domingo, 28 de junho de 2020

Da hospitalidade ao acolhimento total e à missão


O texto da 1.ª leitura da Missa deste XIII domingo do tempo Comum no Ano A (2 Rs 4,8-11.14-16a) é um belo exemplo da hospitalidade premiada que o AT (Antigo Testamento) testemunha no contexto da marcha do Povo dividido em dois reinos (Israel, a norte, e Judá, a sul), com a morte de Salomão (932 a.C.), passando os dois a viver histórias separadas e quase sempre antagónicas.
O episódio do texto ocorre em Israel, no reinado de Jorão (853-842 a.C.), quando as relações que Israel teima em estabelecer com outros países circunvizinhos o tornam vulnerável às influências religiosas estrangeiras favorecendo a entrada de cultos diversos.
Neste ambiente, surge o profeta Eliseu, discípulo de Elias que, na esteira do mestre, luta contra o sincretismo religioso e procura restituir os israelitas à via da fidelidade à aliança. Integrando uma comunidade de “filhos de profetas” (seguidores incondicionais do Senhor), vive pobre e oferece ao Povo apoio face aos abusos dos poderosos. É denominado, 29 vezes, ‘ish Elohim (“homem de Deus”), intérprete da Palavra de Deus junto dos outros homens, Palavra poderosa que opera maravilhas e é capaz de transformar a realidade. Os milagres a ele atribuídos exprimem vivamente da força de Deus, que pelo profeta intervém na história e salva os pobres.
O episódio em referência acontece em Sunam, pequena cidade do sul da Galileia, perto de Meggido, em casa duma mulher rica e sem filhos, e consta de dois momentos: a hospitalidade da mulher ao profeta, recompensada com o anúncio do nascimento de um filho (cf 2Rs 4,8-17); e a repentina doença e morte desse filho, que exigirá peculiar intervenção do profeta para lhe devolver a vida (cf 2Rs 8,18-37).
O texto desta dominga leitura relata a generosa hospitalidade que Eliseu encontra nesta casa. A mulher não se limita a oferecer-lhe uma refeição sempre que o profeta passava por Sunam, nas suas passagens (idas e voltas) para o monte Carmelo; manda também construir para ele um quarto no terraço da casa e mobila-o adequadamente, para que possa recolher-se. E fá-lo, é certo, na linha do sacramento da hospitalidade oriental, mas sobretudo por reconhecer que Eliseu é um homem de Deus, por quem Deus age no mundo. Ora, ajudando o profeta, a mulher mostra a sua adesão ao Senhor e a sua disponibilidade para colaborar com Deus no seu desígnio de salvação.
Em resposta a tamanha generosidade, Eliseu anuncia-lhe o nascimento dum filho, anúncio com um valor especial, dada a suposta impossibilidade de o casal ter filhos. Assim se percebe que a colaboração com Deus é fonte de vida e de bênção. E quem acolhe um profeta por ser profeta – e não só pelo hábito da hospitalidade – recebe a recompensa de profeta, que dá nova energia.
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Por seu turno, o final do Discurso Missionário (Mt 10,37-42), hoje proclamado, é pronunciado ante os missionários, animando-os, mas é direcionado para quem os acolhe – acolhimento que se reveste de extrema importância, pois é como acolher o próprio Cristo e Aquele que O enviou. E Dom António Couto, Bispo de Lamego, diz que “para tornar este aspeto visível e audível, neste pequeno texto de seis versículos, o verbo ‘acolher’ (déchomai), palavra-chave do texto, faz-se notar por seis vezes (Mateus 10,40 [4 vezes].41 [2 vezes]).” (vd Jornal da Madeira, de hoje).
