O discurso do
Pão do Céu (Jo 6,22-59) ocupa a parte central do capítulo 6
do Evangelho de João, precedida do episódio da multiplicação dos pães e dos
peixes por Jesus (vv 1-15), que levou a multidão a pretender
fazê-lo rei, e do episódio em que Ele, escapando-se da multidão, caminhava
sobre as águas no contexto da forte ventania que soprava e entrou no barco dos
discípulos (vv 16-21), exortando-os a que não tivessem
medo.
O discurso do
Pão do Céu na sinagoga de Cafarnaum, no contexto da procura da multidão por
Jesus e o respetivo encontro (vv 22-24), é
encabeçado por um diálogo, uma forte discussão (vv 25-34) que desemboca num mal-entendido. Jesus fala do Pão do Céu – o
alimento que não desaparece, mas perdura e dá a vida eterna – e os ouvintes
pedem-Lhe que lhes dê desse pão (v. 34), não
atingindo o verdadeiro alcance das palavras de Jesus, antes pensando numa
solução económica. A resposta do Mestre aborda o tema em duas vertentes: o Pão
da Vida, que é Jesus e em quem é preciso crer (vv 35-50); e o Pão Vivo, que é preciso receber (comer)
na Eucaristia para se
ter a vida (vv. 51-58).
Depois de
esclarecer a multidão de que não foi Moisés quem lhes dá o pão do Céu (como eles pensavam evocando o maná
que lhes fora disponibilizado no deserto), mas que é o Pai de Jesus Cristo quem lhes dá o verdadeiro
Pão do Céu, pois o Pão de Deus é Aquele que desce do Céu e dá a vida ao mundo,
faz o discurso em que expressamente se intitula de Pão da Vida, que sacia em
definitivo os que O procuram, creem e comem, segundo a vontade do Pai, e fará
com que ressuscitem no último dia. E as asserções de Jesus são fortemente contestadas,
mas Ele não transige nem suaviza o que diz (Jesus não é dado a eufemismos), antes reforça a revelação que acaba de fazer.
A dúvida e a
discussão estendem-se aos discípulos, muitos dos quais O abandonam motivados
pela dureza daquela linguagem, mantendo-se o grupo nuclear sob a confissão da
fé de Pedro (vv 60-69), acabando Jesus por declarar que
tendo escolhido Doze, um deles era o diabo (v. 70).
Na verdade, referia-se a Judas, aquele que O viria a entregar.
A passagem do
Evangelho proclamada na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo é Jo
6,51-58. Na verdade, às perguntas dos judeus, baseadas na sua suficiência: “Não é este, Jesus, o filho de José, de quem
conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: ‘Eu desci do céu’?”, Jesus responde,
afirmando a sua verdadeira identidade: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu
(…), pão que é a minha carne, que Eu darei para a vida do mundo” (Jo 6,51). Repare-se que Jesus já não está a
responder à “multidão” que O procurava para o fazer rei, mas àqueles judeus que
entraram em cena em 6,41 e formularam a pergunta que se ouve em João 6,42.
É importante a
afirmação de Jesus em Jo 6,51, pois contém todos os elementos que se devem
considerar: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu” (Egô eimi ho
ártos ho zôn ho ek toû ouranoû katabás), “esse pão é a minha carne” (sárx), e “dá a vida” (zôê). A seguir, os judeus fazem nova
pergunta, na continuidade da resposta de Jesus acima referida: “Como pode este dar-nos a sua carne (sárx) a
comer?” (Jo 6,52).
Na sua
resposta, que preenche o resto do texto de hoje (Jo 6,53-58), Jesus fala de vida nova e, por isso, também de alimento
novo, adequado essa vida nova. E o verbo que significa “comer” vem conjugado
com “carne” (sárx – Jo 6,52.53.54.56), com “pão (ártos
– Jo 6,51.58) e “comigo”
(me: “o que me come” – Jo
6,57). Assim, “comer o
pão descido do céu” é “comer a carne do Filho do Homem”; e as duas expressões
são equivalentes a “comer a pessoa” de Jesus, a sua identidade, o seu modo de
viver. Como referia o Padre Passionista José Gregório, Jesus não disse que
comêssemos a sua sabedoria e bebêssemos a sua bondade, mas que comêssemos a sua
própria carne e bebêssemos o seu sangue; enfim, a sua pessoa, a sua vida, o seu
estilo.
