É
recorrente dizer-se que a pandemia da Covid-9 levou os cristãos a experienciar
a família como “Igreja doméstica”, expressão tão bem acentuada no Concílio
Vaticano II e, como dizia o Padre José Manuel Pereira de Almeida, tantas vezes
formulada em termos abstratos.
Algumas
reflexões até salientaram os séculos em que o cristianismo sobreviveu no Japão
apoiado na fé transmitida, vivida e celebrada nas famílias de forma clandestina,
tal como noutros países em que a mudança política redundou em regime hostil ao
ser e viver cristãos ou quando as guerras civis dificultavam a presença e a
ação de pastores. E alguns chegaram a referir que a Igreja dos primeiros tempos
encontrava-se e celebrava só nas casas de famílias que albergavam a fração do
pão, o que não é totalmente exato, como veremos adiante.
Na
verdade, o Concílio Vaticano II chamou à família
a “Igreja doméstica” (LG, 11), onde Deus
reside e é reconhecido, amado, adorado e servido, e ensinou que a salvação da
pessoa e da sociedade está intimamente ligada “à condição feliz da comunidade
conjugal e familiar” (GS,47). E São João
Paulo II chamou à família “Santuário da vida” (vd
Carta às Famílias, 11) e “património
da humanidade” (LG,11). Com efeito, “a
família é uma comunidade insubstituível por qualquer outra”; Jesus habita com a
família cristã, nascida no Sacramento do Matrimónio; e a sua presença
nas Bodas de Caná significa que o Senhor quer estar no meio da família, ajudando-a
a vencer todos os desafios com que se depara. Por sua vez, o Papa Woijtyla tinha a família como o âmbito
privilegiado para fazer crescer “as potencialidades pessoais e sociais que o
homem leva inscritas no seu ser”. Por isso, se a família, edificada segundo a
vontade de Deus, for espezinhada e destruída, a sociedade sofrerá as consequências,
devendo os cristãos lutar pela preservação da família segundo o coração de
Deus.
Igreja e
família não se excluem, mas são, uma para a outra, lugares de participação no mistério
da revelação de Deus na história, já que a Igreja concretiza a sua missão
edificando as famílias e as famílias constroem a Igreja. Têm uma missão comum,
sendo que “o futuro da humanidade passa pela família” (FC – Familiaris Consortio 86) porque o “ser da família” é luz para o mundo. Assim,
a edificação de cada família cristã coloca-se no âmbito da grande família da
Igreja, que a sustenta, a transporta e lhe garante sentido e futuro com base no
“sim” do Criador. E a Igreja é edificada pelas famílias, “pequenas Igrejas
domésticas”, como lhes chama o Vaticano II, retomando uma antiga expressão
patrística, a “ecclesiola”, igreja em miniatura, de São João Crisóstomo.
E a FC afirma que “o matrimónio cristão (…) é o lugar natural em que se
realiza a inserção da pessoa humana na grande família da Igreja” (n. 86).
A família, lugar
por excelência de santificação mútua, é realidade eclesial, sinal da união de
Cristo com a sua Igreja, onde de certo modo o mistério da Igreja está presente (cf LG 11e FC 49) e a sua missão é ser comunidade que salva (cf FC 49), ao serviço da edificação do Povo de Deus (cf CIC 1534). E São João Paulo II na FC, referindo a Sacrosanctum Concilium, diz:
“O dever de
santificação da família tem a sua raiz no Batismo e a sua expressão máxima na
Eucaristia, à qual está intimamente ligado o matrimónio cristão” (FC 57).
A pari, a família
é uma realidade intergeracional. Os esposos, no papel de pais, representam o
amor divino que respeita e promove a diferença e a alteridade de cada um. Os
pais deram a vida no nome do Senhor e representam, aos olhos dos filhos, o Deus
bom (cf Lc 18,19). E a comunhão entre gerações é fortificada no
contexto parental em que os pais percebem a exigência de amar e honrar os
filhos como filhos de Deus (cf Jo 1,12; São João Paulo II, Carta às
famílias, n. 22). Nestes
termos, a família é sinal e sacramento da presença do Deus Triúno. Nela se
manifesta uma presença particular do mistério divino (cf São João
Paulo II, Carta às famílias, n. 22), pois a comunhão na verdade e no amor vem de Deus e constrói-se com Ele,
por Ele e n’Ele e o mistério trinitário determina as relações interpessoais dos
esposos e dos outros membros da família.
