Depois de
Jesus fazer aos Doze Apóstolos apelos ao despojamento radical (sem ouro, prata, cobre, alforge, duas
túnicas, sandálias, cajado ou pão – apenas paz) e os avisar das perseguições que lhes adviriam de
todos os lados, o discurso missionário prossegue com a perícopa evangélica
mateana (Mt 10,26-33), proclamada neste XII domingo do
Tempo Comum, Ano A, atravessada pela confiança em Deus, nosso Pai celeste e
nossa providência (cuida
de nós sempre).
Por isso,
fica evidenciado o iterativo incentivo à confiança “Não tenhais medo!”, com o emprego do verbo grego “phobéomai, a soar neste pequeno texto por três
vezes (Mt 10,26.28.31).
Estamos ante uma expressão que surge com alguma frequência no Antigo
Testamento dirigida a Israel (cf Is 41,10.13; 43,1.5; 44,2; Jr 30,10) ou a um profeta (cf Jr 1,8), sempre no contexto
da eleição: Deus elege alguém (povo ou pessoa) para o seu serviço; confiando-lhe uma
missão profética no mundo; e, porque sabe que o eleito enfrentará forças
adversas, que redundarão em sofrimento e perseguição, assegura-lhe a sua
presença, ajuda e proteção. Também aqui Jesus, ao enviar os discípulos, que
chamou e escolheu, assegura-lhes a sua presença, ajuda e proteção, para que
superem o medo e a angústia resultantes da perseguição, na linha da última
bem-aventurança: “Felizes sereis quando, por minha causa, vos insultarem,
perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós” (Mt 5,12).
Assim, a
coragem serena deve mover o discípulo e enviado a falar claro, à luz do dia ou
sobre os telhados, em todas as circunstâncias. De facto, sendo missionário, o
discípulo não pode viver oculto em catacumbas ou enclausurado no muralhame do
seu grupo de pertença ou de conforto, mas deve capacitar-se para enfrentar o
risco do mundo e da vida.
Na verdade, no âmbito do convite à superação do medo, Jesus pede aos
discípulos que não deixem o medo impedir a proclamação aberta da Boa Nova, pois
a mensagem libertadora não pode correr o risco de ficar circunscrita a um
pequeno grupo, pusilânime ou comodamente fechado, sem correr riscos, nem
interpelar a ordem injusta sobre a qual o mundo se constrói, mas deve ser
proclamada com coragem, convicção e coerência, de cima dos telhados, a fim de
mudar o mundo e tornar-se Boa Nova libertadora para todos os homens e mulheres.
Depois, o Mestre recomenda que não temam a morte física, pois, o
decisivo, para o discípulo, não é que os perseguidores o possam eliminar, mas
perder a possibilidade de chegar à vida plena. E o cristão sabe que a vida
definitiva é um dom, que Deus oferece aos que acolheram a sua proposta e
aceitaram pôr a própria vida ao serviço do Reino. Assim, os discípulos que
procuram trilhar fielmente o rumo de Jesus não vivem angustiados pelo medo da morte.
Por fim, Jesus insta à descoberta da confiança em Deus. E, a ilustrar a
singular solicitude de Deus, surge o recurso, caraterístico de Jesus, a duas
imagens simples da vida campestre: a dos passarinhos, de que Deus cuida – tocante
ternura e preocupação de Deus pelas criaturas, mesmo as mais insignificantes; e
a dos cabelos, que Deus conta, vincando o Mestre a forma peculiar, única,
profunda, como Deus conhece o homem, com a sua especificidade. Deus é “Pai”,
cheio de amor e ternura, sempre preocupado em cuidar dos filhos, entendendo-os
e protegendo-os. A certeza de ser filho de Deus alimenta a capacidade do
discípulo em empenhar-se na missão sem medo, prevenções, preconceitos e
condições. Nada calará o discípulo que põe a sua confiança na solicitude
amorosa de Deus Pai. Com efeito, vendem-se dois passarinhos por um asse, uma moedinha de cobre, pequenina,
que valia 1/16 avos de um denário (O denário era o equivalente ao salário dum dia do trabalhador) e “nem
um deles cairá por terra sem consentimento do vosso Pai”. Portanto, se
Deus, nosso Pai, cuida desses passarinhos, pequeninos, e está atento aos nossos
cabelos, quanto mais fará sentir a sua providência sobre nós (cf Mt 10,29-31)!
***
Concomitante
à confiança e por superioridade do homem aos passarinhos, aos lírios do campo
ou aos cabelos da nossa cabeça, temos o apreço do Senhor pela pessoa humana,
sejam os que estão investidos na profecia, no apostolado, na missionação ou na
política por força do chamamento e escolha, sejam os pobres de coração, sejam
os explorados e os descartados. De facto, Ele cuida de nós, porque nos
reconhece na dignidade de criaturas especiais e faz-nos saber que a dignidade
da pessoa humana é um valor evangélico sem variações. E Jesus olha para as
pessoas como pessoas tirando-as dos preconceitos sociais, políticos e
religiosos que as desconsideravam. Tais eram as doenças estigmatizantes, as
deficiências ditas castigo divino, os pecados hipocritamente abjurados por quem
os fomentava, as possessões diabólicas, as profissões socialmente menos consideradas,
as manifestações político-religiosas de xenofobia, a viuvez, a orfandade e a
condição de mulher ou de criança. E Ele oferecia a cura, o perdão, a escolha, a
paz, a serenidade – porque ama e é misericordioso, mas condenava a hipocrisia e
o puritanismo, a segregação e a exploração, porque a mentira, a tibieza e a
duplicidade O enojam.
