalização da democracia substantiva, social e participativa, e uma visão de longo prazo baseada na justiça e na moralidade e na luta à corrupção; importa promover o acesso à justiça para todos, incluindo os pobres, os marginalizados, os excluídos; e é preciso “repensar prudentemente” o sistema prisional, promovendo a reabilitação dos reclusos, sobretudo jovens em primeira condenação.
O texto aborda a saúde como “questão de equidade e justiça social” reafirmando a importância do direito ao tratamento. E, porque, ao mesmo tempo que se degradam “as redes ecológicas”, se degradam também “as redes sociais e em ambos os casos são os mais pobres que pagam as consequências”, entre as várias sugestões do manual, há as do exame dos perigos associados à “rápida disseminação de epidemias virais e bacterianas” e da promoção de cuidados paliativos.
Por fim, aborda-se a questão climática, na convicção da sua “profunda “relevância” ambiental, ética, económica, política e social, “afetando acima de tudo os mais pobres”. Por isso, urge “um novo modelo de desenvolvimento” que articule sinergicamente as lutas contra as mudanças climáticas e contra a pobreza “em harmonia com a Doutrina Social da Igreja”. E, porque “não se pode agir sozinho”, apela-se ao compromisso com o desenvolvimento sustentável “com baixo carbono” para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Assim, entre as propostas nessa área, ressalta o reflorestamento de áreas como a Amazónia e o apoio ao processo internacional de definição da categoria de “refugiado climático” para garantir a “proteção jurídica e humanitária necessária”.
E o último capítulo contempla o compromisso do Estado da Cidade do Vaticano, que abrange 4 áreas operacionais a que se aplicam as indicações da “Laudato si”: proteção ambiental, pela recolha seletiva de resíduos em todos os escritórios; proteção dos recursos hídricos, com circuitos fechados para a água das fontes; cuidado de áreas verdes, pela redução progressiva de agrotóxicos; e consumo de recursos energéticos, com a instalação, em 2008, no telhado da Sala Paulo VI, dum sistema fotovoltaico e com os novos sistemas de iluminação com economia de energia na Capela Sistina, na Praça de São Pedro e na Basílica do Vaticano, a reduzirem os custos em 60%, 70% e 80%, respetivamente.
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Enfim, enquanto apela aos Estados, instituições, privados, escolas e universidades, famílias e pessoas no âmbito da ecologia integral, o Papa induziu o Estado da Cidade do Vaticano a dar o exemplo estando na linha da frente. Resta lembrar os propósitos do documento: relançar a riqueza do conteúdo da encíclica, muito atual como fica evidente no contexto da pandemia; oferecer orientação sobre a sua leitura, promovendo os seus elementos operacionais decorrentes das reflexões contidas nela e minimizando os riscos de mal-entendidos; e instar à colaboração entre os departamentos da Cúria Romana e as instituições católicas envolvidas na disseminação e implementação da “Laudato Si” , aumentando as numerosas sinergias.
2020.06.26 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Testes e jovens não justificam recrudescimento de covid-19


Tanto o Primeiro-Ministro como o Presidente da República têm mostrado o seu claro desagrado perante os comportamentos dos mais jovens, apontando-os como uma das fortes justificações para o aumento do número de novos casos de covid-19, especialmente na região de Lisboa e Vale do Tejo, e têm enfatizado o papel da testagem nos números totais, pois, quanto mais se puder testar, mais casos encontrarão. E este é o argumento que o Governo, a diversas vozes, tem usado para criticar as reservas levantadas por outros países europeus.
Pelos vistos, os especialistas não sustentam tal postura. Como adianta o jornal Observador, as teses apresentadas por Costa e Marcelo foram contrariadas na reunião do dia 24 na sede do Infarmed, em Lisboa. Baltazar Nunes, epidemiologista do Instituto Nacional de Saúde Pública (INSA), e Rita Sá Machado, da Direção-Geral de Saúde (DGS), “desconstruíram o argumento dos testes” e alertaram para o facto de o problema ser real. Com efeito, embora o país esteja a testar mais, ocupando o nono lugar do top de testes feitos por milhão de habitantes, essa não será a grande razão para o crescente aparecimento de novos casos confirmados de infeção. Haverá outros fatores a ter em conta, designadamente “o número de testes positivos por teste realizado”, caso em que a nossa “taxa de positivos é muito elevada” – por cada 28 testes realizados Portugal regista um caso positivo –, ficando atrás de Portugal apenas a Bulgária e a Suécia, no contexto da UE a 27. E não pode diminuir-se a capacidade de testagem.
Quanto aos jovens, não existem sinais relativamente a contágio mais elevado junto deste grupo etário, sendo a única exceção conhecida a festa de Lagos, onde a maioria dos infectados é jovem – totalizando já mais de 100 infetados.
Também as festas e ajuntamentos não serão o maior problema. Dificilmente as festas ilegais – que levaram o Governo a prometer mão pesada para os prevaricadores – podem ser usadas como catalisadores determinantes. Na verdade, o primeiro fator de contágio em Lisboa tem sido a coabitação; o segundo, o contexto laboral; e o terceiro, o contexto social, nomeadamente aquele em que vivem os doentes. Nas freguesias da Grande Lisboa assinaladas pelas autoridades, o mais lógico, como assumiram os especialistas, é que o aumento de casos esteja relacionado com as condições de habitação e de trabalho.
