terça-feira, 16 de junho de 2020

Réplica das “Conversas em família” ou número de campanha eleitoral


Em 20 de setembro de 2018, quando se jubilou por atingir o limite de idade (70 anos) e deu formalmente a última aula na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa revelou o sumário predileto da sua carreira académica: “conversa amena com os rapazes”. Agora, sozinho numa aula no âmbito do projeto “#EstudoEmCasa” – parceria entre o Ministério da Educação (ME) e a RTP (ressuscitação da velha telescola) para a produção de conteúdos televisivos para os alunos do 1.º ao 9.º anos de escolaridade, sem aulas presenciais no período da pandemia – o Presidente da República que, na despedida das aulas de Direito confessara ter encontrado na escola “a verdadeira vocação da vida”, apresentou-se desejando “boa tarde”, dizendo o seu nome e invocando a condição de “professor”.
Enfim, o Professor Marcelo aproveitou o ensejo do desenvolvimento do projeto do tele-ensino para, supostamente através dos alunos do 3.º Ciclo, deixar alguns recados aos portugueses e ao mundo. Só assim percebo que tenha desdobrado a presunta aula em 10 lições, que poderiam ter constituído 10 itens concatenados numa aula de feição normal ou, de melhor feição, o professor poderia ter desenvolvido mais a fundo só um desses itens e faria um brilharete. Porém, o momento é propício ao envio duns recados aos cidadãos, ao Governo, às oposições e ao mundo, quando se avizinha uma campanha eleitoral para as eleições presidenciais de 2021.   
O docente universitário, que gostava e gosta de dar passos na aula e gesticular (quando era comentador de televisão também era espetacular na gesticulação), teve um desempenho quase igual na exuberância de gestos, mas limitado nos passos por força da exiguidade do estúdio, que estava atravancado por duas mesas e uns quadros, que não utilizou.
Como a aula, no âmbito do “#EstudoEmCasa” foi passada no canal RTP Memória, a prestação do Chefe de Estado trouxe-me em recordação as “Conversas em Família” que Marcello Caetano, Presidente do Conselho de Ministros e padrinho do atual inquilino de Belém, desenvolvia na RTP na década de 70. Eram momentos propícios para inspirar confiança e segurança nos cidadãos e vergastar os opositores, que levantavam a cabeça num regime autocrático, e os desordeiros que se abalançavam pelo perímetro continental, bem como as instâncias internacionais eivadas do vírus da democracia representativa ou tomadas pela bactéria comunista. Não fez como o padrinho, que, tendo também o jeito professoral de passear nas aulas, nas conversas televisivas, estava sentado de perna cruzada. Rebelo de Sousa, ao invés, manteve-se de pé e dando alguns passos, mas não fez um silêncio, não fez uma pergunta (a não ser no início), não imaginou uma resposta, não usou um qualquer meio audiovisual: limitou-se a expor falando, não sendo exemplo. Porém, dizem que esteve muito bem e que até tem jeito.
Já os pormenores da vida pessoal, familiar e amical fazem-me lembrar os formosos improvisos que o Presidente da República de então proferia depois de ter cortado mais uma fita.          
Não duvido de que os conteúdos aflorados e pouco desenvolvidos pelo Presidente de todos os Portugueses têm plena validade – por isso, os refiro –, mas dispensavam-se bem os minuciosos pormenores trazidos à colação atinentes à sua vida pessoal, familiar e amical.
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A aula sobre cidadania começou com um ‘abraço’ aos professores, “que tanto trabalharam para meter de pé estas aulas”, e aos pais e avós, “que nunca estudaram tanto na vida como nos últimos tempos”. E agradeceu ao ME e à RTP por este “grande serviço ao país”.
E a sessão prosseguiu com as 10 lições, que o professor ia enumerando e enunciando.