Se a família exprime a natureza da Igreja, tem um papel crucial no lugar onde se insere (bairro, cidade,
vila, aldeia, paróquia, diocese e cultura). É
manifestação local, corporal, da comunhão eclesial.
Segundo o
Vaticano II (cf AA n. 11), a família é “o santuário da Igreja em casa”. Na
verdade, não há nenhuma história familiar banal, porque cada história de amor,
que está na sua base, remete para a Providência que dá sentido a todas as vidas
e conhece a todos pelo nome. O amor da Igreja pela humanidade, na missão de
Cristo, transparece nesta comunhão de pessoas. A família, porque, fundada sobre
a graça batismal, pertence ao mistério da Igreja e representa a encarnação de
todo o amor cristão na sua expressão concreta. E exerce a sua missão em
diversas direções, tal como refere a FC: transmissão e serviço da vida; testemunho e educação da fé; serviço
da oração e dos sacramentos; e construção duma civilização da vida e do amor
numa relação com o mundo, feita de testemunho, de respeito e de anúncio
explícito da origem de todo o amor.
A família é,
pois, o objeto fundamental da evangelização e da catequese da Igreja, mas é
também indubitavelmente o seu indispensável e insubstituível sujeito, o sujeito
criativo. E, por isso, para perseverar na Igreja e atingir as suas fontes, bem
como para constituir a Igreja na sua dimensão fundamental, como “igreja em
miniatura” (Igreja doméstica), deve estar
consciente da missão da Igreja e da própria participação nesta missão.
***
A 22 de
março deste ano, o cardeal Kevin Farrell, prefeito do Dicastério para os
Leigos, a Família e a Vida, na “Proposta concreta para uma Igreja Doméstica”, recordava que “na Igreja temos um tesouro
escondido: a família”, pelo que, sentindo-nos sós, isolados, é neste isolamento
social que “o Espírito nos sugere a redescoberta do sacramento do matrimónio”,
com que as nossas casas, pela presença constante de Cristo na relação
consagrada dos esposos, se tornam “uma pequena Igreja doméstica”. De facto, o
Papa Francisco frisa, na Amoris Laetitia, que o Senhor “vem ao
encontro dos esposos cristãos com o sacramento do matrimónio” (n. 48) “e permanece com eles”. Jesus não vai embora, antes “permanece
com os esposos em suas casas, não só quando estão reunidos e rezam, mas em todos
os momentos”.
E o
purpurado observava que com a força desta realidade, “podemos redescobrir,
neste tempo particular que estamos vivendo, o que é cada família cristã: uma
manifestação genuína do mistério, que é a Igreja como Corpo de Cristo”. Com
efeito, os cônjuges “edificam o Corpo de Cristo e constituem uma Igreja
doméstica” (Amoris Laetitia 67). Deste
corpo, cada família é uma parte essencial que se constrói a partir dos gestos
diários, nos quais Jesus está sempre presente”.
O cardeal convidou
todos a considerarem o confinamento como “um tempo de treino, na espera de
derrotar este mal”. Na verdade, o Senhor dá-nos o ensejo – prosseguiu – de
olhar com ternura os filhos, com paciência carinhosa o cônjuge, moderar o tom
da voz se reina uma desordem inesperada com as crianças e educá-las a
aproveitarem bem este tempo que parece que nunca vai passar, no diálogo “feito
com a escuta um do outro, de calma interior, do respeito”. E, vincando que
“este não é apenas um tempo de treinamento humano, mas também espiritual, dizia
que era um tempo de pré-evangelização, nas casas e através das casas, como na
época das primeiras comunidades cristãs, o que nos iria “permitir voltar a
celebrar nas nossas igrejas, mais conscientes e fortes da presença de Jesus na
nossa vida diária”. Assim, alvitrava:
“Podemos reunir-nos como família, aos domingos, para celebrar de modo
mais solene a liturgia doméstica que, habitualmente, em virtude da presença de
Jesus se realiza através dos gestos dos cônjuges”.