Só assim, a
vida verdadeira, a vida eterna, entra em nós e transforma a nossa vida,
configurando-a com a de Jesus. E toda a história humana passada – as velhas
figuras ou o antigo rito – pode resumir-se no maná, “que os vossos pais
comeram, e morreram” (Jo
6,49.58a), pois o maná
aparece em referência com a vida terrena para que não morram de fome (cf Dt 8,2-16), não tendo qualquer eficácia para lá
da morte (e foram
advertidos de que nem só de pão se vive). Ao invés, o pão que Jesus é e dá não serve de sustento à
vida terrena, mas é e dá a vida eterna (Jo 6,58b).
E Dom António
Couto, Bispo de Lamego, sublinha o tema grande da pertença mútua e permanente:
“Quem come a minha carne e bebe o meu
sangue permanece em Mim e Eu nele” (Jo 6,56). E, a dizer que “é a melhor e a mais realista tradução da nossa comunhão
eucarística”, evoca o facto de o verbo que significa “comer”, que habitualmente
se diz em grego com os verbos “esthíô”
e “phágô”, em Jo 6,54.56.57.58, é
usado o verbo “trôgô” (trincar, mastigar), de maior sabor e realismo, o que
ocorre apenas mais uma vez em Jo 13,18 – no contexto da ceia da Páscoa. Ora,
como andavam mal avisados os sacerdotes, pais e catequistas que, nas décadas de
60 e 70, nos advertiam de que não se podia mastigar a hóstia, nem sequer se lhe
podia tocar com a língua, quanto mais com os dentes! Enfim, refere Dom António
Couto:
“Vida
nova e eterna, ressuscitada. Comunhão e intimidade entre Deus e a Humanidade.
Por isso e para isso, Jesus Se fez um de nós, descendo ao nosso mundo, e
dando-se completamente a nós, dando-nos a sua vida.”.
***
Voltando
ao predito Padre José Gregório, apraz-me recolher a trilogia com que
caraterizou o alimento: história, comunhão e vida.
De
facto, muito do que nós comemos e bebemos pertence ao passado, mas
acompanha-nos pela nossa existência: é passado, mas persiste no presente e
influencia o futuro para o bem e para o mal. Não obstante, é forçoso estarmos
recetivos aos novos alimentos. E, lembrando que alguns pensadores dizem que “somos
o que comemos”, desafiou a pensarmos o que fizemos do Cristo que nos alimenta,
ao passo que Paulo diz: “Para mim viver é
Cristo e morrer um lucro” (Fl 1,21).
O alimento
é comunhão, pois, usufruímos dele porque muitos trabalham para que dele nos
sirvamos e nós podemos e devemos partilhá-lo em família, com os amigos, com os
que não têm. E, no caso no Corpo e Sangue de Cristo, como refere Paulo na 1.ª
Carta aos Coríntios (1.ª Cor 10,16-17), o cálice de bênção é comunhão
com o Sangue de Cristo e o pão que partimos é comunhão com o Corpo de Cristo. E
Corpo e Sangue de Cristo são comunhão de uns com os outros, pois, sendo muitos,
formamos um só corpo, porque participamos do mesmo pão.
E o
alimento é vida. Se não comermos e não bebermos, definharemos e a morte tomará
conta de nós. Ora, se com o pão terreno e a bebida terrena, subsistimos até ao
fim dos nossos dias, com o alimento no Corpo e Sangue de Cristo, teremos a vida
que não tem fim.
***
Assim,
em dia do Corpo e Sangue de Cristo, convém meditar, adorar, festejar; e participar
– em Igreja, mesmo que em semiconfinamento – no “sagrado banquete em que se
recebe Cristo, a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da futura
glória”.
2020.06.11 –
Louro de Carvalho
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