Para se perceber o objetivo de Mateus, ao compor este texto e pô-lo na boca de Jesus, é de considerar a década de 80, em que o evangelista escreve para uma comunidade onde a tarefa missionária estava bem enraizada, mas em que as condições políticas do imperador Domiciano e a hostilidade crescente do império para com o cristianismo trazem a comunidade confusa. Neste contexto, Mateus compõe um “manual do missionário” para revitalizar a opção missionária da comunidade, sugerindo que a missão dos discípulos é anunciar Jesus e continuar a percorrer o caminho de Jesus – mesmo que acarrete a dádiva total da vida. Apresenta, nesse sentido, um conjunto de valores e atitudes por que se deve pautar a ação dos missionários.
Pode o texto em causa dividir-se em duas partes: a primeira (vv. 37-39), com um conjunto de exigências radicais para quem quer seguir Jesus; a segunda (vv. 40-42), com a indicação de que toda a comunidade deve anunciar Jesus e com o anúncio duma recompensa a quem acolher os mensageiros do Evangelho. 
Seguir Jesus não é fácil e consensual, nem concita encorajamento ou aplauso; é, antes, enveredar pelo caminho radical, que obriga, muitas vezes, a ruturas e exigentes opções. Mateus não admite meias-tintas: a primeira lealdade é sempre com Jesus. Se a alternativa for escolher entre Jesus e a família (cf v. 37), a opção discipular tem de recair em Jesus (ora, sendo a família era a estrutura que dá sentido à vida das pessoas, a rutura com ela é medida extrema, que supõe um desenraizamento social quase completo). Embora o discípulo não tenha necessariamente de cortar relações com a família para seguir Jesus, contudo não pode deixar que a família ou os afetos o impeçam de responder ao desafio do Reino com coerência e radicalidade. E, se a alternativa for a opção entre Jesus e as próprias seguranças (cf v. 38), a escolha do discípulo deve a da tomada da cruz e o seguimento de Jesus. Com efeito, escolher Jesus e segui-Lo até à cruz não é caminho de fracasso e de morte, mas de vida. Na verdade, se o homem, preocupado em proteger os seus esquemas de segurança, se fecha no seu egoísmo e autossuficiência, perde a vida; mas, se aceita viver na obediência ao desígnio de Deus, que se espelha na dedicação aos irmãos, encontra a vida definitiva (cf v. 39).
No atinente à recompensa prometida a quem acolhe os mensageiros da Boa Nova, Mateus elenca 4 grupos de pessoas que integram a comunidade com a responsabilidade do testemunho: apóstolos (v. 40), profetas (v. 41a), justos (v. 41b) e pequenos (v. 42) – todos com o encargo do anúncio da Boa Nova. Os apóstolos – que acompanharam sempre Jesus e O viram ressuscitado – são as testemunhas primordiais, pois deles se diz que quem os recebe, recebe Jesus; os profetas são os pregadores itinerantes que, em nome de Deus, interpelam a comunidade e que a ajudam a ser consequente com os valores do Evangelho; os justos seriam talvez os cristãos procedentes do judaísmo, que procuram viver, no seio da comunidade, em coerência com a Lei de Moisés; e os pequenos são, além das crianças, os discípulos que não integram de forma plena a comunidade por estarem em processo de amadurecimento da opção (os catecúmenos, que esperam, na descoberta da fé, o pleno compromisso com Jesus). Em todo o caso, todos formam a comunidade cristã, pelo que têm por missão o anúncio do Evangelho.
Ora, acolher os Doze (e seus sucessores), os discípulos, os missionários e evangelizadores de todos os tempos, não consiste só em recebê-los em casa, mas sobretudo em expor-se ao anúncio que trazem. Não basta abrir-lhes as portas da casa, ainda que isso seja importante para quem deixou tudo por Cristo e de vez em quando precisa dum tempo de hospitalidade. É, antes, a abertura do coração à mensagem de que são portadores, vendo que, por trás deles, está Jesus, que os enviou. Com efeito, na cultura judaica, o enviado de um homem é como se fosse esse mesmo homem.