Desde logo, em primeiro, apontou a primordial relevância da vida e da saúde, sem as quais o resto não tem sentido, e agradeceu ao SNS e aos profissionais de saúde, que “são excecionais”.
Em segundo lugar, considerou que, “se a pandemia é de todo o mundo, deve ser todo o mundo unido a tratar da pandemia, a prevenir, a evitar, e, depois, a responder e a combater”, o que não sucedeu, pois, “em muitos momentos, cada um foi para seu lado”, o que fez sofrer mais as pessoas. E fez votos por que tal não suceda “quando chegarem os medicamentos e as vacinas”, que devem ser para todos, não podendo haver “cidadãos de primeira ou de segunda”.
A seguir, criticou a Europa pela sua distração inicial. Alguns países pensaram que escapavam ao vírus, como se ele conhecesse fronteiras. Contudo, embora tarde, a Europa percebeu e “foi menos egoísta do que foi boa parte do mundo”.
Sobre o confinamento, que teve de ser, observou que “só pudemos ficar em casa durante semanas ou meses porque houve quem fosse trabalhar para não parar a economia – nos transportes, no lixo, nos hospitais, os camionistas (...) que aguentaram com risco.”.
Quanto à propalada democraticidade do vírus, disse que, podendo atacar toda a gente, ataca sobretudo os idosos e mais doentes, pelo que os mais jovens, para os protegerem, devem seguir as regras de saúde e “não pensar que são eternos” – pensamento normal nessas idades.
E, nesse quadro, enunciou outra exceção: “o vírus ataca todos, mas ataca sobretudo os mais pobres, os mais fracos e os mais carenciados(“um em cada 5 portugueses vive abaixo do nível de pobreza”), que “têm menos capacidade de resposta”, pelo que temos de mudar um bocadinho.
No atinente aos cidadãos da nossa diáspora, frisou que tivemos de lhes pedir que não viessem nas férias da Páscoa e que “agora estamos a pedir aos milhares que vêm de férias de verão para terem cuidado”. E eles “perceberam, aceitaram, colaboraram e vão colaborar”.
Sobre a singularidade desta experiência, disse que “é uma sensação única” e “inesquecível”, constituindo uma grande lição de vida. Ainda que, no meio de algumas irritabilidades, houve ensejo para as famílias se conhecerem melhor, sendo isto “do melhor que temos na vida”.
Em relação ao que mudou, disse que “nunca se estudou tanto pela Internet e com o apoio da televisão; nunca se trabalhou tanto de casa com o computador; nunca se falou tanto com amigos através da Internet”. E disse ter descoberto “o valor das pequenas coisas”. E aqui disse algo de dispensável: de tanto passear – quilómetros – no Palácio de Belém, passou a conhecer-lhe todos os cantos. Ora, como os outros não têm o Palácio de Belém, uns viveram encaixilhados em moradias, outros encaixotados em apartamentos, outros arejados em casas esburacadas ou na rua e outros asfixiados em habitáculos sem condições sanitárias. E o ainda professor exortou:    
Vocês estiveram algum tempo presos em casa, agora deem valor àqueles que estão presos em casa contra a vontade” (não só os reclusos, mas os enfermos e os velhinhos sem condições de mobilidade).
Por fim, a categórica asserção sobre o sacrifício feito, “só foi possível chegar aonde chegámos porque fizemos o sacrifício que tínhamos de fazer”; e uma exortação-conforto:
Para vocês para quem o ano não correu assim tão bem, não fiquem desanimados, que não é o fim do mundo. A grande aula da vossa vida foi viver o que viveram.”.
E não nos poupou às lamúrias sobre a falta de banhos de mar e o modo como olha ou não para a praia e a sensação que teve quanto voltou a nadar, assim como relatou os abraços e beijos que o filho lhe dera antes do reembarque para o Brasil. E, assumindo “a fama de beijoqueiro”, confessou que aquilo que mais deseja é “o fim a proibição de abraçar e beijar as pessoas”.
Além dos belos conteúdos, um bom locus de campanha para o Presidente dos Afetos”.  
 2020.06.16 – Louro de Carvalho

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