Roberto Roncon, médico intensivista do hospital de São João (Porto), o que provavelmente viu mais doentes e os mais
graves com covid-19, e coordenador do Centro de Referência de ECMO do Centro
Hospitalar Universitário de São João, afirma-se cansado menos da intensidade do
trabalho que da inabilidade política para lidar com os profissionais de saúde. Di-lo
em entrevista ao Expresso, neste dia
24 de junho, partilhando “o receio do inverno e o que não gostou de ouvir”, já
que esteve “perto demais de tudo o que o país preferia que não tivesse
acontecido”.
Após 3 meses de trabalho ininterrupto, em que “fez o que achou que devia
fazer”, estará 4 dias com a família, dormirá e jogará ténis. “Reivindica
respeito”, pois “ignorar a dedicação e a qualidade do trabalho dos
profissionais de saúde pode ter um grande custo no futuro”.
Considerando a covid-19 “um desafio que ainda está longe do fim”, assume, agora
aos 43 anos de idade, que esta não foi “a sua maior experiência profissional”,
pois nada ultrapassa ainda a introdução em Portugal, há 10 anos, do projeto
ECMO (equipamento
de circulação extracorpórea) que
propicia “tempo de recuperação a doentes em estado muito grave internados nos
cuidados intensivos” e que agora “serviu para, juntamente com a equipa
hospitalar, alcançar resultados superiores aos de países mais desenvolvidos,
com uma taxa de mortalidade entre 10 e 20% em doentes complexos”. Mesmo de férias,
não desligará o telemóvel, porque leva consigo “a preocupação com os casos
pendentes” e o receio de que a pandemia seja só “uma oportunidade perdida para
reformar o Serviço Nacional de Saúde”. E diz que, embora “a resposta do SNS
tenha sido tão positiva que até tenha ficado a ideia de que foi fácil”, garante
que “não foi”.
***
Da primeira doente diz que chegou com insuficiência respiratória, mas não
precisou de ser entubada. Recebeu-a com a enfermeira coordenadora para dar o
exemplo e despistar o medo. E refere que o desenho de todos os equipamentos de
proteção individual não foi consensual, pois “o que estava a ser pensado não
era sustentável, não haveria equipamentos para todos e não era necessária toda
aquela parafernália”. Equiparam-se à frente de toda a gente. A doente ficou
internada uma semana, pouco para um doente com covid. Mas foi um caso muito
pedagógico.
Não adotaram o “fato de astronauta” por terem uma visão diferente dos
outros serviços, que inflexivelmente copiaram a metodologia do ébola. Não
queriam um hospital com dois padrões, mas se adotassem o que estava prestes a
ser imposto, não seria sustentável e não se deviam mudar as regras a meio. E é
categórico ao dizer: “Se tivermos de ir à
Lua de cada vez que queremos ver os doentes, afastamo-nos deles”.
Revela que a doente “estava muito tranquila”, explicaram-lhe a razão dos
equipamentos para ela perceber que não estavam assim por ela estar pior, mas
para proteção da equipa, sem nojo ou repulsa, o que seria “muito estigmatizante”.
***
O intensivista “tinha um plano” pelo qual lutara muito. Com cerca de 70
doentes graves, traçaram “um plano, em que o primeiro aspeto era que, apesar da
expansão de 26 para 40 camas”, se fez tudo para manter a organização existente,
crescendo sem se desorganizar. Teve “a ajuda de anestesistas de outros
serviços, que não eram intensivistas”, mas “estava todos os dias com eles”. Fez
o que achou que “devia fazer”. Ia dormir a casa, a não ser quando estava a
fazer 24 horas, fez com que “os médicos de fora se sentissem respeitados por
estarem a trabalhar diretamente com o coordenador” e manteve a organização das
outras equipas. Enfim, “tudo o que foi novo” foi da sua responsabilidade, mas,
enquanto coordenador, puxou para si “o que podia correr mal”, sendo que eram os
tratamentos de suporte de cuidados intensivos que salvavam vida dos doentes.
