quarta-feira, 24 de junho de 2020

Covid-19: se correr mal, será porque as pessoas se terão portado mal


Roberto Roncon, médico intensivista do hospital de São João (Porto), o que provavelmente viu mais doentes e os mais graves com covid-19, e coordenador do Centro de Referência de ECMO do Centro Hospitalar Universitário de São João, afirma-se cansado menos da intensidade do trabalho que da inabilidade política para lidar com os profissionais de saúde. Di-lo em entrevista ao Expresso, neste dia 24 de junho, partilhando “o receio do inverno e o que não gostou de ouvir”, já que esteve “perto demais de tudo o que o país preferia que não tivesse acontecido”.
Após 3 meses de trabalho ininterrupto, em que “fez o que achou que devia fazer”, estará 4 dias com a família, dormirá e jogará ténis. “Reivindica respeito”, pois “ignorar a dedicação e a qualidade do trabalho dos profissionais de saúde pode ter um grande custo no futuro”.
Considerando a covid-19 “um desafio que ainda está longe do fim”, assume, agora aos 43 anos de idade, que esta não foi “a sua maior experiência profissional”, pois nada ultrapassa ainda a introdução em Portugal, há 10 anos, do projeto ECMO (equipamento de circulação extracorpórea) que propicia “tempo de recuperação a doentes em estado muito grave internados nos cuidados intensivos” e que agora “serviu para, juntamente com a equipa hospitalar, alcançar resultados superiores aos de países mais desenvolvidos, com uma taxa de mortalidade entre 10 e 20% em doentes complexos”. Mesmo de férias, não desligará o telemóvel, porque leva consigo “a preocupação com os casos pendentes” e o receio de que a pandemia seja só “uma oportunidade perdida para reformar o Serviço Nacional de Saúde”. E diz que, embora “a resposta do SNS tenha sido tão positiva que até tenha ficado a ideia de que foi fácil”, garante que “não foi”.
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Da primeira doente diz que chegou com insuficiência respiratória, mas não precisou de ser entubada. Recebeu-a com a enfermeira coordenadora para dar o exemplo e despistar o medo. E refere que o desenho de todos os equipamentos de proteção individual não foi consensual, pois “o que estava a ser pensado não era sustentável, não haveria equipamentos para todos e não era necessária toda aquela parafernália”. Equiparam-se à frente de toda a gente. A doente ficou internada uma semana, pouco para um doente com covid. Mas foi um caso muito pedagógico.
Não adotaram o “fato de astronauta” por terem uma visão diferente dos outros serviços, que inflexivelmente copiaram a metodologia do ébola. Não queriam um hospital com dois padrões, mas se adotassem o que estava prestes a ser imposto, não seria sustentável e não se deviam mudar as regras a meio. E é categórico ao dizer: “Se tivermos de ir à Lua de cada vez que queremos ver os doentes, afastamo-nos deles”.
Revela que a doente “estava muito tranquila”, explicaram-lhe a razão dos equipamentos para ela perceber que não estavam assim por ela estar pior, mas para proteção da equipa, sem nojo ou repulsa, o que seria “muito estigmatizante”.
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O intensivista “tinha um plano” pelo qual lutara muito. Com cerca de 70 doentes graves, traçaram “um plano, em que o primeiro aspeto era que, apesar da expansão de 26 para 40 camas”, se fez tudo para manter a organização existente, crescendo sem se desorganizar. Teve “a ajuda de anestesistas de outros serviços, que não eram intensivistas”, mas “estava todos os dias com eles”. Fez o que achou que “devia fazer”. Ia dormir a casa, a não ser quando estava a fazer 24 horas, fez com que “os médicos de fora se sentissem respeitados por estarem a trabalhar diretamente com o coordenador” e manteve a organização das outras equipas. Enfim, “tudo o que foi novo” foi da sua responsabilidade, mas, enquanto coordenador, puxou para si “o que podia correr mal”, sendo que eram os tratamentos de suporte de cuidados intensivos que salvavam vida dos doentes.