Posto isto e desconstruídos os argumentos, os especialistas alertam para uma possível segunda vaga, que pode ter Lisboa como epicentro. Existe já pressão sobre os hospitais, mas, por exemplo, o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, só tem uma taxa de ocupação de 25% para doentes de covid-19, pelo que há margem de resposta.
O problema é real, pois o número médio de internados aumentou, o número de pessoas em cuidados intensivos e continua a haver pessoas que morrem.
Em termos globais, o R situa-se em 1,08, com algumas variações, o que, isoladamente, não seria fator alarmante. Porém, os técnicos de saúde ouvidos pelo Governo e pelos líderes partidários não souberam avançar com explicações concretas sobre o aumento de contágios registado.
Parece que a predita reunião, supostamente de técnicos que os políticos quereriam ouvir para sustentar a tomada de medidas política e diplomáticas, mostrou o começo dum novo momento político: a pandemia e os dados a ela inerentes passaram a ser motivo de luta partidária. Com efeito, PSD, CDS, Bloco e PAN fizeram críticas no final, com um discurso sobre o conteúdo da reunião de tom diferente do discurso presidencial. E Marcelo Rebelo de Sousa manteve a linha que traçou, sem descolar do Governo, pois a tese que prevalece em Belém é a de que no topo do poder não pode haver divergências públicas sobre a pandemia.
Segundo os observadores, ainda que de forma elegante, “os especialistas acabaram por desmentir o Primeiro-Ministro”, que “tentou colocar a hipótese, de forma quase afirmativa” no aumento da nossa capacidade de testagem. Porém, houve um dado assumido pelos epidemiologistas: a diminuição do número de testes nos últimos 15 dias, atribuída ao período dos feriados e a reforçar a notícia avançada, no dia 23, pelo Jornal de Negócios: de acordo com os dados oficiais divulgados pelas autoridades de saúde, o número médio de testes de diagnóstico de covid-19 realizados diariamente caiu 24% desde o início da reabertura da economia, a 4 de maio. Por outro lado, Portugal está, de momento, a fazer em média um teste por cada mil habitantes, mas a 18 de maio estava a fazer 1,5 testes por cada mil habitantes.
E António Costa mostrou desagrado com a falta de dados disponíveis e criticou a informação sobre testagem, nomeadamente o facto de o INSA só compilar dados do SNS e não dos laboratórios privados – a que muitas empresas, sobretudo de construção civil, têm recorrido (e que o fazem num sentido de cooperação com a saúde pública).
Marcelo Rebelo de Sousa tentou, à saída da reunião, desdramatizar a situação. Não só garantiu que a situação estava controlada, como justificou o número de infetados com o aumento de testes e assegurou que “temos adotado a metodologia da verdade”, sem ocultar números. Na reunião, o Presidente tinha perguntado se os novos casos podem ser de população trabalhadora que nunca chegou a confinar e se a situação só se conheceu por causa dos testes entretanto realizados. Costa acompanhou a ideia do Presidente, mas aduziu que só com mais estudos será possível apurar melhor o que se passou.
Acabada a reunião, Ricardo Baptista Leite (PSD), Moisés Ferreira (BE) e Francisco Rodrigues dos Santos (CDS) alinharam pela explicação dos especialistas: o aumento de testes não justifica por si o fenómeno que se regista em Lisboa e Vale do Tejo, sendo de reconhecer o problema e adotar medidas para travar um aumento exponencial de casos. Por seu turno, PAN, Verdes, Iniciativa Liberal e Chega limitaram-se a tecer críticas ao Governo.
O Chefe de Estado expôs a intenção de articular o discurso público e todos concordaram com a hipótese de se afinar a articulação do discurso político com marketing social para passar mensagens à população ou subpopulações tendo em conta fatores específicos.
Manuel Carmo Gomes, professor de Epidemiologia da Universidade de Lisboa e conselheiro de Costa, prefere medidas gerais como mais ineficazes às mais direcionadas. E o Primeiro-Ministro pediu explicações concretas sobre o surto, não se tendo avançado com medidas concretas.
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Cientistas, na incerteza, dividem-se nas asserções; políticos (que devem e querem ouvir os especialistas) têm dificuldade em acertar nas medidas e, permeáveis a pressões dos agentes económicos, mas defensores da saúde, oscilam entre avanços e recuos e insistem nas suas teses. As conferências de imprensa diárias desacreditaram-se, os dados diários de infetados por município foram estigmatizantes e os números atinentes a aumentos de casos do dia anterior (e não dum conjunto de dias anteriores) geraram alarmismos. Os avanços na testagem viram-se contra o país; os critérios devem incidir sobre mortos, internados em UCI, internados, infetados e recuperados. 
E a diplomacia não fez o seu papel de explicação. Ainda vai a tempo, mas não com futebóis!
2020.06.25 – Louro de Carvalho