Como presidente da Comissão de Farmácia e Terapêutica diz-se “muito
conservador”, porque os medicamentos off
label (utilizados fora da sua
prescrição original) “são acompanhados
pelo aumento do risco de complicações”, pelo que não é “entusiasta da
hidroxicloroquina ou do Rendesivir”, mas está curioso “para conhecer os
resultados da dexametasona”.
Questionado sobre o que são
tratamentos de suporte de cuidados intensivos, explana:
“Tivemos uma taxa de mortalidade 5 vezes
inferior à da China, da Itália e de Manhattan. (…) A sociedade e a
Direção-Geral da Saúde tiveram mérito porque as pessoas ficaram em casa e não
atingimos a saturação dos cuidados intensivos. Tivemos uma grande sobrecarga,
mas não tivemos o caos. Um colega meu que trabalhou no Porto e está em Nova
Iorque disse-me que um intensivista cuidava de 18 doentes. É impossível ter
bons resultados assim. A maior parte das infeções víricas são tratadas dando
tempo ao sistema imunitário para reagir à infeção e o que fizemos foi manter os
sistemas vitais dos doentes para que o sistema imunitário conseguisse reagir à
infeção.”.
No São João, a taxa de
doentes por médico é de um para cada
dois, quatro e oito doentes, conforme for manhã, tarde ou noite – dentro dos
rácios recomendados. Mas o sucesso dependeu da organização e da estratégia: de
um lado, os doentes graves sem ECMO; e, do outro, os de ECMO. Em ambos os casos
se criaram as condições para o sistema imunitário do indivíduo reagir à
infeção, o que, ao invés do que parece, “é muito difícil”. O grande esforço é “manter
a calma, a organização e fazer bem o que sabíamos fazer bem”. O desafio é que o
doente ultrapasse “a fase crítica na melhor condição possível”.
Tudo isto implicou uma
grande ousadia, pois, no início, não havia experiência e quiseram fazer
diferente do que estava a ser feito. E o intensivista, desde que é coordenador da unidade, sempre que toca o
telefone, pensa: ‘O que correu mal?’.
Só recebe telefonemas para coisas más. Mas a equipa conhecia-o e acreditava no
método, o que “não foi fácil no meio de tantos pavões e autoridades de saúde”
e de colegas a dizer que “não valia a pena colocar os doentes em ECMO”.
Porém, teve 16 doentes com covid em ECMO e só morreram dois. A diferença é “entre
90% de mortalidade e 90% de sobrevivência”. E conclui que “não era por estarmos
numa pandemia que o método científico mudava”.
***
Quanto à aplicação do método em caso de eventual segunda vaga pandémica,
responde apenas por si e critica o que denomina de “grande problema de
sensibilidade, de bom senso até”. E arrola: o facto de três grandes figuras do
Estado português se terem reunido para “celebrar a vinda de uma competição
desportiva para Portugal” tendo o Primeiro-Ministro dito que é “um
prémio para os profissionais de saúde” (sem má-fé, mas de total infelicidade
e sem pedido de desculpas); e a
ausência de reunião ou outro sinal, dois dias depois, no Dia Nacional do Médico. E comenta:
“Na Alemanha, vão aumentar o salário dos
médicos, em França dar um prémio. Garanto-lhe que o que fiz não foi para ganhar
uma medalha, ter mais dinheiro ou para ter um prémio, mas as pessoas também
precisam de coisas simbólicas. Porque não dão aos médicos e enfermeiros que
estiveram na linha da frente um dia de férias? O dinheiro não é tudo, mas
estamos tão cansados que tenho algum receio que toda a energia e boa vontade
que tivemos na primeira vaga possa não existir na segunda. Porque na verdade, a
comunicação destes poderes tem sido calamitosa. Aquelas conferências de
imprensa diárias são calamitosas. E o Primeiro-Ministro perdeu uma boa
oportunidade para estar calado.”.
À Ministra da Saúde aponta “um problema enorme de empatia com as pessoas”.