E, fundado
nas palavras de Jesus (Mt 18,20) “onde dois ou três estiverem reunidos em meu
nome, eu estou ali, no meio deles”, sugeria a todas as famílias:
“Podemos reunir-nos numa sala da casa, recitar um Salmo, de louvor,
pedir perdão com uma palavra ou gestos entre os pais, entre os pais e os
filhos, e familiares presentes. Ler o Evangelho do domingo, cada um pode
exprimir o seu pensamento sobre a Palavra do Dia, fazer orações de pedidos
pelas necessidades da família, dos que amamos, pela Igreja e pelo mundo. Por
fim, confiar a Maria a nossa família e todas as famílias que conhecemos.”.
O cardeal
sugeria ainda o uso da moderna tecnologia e redes sociais como, por exemplo,
“rezar aos domingos com mais famílias, via Skype, ou com outros sistemas de
redes sociais”, podendo as crianças fazer algumas leituras ou alternando vozes
de casais de famílias conectadas.
Era e é
preciso aproveitar um tempo tão estranho para acolher e viver o Espírito nas
nossas casas e redescobrir a riqueza e dom das igrejas domésticas com Jesus que
habita em nós.
***
Não há
dúvida de que a família é “Igreja doméstica” e que é preciso valorizá-la qua tali. Porém, a família não pode
fechar-se em si mesma e considerar-se substituta da Igreja, que se reúne como
grande comunidade em grandes ou pequenos espaços, mas considerar o seu
contributo para edificar a Igreja comunidade maior e mesmo “comunidade de comunidades” e aceitar
dela o seu influxo insubstituível.
A Igreja nas
casas é um dado bíblico, mas longe de ser único. Há, efetivamente quem diga que
o verdadeiro modelo bíblico de Igreja é reunir nas casas e que os templos fazem
parte de um modelo romano ou católico, o que, se visto em exclusivo, não é
verdade.
Diz o Livro
dos Atos dos Apóstolos que “todos os dias, no templo e de casa em casa, não
deixavam de ensinar e proclamar que Jesus é o Cristo” (At 5,42), que “todos os dias continuavam a reunir-se no pátio
do templo”, que “partiam o pão em suas casas e, juntos, participavam nas
refeições com alegria e sinceridade de coração” (At 2,46). Assim, vemos que os irmãos se reuniam no templo e
nas casas. Eram dois tipos de reunião diários com propósitos diferentes.
Embora os
cristãos de origem judaica levassem o seu tempo a desligarem-se do Templo e da sinagoga,
a oração e reunião com os apóstolos ali (onde também Deus fazia prodígios
através dos apóstolos) não eram
por se tratar do lugar sagrado, mas porque ali se podia agregar grande número
de pessoas ao mesmo tempo. A segunda pregação de Pedro depois do Pentecostes foi
no Pórtico de Salomão (At 4,11). A acústica
do lugar ajudava a multidão a ouvir Pedro. O livro conta que naquele dia muitos
(não todos) dos que ouviram a Pedro creram e o número de
convertidos saltou de cerca de 3 mil para 5 mil homens. Por seu turno, as
reuniões nas casas eram diferentes. Em pequenos grupos a comunhão era mais
próxima e efetiva. Todos podiam servir, perguntar, compartilhar, orar uns pelos
outros, as necessidades individuais poderiam ser percebidas, o estímulo e seria
possível a exortação mútua. Assim, Paulo exortava:
“Habite ricamente em vós a palavra de
Cristo; ensinai-vos e aconselhai-vos uns aos outros com toda a sabedoria, e
cantai salmos, hinos e cânticos espirituais com gratidão a Deus em vossos
corações” (Cl 3,16).
Este é um
quadro duma reunião caseira, mas não duma só família. E isso não poderia ser
feito numa reunião com 3 ou 5 mil pessoas. Paulo, quando chegou a Éfeso, entrou
na sinagoga e resolveu ensinar ali durante 3 meses. Porém, ao perceber a resistência
dos judeus, juntou os que haviam crido e passou a ensinar noutro lugar onde
cabia um bom número de pessoas, a escola de Tirano, onde ensinou durante 2
anos. Apesar de parecer um hábito de Paulo usar as casas (At 16,15;
16,40; 18,7; 21,16; 28,30), Paulo usou
lugares maiores para ensinar (vg: o areópago de Atenas).
