Embora a
Solenidade da Santíssima Trindade não nos convoque diretamente para a perceção
do mistério de Deus Uno e Trino, mas para a celebração festiva de Deus que é
amor (Deus
é amor: Ho Theòs agápê estín. – 1Jo
4,8), é pertinente
que reflitamos sobre o mistério, que não compreendemos. Para tanto, será
oportuna a leitura dos nn. 232-267 do CIC (Catecismo da Igreja
Católica) e dos nn.
44-49 do CCIC(Compêndio do Catecismo da Igreja Católica), além da Lumen Gentium do Vaticano II.
***
O
mistério da Santíssima Trindade é o mistério central da fé e vida cristãs. Com
efeito, como acentua o n.º 44 do CCIC, “os cristãos são batizados no nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo” e não “nos nomes” dos mesmos (cf
nn. 232 e 233 do CIC).
Por isso, toda a vida de Jesus revela este Deus Triuno: na anunciação, no
nascimento, no episódio da Sua perda e encontro no Templo aos 12 anos e na sua
morte e ressurreição, Jesus revela-Se como Filho de Deus de forma nova
relativamente à filiação conhecida por Israel. No Batismo, ao iniciar a vida
pública, o Pai testemunha ao mundo que Jesus é o seu Filho Amado em quem pôs
todo o enlevo (cf Mt 3,13-17 e par.) e desceu sobre Ele o Espírito em forma de pomba. A
esta primeira explicitação da Trindade corresponde a paralela na
Transfiguração, que introduz o mistério Pascal (cf Mt 17,1-5 e
par.). E, ao
despedir-Se dos discípulos, Jesus envia-os a batizar em nome da Trindade, para
que seja comunicada a todo o mundo a vida eterna do Pai, do Filho e do Espírito
Santo (cf
Mt 28,19).
No
Antigo Testamento (AT), Deus revelou a sua unicidade e o seu amor pelo
povo eleito: o Senhor era como um Pai. Mas, tendo falado muitas vezes pelos
profetas, falou por meio de seu Filho (cf Hb 1,1-2), revelando que o Senhor não só é
como um Pai, mas que é Pai (cf CCIC, 46). Jesus dirige-Se-Lhe na oração
com o termo aramaico Abba, usado
pelas crianças israelitas para se dirigirem ao próprio pai (cf
Mc 14,36) e
distingue sempre a Sua filiação da dos discípulos. Tanto assim é que que a
verdadeira razão da crucifixão é o facto de Se chamar a Si mesmo Filho de Deus
em sentido único. É revelação definitiva e imediata, porque Deus Se revela com
a Sua Palavra: não podemos esperar outra revelação, enquanto Cristo é Deus (cf
vg: Jo 20,17) que Se
nos dá, enxertando-nos na vida que emana do colo do Pai. Por Cristo e em Cristo,
Deus abre e entrega a Sua intimidade, per
se inacessível ao homem. Esta revelação é um ato de amor, porque o Deus
pessoal do AT abre livremente o seu coração e o Unigénito do Pai vem ao nosso
encontro para Se fazer uma só coisa connosco e levar-nos de regresso ao Pai (cf
Jo 1,18) – algo que as
filosofias não podiam adivinhar porque apenas pode ser conhecido mediante a fé.
Deus não
só possui uma vida íntima, mas Deus é a Sua vida íntima, uma vida caraterizada
por eternas relações vitais de conhecimento (ação cognitiva) e de amor (ação
volitiva), que nos
levam a exprimir o mistério da divindade em termos de processões. Com efeito, os
nomes das três Pessoas divinas postulam que se pense em Deus como o proceder do
Filho do Pai e na mútua eterna relação do Amor que “procede do Pai” (Jo
15,26) e “toma do
Filho” (Jo
16,14), que é o Espírito
Santo. A Revelação fala, assim, de duas processões em Deus: a geração do Verbo (cf
Jo 17,6) e a
processão do Espírito Santo, sendo ambas relações imanentes, porque estão em
Deus e são o próprio Deus, enquanto Deus é Pessoal.
Falando
de processão, pensamos em algo que sai de outro implicando mudança e movimento.