A dignidade
da pessoa humana perpassa toda a Doutrina Social da Igreja (DSI) que faz a clara aposta na
centralidade da pessoa humana. Com efeito, segundo a Gaudium et Spes (Constituição Pastoral da Igreja no mundo contemporâneo, do Vaticano II), o enigma do homem só se entende à
luz do mistério o Verbo Incarnado (GS, 22). E todo o seu cap. I é dedicado à Dignidade
da Pessoa Humana. Porém, o ponto-chave é a visão antropológica da DSI,
resumida em termos de “homem criado por Deus à sua imagem e resgatado pelo
sangue de Jesus Cristo” (Sollicitudo
Rei Socialis, 29). A partir daí, há a defesa do
primado do ser humano sobre o social e sobre as reivindicações totalitaristas
de várias ideologias que atravessaram a história recente da humanidade, embora
a pessoa seja sempre um ser-em-relação e situado numa sociedade concreta. Assim, a DSI, estribada numa perspetiva personalista, mostra a sua capacidade de
interpretar unitariamente, e não só “por fragmentos”, o fenómeno social, pela
proposta de um projeto complexo de edificação da sociedade, que envolve todos
os aspetos fundamentais da experiência social: pessoal, comunitária e
institucional – projeto articulado sobre a dignidade e o primado absoluto da
pessoa humana, como não se tem cansado de afirmar Francisco corroborando e
dando um novo e mais forte alento à doutrina dos predecessores e do Concílio.
São João
Paulo II, na Encíclica Evangelium Vitae,
tendo em conta que o Filho de Deus assumiu um corpo humano, valoriza a vida sem
variações no quadro da dignidade da pessoa humana:
“A
Igreja, perscrutando assiduamente o mistério da Redenção, descobre com assombro
incessante este valor, e sente-se chamada a anunciar aos homens de todos
os tempos este ‘evangelho’, fonte de esperança invencível e de alegria
verdadeira para cada época da história. O Evangelho do amor de Deus
pelo homem, o Evangelho da dignidade da pessoa e o Evangelho da vida são um
único e indivisível Evangelho. É por este motivo que o homem, o homem vivo,
constitui o primeiro e fundamental caminho da Igreja.” (EV, 2).
E, sendo o
grande escopo da encarnação e redenção que tenhamos a vida e a tenhamos em
abundância (cf Jo 10,10), o Papa Woijtyla evoca a ordem
genesíaca para ensinar que “ao homem foi dada uma dignidade
sublime, que tem as suas raízes na ligação íntima que o une ao seu
Criador”, brilhando no homem “um reflexo da própria realidade de Deus”. Na
verdade, o homem está no “vértice da atividade criadora de Deus, como seu
coroamento, no termo de um processo que vai do caos indefinido até à criatura
mais perfeita”. Ou seja, “na criação, tudo está ordenado para o homem e
tudo lhe fica submetido: ‘Enchei e dominai a terra. Dominai (...)
sobre todos os animais que se movem na terra’ (Gn 1,28) – ordena Deus ao homem e à mulher”. Afirma-se assim “o
primado do homem sobre as coisas: estas estão ordenadas para o homem e
entregues à sua responsabilidade, enquanto por nenhuma razão pode o homem ser
subjugado pelos seus semelhantes e como que reduzido ao estatuto de coisa”. Enfim,
na narração bíblica, a distinção entre o homem e as demais criaturas é
evidenciada sobretudo pelo facto de apenas a sua criação ser apresentada como
fruto duma especial decisão da parte de Deus, da deliberação de
estabelecer uma ligação particular e específica com o Criador: ‘Façamos
o homem à nossa imagem e semelhança’ (cf Gn 1,
26). A
vida que Deus oferece ao homem é um dom pelo qual Deus
participa algo de Si mesmo à sua criatura.” (cf EV, 34).
Com razão no
Salmo 8 o salmista canta:
Contemplo os
teus céus, obra das tuas mãos,
a lua e as
estrelas que Tu estabeleceste!
Que é o ser
humano para te lembrares dele,
o filho do
homem, para com ele te preocupares?
Fizeste dele
pouco menos que um deus,
de glória e
de honra o coroaste.
Deste-lhe
domínio sobre as obras das tuas mãos,
tudo
colocaste debaixo dos seus pés:
ovelhas e
bois, todos sem exceção,
e até os
grandes animais selvagens;
aves do céu
e peixes do mar,
que
percorrem as rotas do oceano.
Ó Senhor,
Senhor nosso,
como é
admirável o teu nome em toda a terra! (Sl 8,4-10)
Em suma, a
dignidade do homem resulta de ele ser imagem de Deus, de Deus lhe ter concedido
domínio sobre todas as coisas, de Deus o amar infinitamente e de o respeitar na
sua liberdade, de Se encarnar e deixar morrer para que viva e viva
abundantemente.
2020.06.21 – Louro de Carvalho
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