Como presidente da Comissão de Farmácia e Terapêutica diz-se “muito conservador”, porque os medicamentos off label (utilizados fora da sua prescrição original) “são acompanhados pelo aumento do risco de complicações”, pelo que não é “entusiasta da hidroxicloroquina ou do Rendesivir”, mas está curioso “para conhecer os resultados da dexametasona”. 
Questionado sobre o que são tratamentos de suporte de cuidados intensivos, explana:
Tivemos uma taxa de mortalidade 5 vezes inferior à da China, da Itália e de Manhattan. (…) A sociedade e a Direção-Geral da Saúde tiveram mérito porque as pessoas ficaram em casa e não atingimos a saturação dos cuidados intensivos. Tivemos uma grande sobrecarga, mas não tivemos o caos. Um colega meu que trabalhou no Porto e está em Nova Iorque disse-me que um intensivista cuidava de 18 doentes. É impossível ter bons resultados assim. A maior parte das infeções víricas são tratadas dando tempo ao sistema imunitário para reagir à infeção e o que fizemos foi manter os sistemas vitais dos doentes para que o sistema imunitário conseguisse reagir à infeção.”.
No São João, a taxa de doentes por médico é de um para cada dois, quatro e oito doentes, conforme for manhã, tarde ou noite – dentro dos rácios recomendados. Mas o sucesso dependeu da organização e da estratégia: de um lado, os doentes graves sem ECMO; e, do outro, os de ECMO. Em ambos os casos se criaram as condições para o sistema imunitário do indivíduo reagir à infeção, o que, ao invés do que parece, “é muito difícil”. O grande esforço é “manter a calma, a organização e fazer bem o que sabíamos fazer bem”. O desafio é que o doente ultrapasse “a fase crítica na melhor condição possível”.
Tudo isto implicou uma grande ousadia, pois, no início, não havia experiência e quiseram fazer diferente do que estava a ser feito. E o intensivista, desde que é coordenador da unidade, sempre que toca o telefone, pensa: ‘O que correu mal?’. Só recebe telefonemas para coisas más. Mas a equipa conhecia-o e acreditava no método, o que “não foi fácil no meio de tantos pavões e autoridades de saúde” e de colegas a dizer que “não valia a pena colocar os doentes em ECMO”. Porém, teve 16 doentes com covid em ECMO e só morreram dois. A diferença é “entre 90% de mortalidade e 90% de sobrevivência”. E conclui que “não era por estarmos numa pandemia que o método científico mudava”.  
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Quanto à aplicação do método em caso de eventual segunda vaga pandémica, responde apenas por si e critica o que denomina de “grande problema de sensibilidade, de bom senso até”. E arrola: o facto de três grandes figuras do Estado português se terem reunido para “celebrar a vinda de uma competição desportiva para Portugal” tendo o Primeiro-Ministro dito que é “um prémio para os profissionais de saúde(sem má-fé, mas de total infelicidade e sem pedido de desculpas); e a ausência de reunião ou outro sinal, dois dias depois, no Dia Nacional do Médico. E comenta:
Na Alemanha, vão aumentar o salário dos médicos, em França dar um prémio. Garanto-lhe que o que fiz não foi para ganhar uma medalha, ter mais dinheiro ou para ter um prémio, mas as pessoas também precisam de coisas simbólicas. Porque não dão aos médicos e enfermeiros que estiveram na linha da frente um dia de férias? O dinheiro não é tudo, mas estamos tão cansados que tenho algum receio que toda a energia e boa vontade que tivemos na primeira vaga possa não existir na segunda. Porque na verdade, a comunicação destes poderes tem sido calamitosa. Aquelas conferências de imprensa diárias são calamitosas. E o Primeiro-Ministro perdeu uma boa oportunidade para estar calado.”.