Não achando que o ministro tenha de ser médico, opina que “nestas alturas
nota-se mais a falta de contacto humano”; anota o facto de as conferências de imprensa terem
caído “em descrédito”, dadas as contradições de que enfermam, por
exemplo: “no início não era preciso máscara,
depois era”; “fiquem em casa, depois
saiam”…; prevê que, “se começar a correr mal, não vai haver
responsabilidade política, as pessoas é que se terão portado mal” (políticos
desresponsabilizam-se facilmente); e sugere
que se fale aos jovens, não por conferência de imprensa, mas por Youtube,
Facebook, linguagem que eles conhecem, e que se coloquem “jovens a falar com
outros jovens”, mas “sem estar a apontar o dedo”, pois assim “eles ainda nos
desafiam mais”.
A sua foi a unidade com mais jovens porque, tendo o ECMO, a
maior parte deles iam lá parar. Embora nenhum desses jovens tenha morrido, um ainda
está ligado, pelo que não se pode considerar como tendo ultrapassado a crise.
E, quando um jovem morre, “perde-se esperança” e isso torna-se violento para os
profissionais de saúde.
Sobre as mortes de idosos
sem visitas, considera que foram “uma
violência”, pois “um dos poucos consolos que temos é morrermos com a nossa
família”, mas “não se podia aligeirar uma coisa que mata, que dá cabo da
economia”. E pensa que “as pessoas que ficaram em casa acabaram por
sofrer mais porque ver o telejornal era um massacre”.
Dos mais de 1500 mortos,
alegadamente todos “sem nome ou cara”, confessa que se lembra de todos os que morreram e pode dizer porque morreram
e o que podia ter feito melhor, pois alguns morreram nas primeiras 2 semanas e
talvez tivessem sobrevivido se houvesse mais experiência.
Quando se viu que o vírus
não afetava só os pulmões, mas o coração e os rins, foi-se adaptando o plano na
linha de que tinha de se aprender com os doentes, pois conhecia-se pouco a doença
(“não se pode conhecer uma doença com menos de um ano
de duração”). E eles
morriam, não de SARS CoV-2, mas de superinfeção bacteriana. E adverte:
“Não é verdade que a covid-19 dá muitos maus exames e
as pessoas não parecem estar tão doentes. O que nos aconteceu foi exatamente o
contrário. Alguns vieram muito tarde para os cuidados intensivos. (…) Qualquer
generalização com esta doença, que é tão desconhecida, é insensata.”.
***
Preocupa-se como o inverno, acusa cansaço e não vê no poder político o
reconhecimento. Diz que a frase do Primeiro-Ministro, um arauto do SNS, foi de
uma infelicidade enorme. Considera o cinismo pior que a hipocrisia (“Dizer que
o SNS é muito importante mas fazer declarações que dão a entender que o que nós
fizemos não foi mais do que a nossa obrigação não é verdade): o que se fez está para lá do previsível. Gostava,
por exemplo, que a sua unidade tivesse um vestiário, que, ao fim de 15 anos de
especialidade, pudesse ter uma carreira. Diz que, “se tivermos o vírus a
circular no meio a um inverno normal, vamos ter de ter no hospital um circuito
Covid e outro não-Covid, numa altura de grande pressão dos serviços”, pois “o
que fizemos até agora foi com a atividade normal parada e sem o inverno”. E
duvida de que tenhamos virado a página, já que “o SNS não passou a estar bem”,
continuando “com dificuldades para várias coisas básicas”, incluindo a contratação
de médicos.
***
Por fim, refere que, ao
invés de colegas que se
afastaram das famílias, continuou a viver em casa, mas custava-lhe sentir a
ansiedade da família e tinha medo de lhe fazer mal, lidando com isso com alguma
tristeza: queria chegar a casa e abraçar os filhos; esta fase tirou-lhe algumas
coisas importantes, como estar com os amigos; só lhe custou menos por estar “a
fazer o bem” e por saber que “não era para sempre”; e a exaustão levou a tirar
férias antes do previsto.
***
Vale a pena meditar como são diferentes os mundos do hospital e dos
microfones políticos. Há que preparar o inverno e não alijar as
responsabilidades para a população.
2020.06.24 –
Louro de Carvalho
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