Porém, como o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus Triuno (cf
Gn 1,26.27), a
melhor analogia com as processões encontra-se no espírito humano, onde o
conhecimento que tem de si não sai para o exterior: o conceito que fazemos de
nós é distinto de nós, mas não está fora de nós. E o mesmo se diz do amor que
temos para connosco. De modo parecido, em Deus o Filho procede do Pai e é
Imagem Sua, do mesmo jeito que o conceito é imagem da realidade conhecida. Só
que esta Imagem em Deus é tão perfeita que é Deus mesmo, com toda a infinitude,
eternidade, omnipotência: o Filho é uma só coisa com o Pai, o próprio Algo. Essa
é a única e indivisa natureza divina, embora seja outro Alguém. O Símbolo de Fé
Niceno-Constantinoplitano exprime-o com a fórmula “Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro” (Theòn
ek Theoû, Phôs ek Phôtós, Theòn alêthinòn ek Theoû alêthinoû). Assim, o Pai gera o Filho dando-Se
a Ele, entregando-Lhe a sua substância e natureza, não em parte, como sucede na
geração humana, mas perfeita e infinitamente. O mesmo se diz do Espírito Santo,
que procede como o Amor do Pai e do Filho, pois é o Dom eterno e incriado que o
Pai entrega ao Filho gerando-O e que o Filho devolve ao Pai como resposta ao
Seu Amor. Este Dom é dádiva de si, porque o Pai gera o Filho comunicando-Lhe
total e perfeitamente o Seu próprio Ser mediante o Seu Espírito. Portanto, a
terceira Pessoa é o Amor mútuo entre o Pai e o Filho. Seguindo a analogia do
conhecimento e do amor, diz-se que o Espírito procede como a vontade que se
move para o Bem conhecido (espiração).
Estas processões
são imanentes e diferenciam-se radicalmente da criação, que é transeunte, ou
seja, é algo que Deus faz para fora de Si. E dão conta da distinção em Deus,
mas, porque são imanentes, dão razão da unidade. Por isso, o mistério do Deus Triuno
não pode ser reduzido a uma unidade sem distinções, como se as três Pessoas
fossem três máscaras, ou a três seres sem unidade perfeita, como se se tratasse
de três deuses juntos.
As
processões são o fundamento das diversas relações que em Deus se identificam
com as Pessoas divinas: o ser Pai, o ser Filho e o ser espirado por Eles. E,
como não é possível ser pai e ser filho da mesma pessoa, no mesmo sentido,
também não é possível ser ao mesmo tempo a Pessoa que procede pela espiração e
as duas Pessoas das quais procede. Se no mundo criado as relações são
acidentes, pois não se identificam com o seu ser, embora o caraterizem no que é
mais profundo como no caso da filiação, em Deus, nas processões é doada toda a
substância divina, as relações são eternas e identificam-se com a própria
substância.
Estas
relações eternas caraterizam as três Pessoas divinas e identificam-se com Elas,
visto que ao Pai pensar quer dizer pensar no Filho; e pensar no Espírito Santo
quer dizer pensar naqueles a respeito dos quais Ele é Espírito. Assim as
Pessoas divinas são três Alguém, mas um único Deus. Não como se dá entre três homens,
que participam da mesma natureza humana sem a esgotar. As três Pessoas são cada
uma toda a Divindade, identificando-Se com a única Natureza de Deus: as Pessoas
são Uma na Outra. Por isso, Jesus diz a Filipe que quem O vê a Ele vê o Pai (cf
Jo 14,6), enquanto
Ele e o Pai são uma só coisa (cf Jo 10,30; 17,21). Esta dinâmica, chamada pericorese ou circumincesio – dois termos que se
referem a um movimento dinâmico em que um se intercambia com o outro como na
dança em círculo – ajuda a perceber que o mistério do Deus Triuno é o mistério
do Amor. E, a este respeito, diz o n.º 221 do CIC):
“Ele próprio é eternamente comunhão de amor: Pai, Filho e Espírito
Santo; e destinou-nos a tomar parte nessa comunhão”.