À Ministra da Saúde aponta “um problema enorme de empatia com as pessoas”. Não achando que o ministro tenha de ser médico, opina que “nestas alturas nota-se mais a falta de contacto humano”; anota o facto de as conferências de imprensa terem caído “em descrédito”, dadas as contradições de que enfermam, por exemplo: “no início não era preciso máscara, depois era”; “fiquem em casa, depois saiam”…; prevê que, “se começar a correr mal, não vai haver responsabilidade política, as pessoas é que se terão portado mal” (políticos desresponsabilizam-se facilmente); e sugere que se fale aos jovens, não por conferência de imprensa, mas por Youtube, Facebook, linguagem que eles conhecem, e que se coloquem “jovens a falar com outros jovens”, mas “sem estar a apontar o dedo”, pois assim “eles ainda nos desafiam mais”.
A sua foi a unidade com mais jovens porque, tendo o ECMO, a maior parte deles iam lá parar. Embora nenhum desses jovens tenha morrido, um ainda está ligado, pelo que não se pode considerar como tendo ultrapassado a crise. E, quando um jovem morre, “perde-se esperança” e isso torna-se violento para os profissionais de saúde.
Sobre as mortes de idosos sem visitas, considera que foram “uma violência”, pois “um dos poucos consolos que temos é morrermos com a nossa família”, mas “não se podia aligeirar uma coisa que mata, que dá cabo da economia”. E pensa que “as pessoas que ficaram em casa acabaram por sofrer mais porque ver o telejornal era um massacre”.
Dos mais de 1500 mortos, alegadamente todos “sem nome ou cara”, confessa que se lembra de todos os que morreram e pode dizer porque morreram e o que podia ter feito melhor, pois alguns morreram nas primeiras 2 semanas e talvez tivessem sobrevivido se houvesse mais experiência.
Quando se viu que o vírus não afetava só os pulmões, mas o coração e os rins, foi-se adaptando o plano na linha de que tinha de se aprender com os doentes, pois conhecia-se pouco a doença (“não se pode conhecer uma doença com menos de um ano de duração”). E eles morriam, não de SARS CoV-2, mas de superinfeção bacteriana. E adverte:
Não é verdade que a covid-19 dá muitos maus exames e as pessoas não parecem estar tão doentes. O que nos aconteceu foi exatamente o contrário. Alguns vieram muito tarde para os cuidados intensivos. (…) Qualquer generalização com esta doença, que é tão desconhecida, é insensata.”.
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Preocupa-se como o inverno, acusa cansaço e não vê no poder político o reconhecimento. Diz que a frase do Primeiro-Ministro, um arauto do SNS, foi de uma infelicidade enorme. Considera o cinismo pior que a hipocrisia (“Dizer que o SNS é muito importante mas fazer declarações que dão a entender que o que nós fizemos não foi mais do que a nossa obrigação não é verdade): o que se fez está para lá do previsível. Gostava, por exemplo, que a sua unidade tivesse um vestiário, que, ao fim de 15 anos de especialidade, pudesse ter uma carreira. Diz que, “se tivermos o vírus a circular no meio a um inverno normal, vamos ter de ter no hospital um circuito Covid e outro não-Covid, numa altura de grande pressão dos serviços”, pois “o que fizemos até agora foi com a atividade normal parada e sem o inverno”. E duvida de que tenhamos virado a página, já que “o SNS não passou a estar bem”, continuando “com dificuldades para várias coisas básicas”, incluindo a contratação de médicos.
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Por fim, refere que, ao invés de colegas que se afastaram das famílias, continuou a viver em casa, mas custava-lhe sentir a ansiedade da família e tinha medo de lhe fazer mal, lidando com isso com alguma tristeza: queria chegar a casa e abraçar os filhos; esta fase tirou-lhe algumas coisas importantes, como estar com os amigos; só lhe custou menos por estar “a fazer o bem” e por saber que “não era para sempre”; e a exaustão levou a tirar férias antes do previsto.
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Vale a pena meditar como são diferentes os mundos do hospital e dos microfones políticos. Há que preparar o inverno e não alijar as responsabilidades para a população.
2020.06.24 – Louro de Carvalho

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