O capítulo
20 de Atos refere que Paulo foi a Tróade, mandou reunir os irmãos, pois ficaria
com eles uma noite e partiria no dia seguinte. Querendo otimizar a sua breve
passagem pela cidade, prolongou tanto o discurso que o jovem Eutico, que estava
sentado numa janela, entrou num sono tão profundo que caiu do terceiro andar e
morreu. Paulo desceu, ressuscitou o rapaz e voltou a falar até ao romper da
manhã.
Com o tempo,
alguns cristãos, de mais posses, começaram a disponibilizar algumas das suas
casas para serem usadas apenas para reuniões dos convertidos. Eram as
casas-igreja. A mais antiga encontrada é a Dura Europos, atual terreno da
Síria. Essa foi uma casa transformada em templo, que segundo os historiadores,
funcionou de 233 a 256 dC, até à invasão dos persas.
Mais tarde,
começaram a edificar templos com caraterísticas diferentes das do Templo de
Salomão, mas com as exigidas pelo novo ensino e pelo novo culto e onde e como
pudessem ser edificados, ou adaptando edifícios disponibilizados – isto sem
contar o regime das catacumbas.
Tudo isso leva
a crer que, não diferente dos nossos dias, as reuniões nas casas e nos grandes
lugares tinham propósitos diferentes: as primeiras, facilitar a fração do pão e
a perceção das necessidades pessoais, familiares e locais; as segundas, ensinar
a multidão e mostrar a larga dimensão da família dos crentes, vindo a dar
origem à celebração cultual em grande assembleia.
É pena não
se valorizar a reunião dos cristãos (mesmo eucarística) nas casas uns dos outros!
***
E, por falar
em assembleia, há que referir que a fé, que é dom pessoal, se exprime, se vive,
se alimenta e se propaga em comunidade. E a comunidade dos filhos de Deus é a
Igreja, que subsiste nas grandes assembleias e nos pequenos grupos, desde que
haja abertura ao mistério de Cristo e à universalidade da salvação. E, se é
lugar de nascimento, expressão e alimento da fé, também é objeto da fé. Por
isso, não se pode excluir, como já vi e li, a fé na Igreja.
Não vale
dizer que não se diz: “creio na Igreja” –, mas “creio em Deus Pai, creio em seu
Filho Jesus Cristo e creio no Espírito Santo” e que “estamos na Igreja”.
Percorrendo
as páginas do “Enchiridion Symbolorum,
Definitionum et Declarationum de rebus fidei et morum” (1967), vemos que a formulação do ato de fé tem o mesmo
verbo “creio” ou “cremos” (no grego “pistéô” ou “pisteúomen”;
no latim, “credo” e “credimus”) e, na maior parte dos Símbolos, a preposição para Deus Pai, para Jesus
Cristo, para o Espírito Santo e para a Igreja (com alguns dos seguintes adjetivos ou
todos: santa, una, católica, apostólica)
é “eis” em grego e “in” em
latim, com acusativo (a indicar movimento do nosso ser para dentro do mistério), embora se omita, por vezes, a preposição em relação à
Igreja, mas mantendo a conjunção “e” (“eis” em grego e “in” em
latim) e o acusativo, como também se omite
o verbo quase sempre em relação ao Filho e, algumas vezes, em relação ao Espírito
Santo, mas mantendo a preposição e o acusativo.
É certo que,
nalgumas formulações, em relação à Igreja (e, às vezes, em relação ao Espírito
Santo), o texto grego emprega a preposição
“en” com dativo e o latim a preposição
“in” com ablativo, dando a ideia de
permanência em, com ou para. Assim, é válido dizer que acreditamos na Igreja ou
que acreditamos estando na, com e para a Igreja.
Enfim, é bom
citarmos a Bíblia e a doutrina, mas sem exclusivismos e sem perder a dimensão holística
da Fé, da Igreja e do Mistério. Que o Espírito Santo nos guie o pensamento e a
palavra!
2020.06.06 –
Louro de Carvalho
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