Sendo
Deus eterna comunicação de Amor, é compreensível que o Amor transborde para
fora d’Ele na sua atuação. Toda a atuação de Deus na história é obra conjunta
das três Pessoas, pois apenas se distinguem no interior de Deus. Contudo, cada
uma imprime nas ações divinas “ad extra” a sua caraterística pessoal. Com uma
imagem, pode dizer-se que a ação divina é sempre única, como a dádiva recebida
de uma família amiga, que é fruto de um só ato. Mas quem conhece as pessoas que
formam tal família pode reconhecer a intervenção de cada uma, pela marca
pessoal deixada por ela na prenda única. Também é possível tal reconhecimento
em Deus, uma vez que conhecemos as Pessoas divinas na Sua distinção pessoal
mediante as missões, quando Deus Pai enviou juntamente o Filho e o Espírito
Santo na história (cf Jo 3,16-17; 14,26) para se fazerem presentes entre
os homens. Com efeito, “são sobretudo as missões divinas da Encarnação do Filho
e do dom do Espírito Santo que manifestam as propriedades das pessoas divinas” (CIC,
258). Eles são como
que as duas mãos do Pai a abraçar os homens de todos os tempos para os levarem
ao seio do Pai. Se Deus está presente em todos os seres enquanto princípio do
que existe, com as missões do Filho e do Espírito faz-se presente de forma nova.
A própria Cruz de Cristo manifesta ao homem de todos os tempos o eterno Dom que
Deus faz de Si mesmo, revelando na Sua morte a íntima dinâmica do Amor que une
as três Pessoas.
Isto
significa que o sentido último da realidade, o que todo o homem deseja e que é
almejado pelos filósofos e pelas religiões de todos os tempos é o mistério do
Pai que eternamente gera o Filho no Amor que é o Espírito Santo. Assim, na
Trindade reside o modelo original da família humana e a Sua vida íntima é a
aspiração verdadeira de todo o amor humano. Deus quer que todos os homens sejam
uma só família ou uma só coisa com Ele próprio, sendo filhos no Filho. Cada
pessoa foi criada à imagem e semelhança da Trindade (cf
Gn 1,27) e está
feita para viver em comunhão com os outros e com o Pai Celeste. E este é o
fundamento último do valor da vida de cada pessoa humana, independentemente das
suas capacidades ou riquezas.
Mas o
acesso ao Pai só se encontra em Cristo, Caminho, Verdade e Vida (cf
Jo 14,6): mediante a
graça, os homens podem chegar a ser um só Corpo na comunhão da Igreja. Pela
contemplação da vida de Cristo e pelos sacramentos, acedemos à vida íntima de
Deus. Pelo Batismo somos enxertados na dinâmica de Amor da Família das três
Pessoas divinas. Por isso, na vida cristã, tem de se descobrir que, a partir da
existência corrente, das relações que estabelecemos e da nossa vida familiar,
que vislumbra o seu modelo perfeito concretizado na Sagrada Família de Nazaré, de
facto, podemos chegar a Deus, à vida íntima com as três Pessoas: Deus Pai, Deus
Filho, Deus Espírito Santo. E, para chegar à Santíssima Trindade, é conveniente
passar por Maria que Se deixou habitar pelo Senhor (O
Senhor contigo: ho Kírios metà soû –
Lc 1,28). Assim,
pode descobrir-se o sentido da história como caminho da trindade à Trindade,
aprendendo da trindade da terra (Jesus, Maria e José) a elevar o olhar para a Trindade
do Céu.
***
E é este
Deus, clemente e compassivo, que, a pedido de Moisés, caminha no meio de nós,
seu povo, disposto a compreender-nos e a perdoar-nos sem limitações (vd
Ex 34,4-6.8-9). É
este Deus (vd Jo 3,16-18) que amou tanto o mundo que entregou o seu Filho
Unigénito para que o mundo, crendo, seja salvo por Ele (ína sôthê ho kósmos di’ autoû). É este Deus, digno de louvor e
de glória para sempre (Dn 3,52b), que, estando connosco, nos faz viver na alegria e
trabalhar pela nossa perfeição ajudando-nos uns aos outros, na graça (kháris) do Senhor Jesus Cristo, no amor (agápê) do Pai e na comunhão (koinônía) do Espírito Santo (vd 2Cor
13,11-13), em quem é
preciso crer.
***
Por fim,
aqui se deixa a tradução de um dos símbolos primitivos em cinco artigos:
“Creio no Pai senhor do universo, e em Jesus Cristo [salvador nosso], e
no Espírito Santo [Paráclito], e na santa Igreja, e na remissão dos pecados”
(Epistola Apostolorum – recentio
aethiopica).
2020.06.07 –
Louro de Carvalho
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