Este acolhimento não é fácil, porque o anúncio provoca divisão, requer postura pró ou contra Cristo, postula escolha que não admite compromissos ou retóricas, divide a humanidade, a família e o coração de cada um. Não raro esperamos que os profetas nos ajudem a justificar os nossos compromissos, o nosso modo tíbio de viver. Porém, o profeta é radical. E acolher um profeta é quase como tornar-se profeta também. Assim, tanto o acolhedor como o acolhido terá a mesma recompensa. E ensina o Bispo de Lamego, que “acolher Jesus ou os seus enviados é aceitar expor-se à cirurgia da Palavra, que divide junturas e medula e julga as disposições e intenções do coração” (Heb 4,12), e que não consiste em “organizar uma festa de amigos”, mas em “aceitar conviver com um bisturi dentro de nós, com um fogo a arder dentro de nós” (cf Jr 20,9; Lc 24,32). Ora, “é tão complicado ou tão simples como oferecer um copo de água fresca a um missionário”; e o “copo de água fresca pode trazer pela mão a eternidade” (vd Mt 10,42).
A questão fundamental é: a tarefa de anunciar o Evangelho pertence a todos os membros da comunidade cristã; e os missionários que testemunham a Boa Nova e entregam a vida ao serviço do Reino devem ser acolhidos com entusiasmo, generosidade e amor. E estes missionários devem levar a comunidade à afeição e à prática das bem-aventuranças (vd Mt 5,3-12a), bem como à prática das obras de misericórdia (vd Mt 25,31-46).
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A passagem da Carta aos Romanos (6,3-4.8-11), proclamada como 2.ª leitura, é um grande texto batismal. Pelo Batismo, o cristão renuncia ao egoísmo e ao pecado para viver uma vida nova. Tendo o pecado passado a absolutamente incoerente e absurdo, pois o cristão enxertou-se em Cristo, é preciso ter consciência do compromisso de viver a vida de Cristo: no amor, na partilha, no dom total de si a Deus e aos homens. A cruz de Cristo, como expressão última de uma vida liberta do egoísmo e tornada dom radical, é o golpe decisivo no pecado. Com efeito, a ressurreição do Senhor mostra a vida nova que brota de um “não” resoluto ao egoísmo.
Os cristãos, enxertados em Cristo pelo Batismo, entram a fazer parte do Corpo de Cristo e passam a receber de Cristo a vida que os alimenta. Se neles circula a vida de Cristo, o pecado cede o lugar a essa vida de dádiva, amor, entrega, serviço que conduz à ressurreição, à vida definitiva. O Batismo sepulta o pecado e ressuscita para a vida nova, donde o pecado tem de estar ausente. Batizados na morte de Cristo e com Ele sepultados e ressuscitados, formamos com Ele uma só realidade e vivemos com Ele, por graça, a vida nova.
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Por tudo isto, é justo cantar, saboreando a bondade de Deus, e reconhecer a sua presença no meio de nós com a aclamação terûʽah (Salmo 89,16), o intraduzível grito ruidoso de emocionante alegria, mas que exprime o melhor modo de o povo fiel assinalar junto de si a presença favorável de Deus. Este salmo real começa por celebrar o próprio Deus como rei de Israel e do universo. E, como salmo messiânico, recorda em discurso direto (vv. 4-5) a aliança de Deus com a casa de David (2Sm 7), prometendo que a tornaria firme para sempre. Este entusiasmo não anula nem minimiza o tom de lamentação e súplica com que o salmo termina (vv. 39-53), o que significa que o tempo em que o salmo foi composto estava marcado por acontecimentos trágicos, vividos no presente ou relembrados do passado. Mas a esperança e o louvor a tudo se sobrepõem, de modo que o salmo termina em doxologia:  
Bendito seja o Senhor para sempre! Amen! Amen!”.
Não obstante, acolhemos e cantamos Deus e o seu Messias, como o Reino maravilhoso do amor (agapê – o amor, que exprime a natureza de Deus) já estabelecido no meio de nós e cujo ninho e pregoeiro é a comunidade cristã.
2020.06.28 – Louro de Carvalho

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